Como esperado, a vitória de Lula da Silva na disputa presidencial antecipou o fim da administração Jair Bolsonaro, redirecionando toda a atenção dada ao que ocorria na Esplanada dos Ministérios ao Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), onde ocorrem os trabalhos da equipe de transição. Mas, enquanto o debate sobre os ajustes no Orçamento de 2023 e a discussão sobre a âncora fiscal que substituirá o teto de gastos ganham relevância, o governo parece mais empenhado na tentativa de desconstruir o legado da herança maldita que deixará ao petista, a despeito das evidências em contrário.
Em tom de despedida, o ministro da Economia, Paulo Guedes, aproveitou a divulgação do Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas do quinto bimestre para fazer um balanço de sua gestão. Entre os indicadores destacados, Guedes mencionou o resultado primário positivo que o País deve registrar neste ano, o primeiro desde 2013. “Será que tem gente despreparada querendo falsificar a realidade fiscal do País? Como alguém sério e preparado pode falar em herança maldita?”, questionou.
Minutos depois, coube ao secretário especial de Tesouro e Orçamento da pasta, Esteves Colnago, anunciar as notícias ruins: o bloqueio adicional de R$ 5,7 bilhões para evitar o estouro do teto de gastos, que elevou o total dos cortes a R$ 15,4 bilhões e ampliou o risco de apagão da máquina pública no fim deste ano. “Vai ser muito difícil, muito apertado. O governo nunca passou tão apertado assim, o normal é vir flexibilizando os bloqueios do Orçamento”, reconheceu. Sob tais condições, e considerando-se todas as exceções abertas no teto desde 2019 – quase R$ 800 bilhões nas contas do FGV Ibre –, a conquista de um superávit neste ano não parece digna de ostentação.
Independentemente do discurso político do ministro, urge uma análise desapaixonada da realidade econômica do País, que permita o enfrentamento dos motivos que conduziram a ela e a proposição de soluções para corrigi-los de forma definitiva, sobretudo no que diz respeito ao Orçamento. Aprovado em 2016, o teto de gastos explica uma parte dos problemas. Ao propor um limite para o crescimento das despesas, sua intenção era levar o governo e o Congresso a discutir reformas estruturais que reduzissem os dispêndios obrigatórios, o que não aconteceu.
A falta de liderança do governo Bolsonaro, no entanto, fortaleceu um Legislativo já bastante empoderado em termos políticos e econômicos. Um mês antes do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2015, o Congresso tornou impositiva a execução das emendas individuais dos deputados e senadores. Já sob Bolsonaro, em 2019, parlamentares promulgaram propostas que tornaram obrigatórias as emendas de bancada e as emendas PIX. Em conjunto, elas colaboraram para ampliar a parcela das despesas do Orçamento que não podem ser alvo de tesouradas a quase 94%.
Não é por acaso que as emendas de relator recebam tanta atenção, especialmente no anúncio de cortes bimestrais do Orçamento. Por seu caráter não obrigatório, essas emendas servem como moeda de troca na construção de uma base de apoio e premiam os parlamentares mais fiéis ao Executivo. Investindo nessa prática, o governo permitiu que essas emendas consumissem, além de parte dos gastos obrigatórios, uma parcela cada vez maior das despesas discricionárias. Ao ganharem caráter prioritário, elas reduziram o montante antes destinado aos Ministérios para atividades como a emissão de passaportes – símbolo máximo de uma situação fiscal crítica a ponto de paralisar a máquina pública.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que a herança maldita que Lula da Silva receberá não é mérito apenas do governo, mas também do Congresso. Resolver os problemas do Orçamento e torná-lo aderente à realidade passa pela definição de uma nova âncora fiscal crível, pela aprovação de reformas estruturais e pela coragem de reavaliar gastos. Inclui, também, a revisão do caráter impositivo das emendas parlamentares e a construção de uma relação entre Executivo e Legislativo sob novas bases.