Lá se vão quase 20 anos desde que o cientista político Larry Diamond observou um movimento de enfraquecimento da democracia liberal mundo afora após um período de apogeu que vai desde o pós-guerra até o fim de ditaduras na América Latina, no Leste Europeu e em alguns países da África e da Ásia. O professor da Universidade Stanford chegou a cunhar a expressão “recessão democrática” para descrever a queda do número de cidadãos governados por democratas e a perda de qualidade da democracia nos países que, mesmo de forma claudicante, ainda mantinham hígidos alguns de seus atributos.
Passado todo esse tempo, nada indica um refluxo do movimento liberticida, ao contrário. O mesmo desenvolvimento tecnológico que tanto tem beneficiado a humanidade ao criar soluções inovadoras para problemas complexos e eliminar barreiras de toda sorte entre indivíduos e empresas, por outro lado, tem imposto desafios inauditos à democracia. Alguns destes ainda mais ameaçadores, como é o caso da fabricação da “realidade” por inteligência artificial (IA).
A dimensão dessa ameaça foi dada recentemente pelo Fórum Econômico Mundial. De acordo com o Relatório de Riscos Globais 2024, publicado pela organização no dia 10 passado, as informações falsas ou distorcidas produzidas por IA representam nada menos que o “maior risco global no curto prazo”. Neste ano, cerca de 2 bilhões de eleitores irão às urnas em diversos países, inclusive os brasileiros, que escolherão seus futuros prefeitos e vereadores em outubro. Poucas coisas corroem tanto os pilares democráticos quanto o falseamento da realidade.
Por excelência, ciclos eleitorais são os momentos mais propícios à discussão de programas de governo, avaliação de políticas públicas e orientação dos destinos de uma sociedade. É o tempo em que os cidadãos decidem sobre os caminhos que desejam trilhar coletivamente. Não há, nunca houve e jamais haverá convergência total entre eles, mas o brilho da democracia se irradia com mais força justamente nessa concertação entre os divergentes em bases minimamente consensuais sobre a realidade em discussão. Quando se perde a capacidade de distinguir entre fatos e falsidades no debate público, não se pode mais falar em democracia. Ou, parafraseando o professor Eugênio Bucci, articulista deste jornal, não existe democracia sem verdade factual.
Num passado não tão longínquo, quando o alcance da desinformação era limitado por obstáculos materiais e geográficos, era mais simples adotar regras que, a um só tempo, resguardassem a liberdade de expressão dos cidadãos e garantissem a qualidade do debate público a partir da valorização da verdade dos fatos. Essa tarefa se tornou um desafio dos mais complexos para os democratas mundo afora, em particular pela proliferação do uso de IA por indivíduos e grupos tão poderosos quanto mal-intencionados, que se valem da manipulação da realidade para minar as liberdades democráticas, tidas como entraves aos seus interesses políticos e econômicos.
Se não se pode de nenhuma maneira cercear a liberdade de expressão, também não é possível permitir que meia dúzia de gigantes da tecnologia, que hoje monopolizam o debate público e têm literalmente o poder de distorcer a pauta política por meio de algoritmos que privilegiam a desinformação e o ódio, siga sem qualquer responsabilidade. A simples inação não é uma opção. Ora, não é por outra razão, convém lembrar, que campanhas eleitorais são regidas por legislação própria, com vistas a preservar o interesse público do mau exercício de direitos individuais.
Há poucos dias, a propósito, o Tribunal Superior Eleitoral publicou uma minuta de resolução sobre o uso de IA na campanha de 2024. Mas só a Justiça Eleitoral não basta. É preciso que os eleitores escolham fontes de informação confiáveis, deixando de lado os discursos mentirosos, por mais sedutores que pareçam. Como parte essencial que são do processo eleitoral, os cidadãos têm responsabilidade no cuidado diário com a democracia.