É lastimável que a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), importantíssima por levar o Estado brasileiro a ser responsabilizado pelo desaparecimento de centenas de cidadãos no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 5 de outubro de 1988, tenha sido extinta no crepúsculo do governo passado. E não por ter alcançado plenamente os seus objetivos originários, mas, antes, pelas maquinações ideológicas do então presidente Jair Bolsonaro, notório admirador de alguns dos mais cruéis agentes da ditadura militar (1964-1985). Agora, o presidente Lula da Silva tem uma boa oportunidade de reparar esse erro.
Em fins de abril, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, pediu ao presidente da República a reabertura da CEMDP. Há poucos dias, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, deu parecer favorável ao pleito do colega de Esplanada. Para o progresso civilizatório do País, será muito bom se Lula levar o pedido em consideração.
No primeiro escalão do governo, as ressalvas à reabertura da CEMDP vêm do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. Como este jornal noticiou, o ministro estaria preocupado com a suposta criação de novos focos de atrito entre Lula e os militares. Mas não há razão alguma para preocupação. A Lei 6.683/1979, a Lei da Anistia, está em vigor. Vale dizer, não se está falando de responsabilizar individualmente os agentes civis ou militares que porventura tenham cometido crimes naquele período nem tampouco penalizar as Forças Armadas como instituições de Estado.
Como dispõe a Lei 9.140/1995, que a criou, a CEMDP se presta a reconhecer “como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias” e a indenizar seus parentes. Trata-se, portanto, de fazer o Estado assumir a sua responsabilidade por violências sobejamente conhecidas que foram cometidas por seus agentes durante uma das quadras mais sombrias da história nacional.
Não se trata de revanche, tampouco, propriamente, é uma questão de preservação da memória do País, pois a história dos crimes cometidos por agentes do Estado no período abarcado pela Lei 9.140/1995 já está muito bem documentada. O que uma sociedade que se pretende civilizada deve desejar é, no mínimo, que haja uma compensação por essas contumazes violações dos direitos humanos. Ou seja, é o simples reconhecimento de que o Estado é responsável por aqueles sob sua custódia. Isso é o bastante para os brasileiros que só desejam viver num país em que não estejam sujeitos ao arbítrio do Estado. Além disso, a admissão da responsabilidade estatal pelos desaparecimentos durante o regime militar oferece conforto emocional para os que, há mais tempo do que seria tolerável, convivem com a angústia de não saber o que foi feito de seus entes queridos – sejam os que se envolveram na oposição ao regime, sejam os que nada fizeram para provocar a ira dos poderosos de então, mas mesmo assim acabaram nos porões da ditadura.
Anistiar não significa esquecer. Essa distinção é fundamental para que o País possa se debruçar, com maturidade, sem medos ou pruridos, sobre um momento crucial de seu passado recente. É da exata compreensão da responsabilidade do Estado pela morte presumida de muitos cidadãos que estavam sob sua custódia apenas porque ousaram se contrapor a um regime de exceção, ou nem isso, que virá a construção de um futuro mais justo para todos os brasileiros.
A eventual reabertura da CEMDP não deve ser recebida como uma “provocação” aos militares ou às Forças Armadas; e menos ainda como um estímulo ao revanchismo no País. Trata-se, antes de tudo, da manifestação legítima de uma sociedade madura o bastante para olhar seu passado com coragem e apego à verdade factual.