A promessa do governo Lula de zerar o déficit primário em 2024 trouxe novamente à luz o problema do financiamento dos gastos públicos. Ao enviar a proposta de Orçamento ao Legislativo na semana passada, o Executivo apresentou uma lista de medidas para arrecadar R$ 168 bilhões, incluindo propostas que ainda dependem da aprovação do Congresso para entrar em vigor.
A essa pressão, o presidente da Câmara, Arthur Lira, respondeu com uma cobrança. O deputado passou a exigir publicamente do governo um esforço pela aprovação da reforma administrativa que tramita na Casa – a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020. De forma coordenada, 23 frentes parlamentares do Congresso manifestaram apoio à proposta, entre elas as que representam o comércio, serviços e agronegócio.
É raro que se diga, mas tanto o governo quanto a Câmara têm alguma dose de razão. Diante de um déficit estrutural no Orçamento, é evidente que o Executivo federal precisa buscar novas receitas. Da mesma forma, cabe ao Congresso aprovar o Orçamento, e todos sabem que os servidores representam boa parte das despesas da União.
Problemas complexos, no entanto, requerem soluções complexas, bem articuladas. Reportagens que expõem os privilégios do funcionalismo escandalizam trabalhadores com rendimentos estagnados há anos e corroídos pela inflação. Aos altos salários acumulados pelos servidores públicos, somam-se muitas vezes penduricalhos, bons planos de saúde, aposentadorias generosas e a garantia da estabilidade.
Há, no entanto, certa incompreensão sobre as carreiras de Estado. As enormes desigualdades da sociedade brasileira refletem-se, também, no setor público. A elite do funcionalismo, que consegue driblar o teto salarial de R$ 41,6 mil, representa um universo de cerca de 25,3 mil pessoas, segundo o Centro de Liderança Pública (CLP).
Uma verdadeira reforma administrativa, por óbvio, deveria enfrentar essas regalias. Mas o fato é que a PEC 32/2020 não resvala nesses aspectos. Ela trata apenas das carreiras do Executivo, enquanto os salários mais elevados são pagos a juízes, procuradores e promotores. Já o projeto de lei que combate os supersalários, já aprovado na Câmara, está há dois anos parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, à espera de um relator.
Mais de 70% dos servidores recebem até R$ 5 mil mensais, segundo o CLP. E são eles os que estão na linha de frente do serviço público. A imensa maioria deles está nos Estados e municípios, onde são responsáveis pela prestação de serviços de saúde, educação e segurança. Juntos, eles representam um contingente de quase 7 milhões de pessoas. Outros 4 milhões ganham ainda menos, sobretudo professores temporários na educação municipal e estadual.
Se tratar todo o funcionalismo da mesma forma não é o melhor caminho para enfrentar a questão, ignorar as deficiências que marcam a gestão pública tampouco é aceitável. O Estado pode e deve entregar mais e melhor do que tem entregado à sociedade, mas cumprir esse objetivo sem recompor o quadro técnico de servidores, desmantelado após quatro anos de bolsonarismo, é virtualmente impossível. Autorizar concursos de forma desenfreada, prática de administrações petistas anteriores, tampouco é desejável.
Algumas premissas já contam com algum consenso. Uma reforma administrativa deve, necessariamente, reduzir desigualdades e rever parte dessas benesses, especialmente os altos salários pagos já no início de algumas carreiras. Nem todas as funções precisam ter estabilidade. É urgente criar mecanismos para avaliar o desempenho dos servidores e garantir flexibilidade para remanejamento entre os órgãos e ministérios.
O esforço pela melhoria da gestão do Estado deve ser contínuo, não errático. Como disse Arthur Lira, o governo Lula precisa reconhecer essa necessidade. Não há dúvida de que o País necessita de uma reforma administrativa, mas tratá-la unicamente sob o viés fiscal e sem encarar as verdadeiras distorções do setor público é um erro que não precisa ser repetido.