Dias atrás fui surpreendida com a notícia de que um produtor estava cultivando Malbec na Borgonha. Confesso que, em um primeiro momento, estranhei a informação. A Borgonha, a região vinícola que mais respeita e se orgulha do seu terroir, estava abrindo caminho para outras uvas? Justo lá, onde a Pinot Noir, nas tintas, e a Chardonnay, nas brancas, brilham com tanta maestria e há tanto tempo. Mais precisamente, desde os monges na Idade Média.
Mas a informação é verdadeira. O produtor Vicent Mongeard-Mugneret está cultivando Malbec, aquela variedade de ciclo mais longo, que não se deu bem em Cahors, a região francesa onde a uva se originou, e precisou ser exportada para a Argentina, com seu clima seco, a quase absoluta falta de chuva, e ares desérticos, para fazer sucesso.
O produtor nem escolheu a Gamay, variedade que na Idade Média era cultivada na Borgonha até ser banida por Felipe, o Bravo, então o todo poderoso duque da Borgonha. Naquela época, ele dizia que, por resultar em vinhos terríveis e duros, a Gamay prejudicava a imagem dos grandes vinhos feitos com a pinot noir.
Dono de 18 hectares na Borgonha, 7 deles em áreas classificadas como Premier e Grand Cru e cultivados organicamente, Mugneret decidiu dedicar uma minúscula parcela de seus vinhedos (ao redor de 1% deles) para cultivar a Malbec. Escolheu um vinhedo classificado como AOC Borgonha, localizado no vale, e não nas nobres encostas, que são a morada perfeita da Pinot Noir.
O vale é um terreno mais fértil e quente, que poderia ser bom para a variedade intrusa. Com o vinho pronto, escolheu um rótulo moderno, que destoa dos demais da vinícola, que têm um desenho mais clássico. Tem a letra “M” estilizada, em tom prateado, foi batizado de Cuvée “M” e descrito no site como um vinho frutado, rico em taninos, com cor profunda, quase preta e capaz de amadurecer por décadas.
E, no que poderia ser uma heresia, vem engarrafado com a garrafa de modelo bordalês, da “rival” Bordeaux, de formato mais reto, na comparação com o perfil mais bojudo, tradicional da Borgonha. O vinho, infelizmente, não está no Brasil, mas a importadora Ravin traz para cá os rótulos tradicionais do produtor.
Mugneret conhecia a uva por ter estagiado na região de Cafayate, no norte da Argentina, onde a Malbec vem mostrando muito potencial, principalmente em zonas mais altas, na Cordilheira dos Andes. Para a especialista inglesa Jancis Robinson, ele disse que o seu cultivo da Malbec não deveria ser visto como um manifesto a favor desta uva, mas como uma paixão dele pela variedade.
O fato, no entanto, é que duas, até talvez uma década atrás, seria impossível cultivar a Malbec na Borgonha. Mais por questões climáticas do que como um ato de rebeldia contra o terroir, aquela palavra sem tradução para o português, mas que resume as características de um território, formado por um microclima, um solo característico, e a variedade cultivada.
O clima frio da Borgonha não permitiria o completo amadurecimento desta variedade, que não conseguiria derivar em tintos frutados e, menos ainda, em taninos macios. Mas o primeiro mês de 2020 foi o segundo janeiro mais quente desde que a França começou a acompanhar as suas temperaturas no início do século XX. É como se o frio, necessário para as videiras hibernarem, tivesse desaparecido, abrindo espaço para mudanças.
No mundo do vinho, não é só a pandemia que vem trazendo surpresas e nos leva a perguntar o que mais pode mudar. Da quarentena, já está claro que as compras online, o consumo doméstico e os rótulos mais baratos são o caminho. Mas, e quanto ao líquido que vem dentro da garrafa? Depois de um Malbec borgonhês, o que mais poderá surgir nas nossas taças?