Hoje, quase toda a cachaça produzida no Brasil circula dentro do País. Essa é a constatação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que confirma com números que o Brasil consome quase toda a produção da bebida: da produção anual de 1,3 bilhão de litros por ano, apenas cerca de 1% a 2% é exportado.
No entanto, os novos números de exportação são animadores. De acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça (IBRAC), o País hoje já exporta para 75 países por mais de 50 empresas exportadoras. Em 2022, a receita foi US$ 20,80 milhões (em volume isso representou 9,31 milhões de litros exportados). É um crescimento de 52,38% em valor em comparação a 2021. Com isso, marcas veem possibilidade de expansão, mas ainda há muitas melhorias e preocupações no caminho.
Caninha sem consistência
Pra começar, já surge algo nada simples: como manter a consistência da cachaça? Como ter certeza de que todos os lotes que saem do Brasil, para consumo em outros países, são de boas bebidas? É algo quase impossível nos dias de hoje, quando 25% da bebida é produzida de forma artesanal por mais de 40 mil produtores, segundo dados da Embrapa.
“Há falta de consistência da bebida, com marcas oferecendo a mesma qualidade sensorial ao longo dos lotes. Isso é algo que é muito requisitado em outros países”, contextualiza Aline Bortoletto, especialista na bebida e diretora Inovbev, empresa focada na pesquisa e no desenvolvimento de bebidas. “Quando a gente tem quatro ou cinco grandes marcas, enquanto a maioria é de pequenos e médios, temos dificuldade de ter uma qualidade fixa sensorial. Você toma a bebida uma vez e é uma coisa e depois é outra, tá diferente”.
Uma solução para isso é implementar sistemas de qualidade -- algo difícil, convenhamos, para o pequeno ou médio produtor. Mas a Octaviano Della Colletta, no interior de São Paulo, está atrás justamente de certificações para manter a qualidade da bebida: hoje, a destilaria busca um certificado internacional de produção orgânica de cachaça. Isso pode, afinal, abrir as portas em novos mercados para a bebida, principalmente o Europeu.
No entanto, como já contamos por aqui, está longe de ser um processo simples: é preciso seguir regras bem específicas e que, no final do dia, tornam o processo mais custoso.
“Para as destilarias que querem exportar cachaça, é preciso ter controle de qualidade, rastreabilidade. Significa valor fora do país”, continua Aline. “É você ter todo seu processo de produção estabilizado, evitando contaminantes, com qualidade sensorial. Falta para as destilarias entenderem que falta investir na capacitação do profissional que trabalha e na tecnologia da indústria. Precisa ter uma produção consistente, mas com alta qualidade”.
Como fala “água que passarinho não bebe” em alemão?
Hoje, desses litros exportados do Brasil para o resto do mundo, grande parte se concentra na Alemanha, Paraguai, Estados Unidos, França e Portugal. Em termos de valor, Estados Unidos, Alemanha, Portugal, França e Itália. Para alcançar novos mercados, e expandir nesses que já está timidamente presente, é preciso fazer um trabalho para mostrar o que é a cachaça -- difícil de falar em outras línguas, aliás, pelo cedilha.
Além disso, é preciso fazer com que outros públicos entendam o que é a bebida. E nada disso é fácil. A Pindorama, aliás, passou por isso em sua chegada a Portugal.
“Apesar de toda uma globalização que permite uma grande troca entre nações, nós vemos a barreira da língua estrangeira como um impeditivo para vários produtores. Gastos com marketing em moeda estrangeira também inviabilizam as estratégias mais convencionais como outdoor e revistas”, diz Rafael Daló, sócio e diretor criativo da Pindorama, produtora artesanal da bebida. “Em Portugal, fizemos tudo com uma equipe mínima, buscando sempre nos associar a restaurantes, bares e hotéis que se identificam com a marca e entendem o valor de tê-la para oferecer aos seus clientes. Mas isso tudo são relações que se estabelecem com tempo, com cultura de bebida, e confiança no produto”.
Tentando cortar caminho, é comum também muitas marcas chamarem a cachaça de “rum brasileiro”. E aí há uma questão que pode colocar a exportação da cachaça em maus lençóis: apesar dela ser uma indicação geográfica, só sendo produzida no Brasil, o seu processo é muito similar com o do rum agrícola. Pode acabar criando competição entre as bebidas. “Por outro lado, ao falar ‘rum brasileiro’, colocamos a cachaça ao lado de ótimas bebidas internacional reconhecidas”, ressalta a especialista Aline Bortoletto ao Paladar.
Se você pensa que cachaça é água…
Uma boa forma de driblar essa falta de conhecimento é investir na coquetelaria brasileira. Ter uma consolidação de bebidas nacionais feitas com cachaça, conhecidas em todo o mundo, pode ser o caminho da popularização -- assim como foi com a tequila, o rum e afins.
“Ensinar a fazer caipirinha, ter limão disponível, açúcar e o pessoal oferecer o drink é um desafio permanente para o setor”, diz Cesar Rosa, presidente executivo da Velho Barreiro, principal exportadora da bebida, ao Paladar. “Precisamos de verbas e dinheiro”.
“Esse processo de educação começa pela coquetelaria e pela gastronomia”, diz Aline. “Temos que mostrar a riqueza do Brasil, trazendo diferencial de cores, aromas e sensação lá fora e que isso leve uma expressividade brasileira ao mundo. É um processo de formiguinha. É preciso ter uma união dos pequenos e médios produtores, até mesmo dos grandes, que estão aptos a se unirem. É o que faz a diferença para a exportação”.
Isso pode ser determinante para um futuro que, há 10 anos, parecia muito distante. A própria Pindorama, por exemplo, hoje já está há 4 anos no mercado português e há um no britânico. Também vendem para Alemanha, Áustria e Holanda. A meta é solidificar e expandir esses territórios para os próximos anos. “O Brasil já é grande exportador de tudo mais”, diz Rafael. “A cachaça faz todo o sentido, ela é a cara e o espírito do Brasil”.
* Matéria atualizada em 2 de outubro com dados do Instituto Brasileiro da Cachaça (IBRAC) com números do setor em 2022.