Carbonara não é um prato italiano? Chefs e especialistas divergem sobre origem


Apesar dos debates sobre a origem, chefs acreditam que há um ‘jeito certo’ de preparar o prato

Por Matheus Mans

Quando pensamos no carbonara, celebrado oficialmente nesta quinta-feira, 6, logo pensamos na culinária italiana. Afinal, o prato sempre foi reconhecido, nos quatro cantos, como uma iguaria do país europeu. Não à toa, há uma certa rigidez em seu preparo: precisa levar ovos, pecorino e guanciale, que vem das bochechas do porco -- nada de bacon. Mas, na última semana, uma polêmica renasceu: o carbonara talvez não seja italiano, mas americano.

Quem reacendeu a chama da polêmica foi o professor de História da Alimentação da Universidade de Parma, na Itália, Alberto Grandi. Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, o italiano resolveu dissecar alguns mitos da culinária de seu próprio país. Dentre seus alvos, tiramisú, pizza margherita, panetone e, claro, o carbonara. Sobre este último prato, Grandi vê como o exemplo perfeito: para ele, é a tentativa de criar uma identidade nacional e um sentimento cívico ao redor de uma receita que não nasceu, de fato, na Itália.

Ser ou não ser? Carbonara vive dilema existencial Foto: Felipe Rau|Estadão
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Grandi tem como base um livro americano publicado em 1954, no qual a receita teria aparecido pela primeira vez. E ainda ressalta que esse “controle de qualidade” com os ingredientes é algo que também surgiu depois. Ele aponta que, no passado, o carbonara já teve queijo gruyère (1954, na revista La Cucina Italiana) e até “presunto e cogumelos salteados em fatias finas” (1958, restaurante Tre Scalini de Roma). Já o guanciale surgiu apenas na década de 1990. Antes disso, era bacon mesmo -- algo tipicamente americano.

“É uma questão de identidade”, Grandi diz ao Financial Times. “Quando uma comunidade se vê privada de seu senso de identidade, por causa de qualquer choque histórico ou fratura com seu passado, ela inventa tradições para atuar como os seus mitos fundadores”.

Qual a história de origem do Carbonara?

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Hoje, à parte das polêmicas de Grandi, já há um intenso debate sobre a origem do carbonara. Além do registro do prato no livro americano, pelo menos mais duas origens são discutidas. “A versão mais difundida contava que a pasta alla carbonara foi criada em 1944 pelo cozinheiro bolonhês Renato Gualandi em Riccione, na costa da Emilia-Romagna. No decorrer de um almoço para oficiais ingleses e americanos que festejavam a liberação da cidade, Gualandi preparou uma massa com bacon, creme de leite, queijo e gema de ovo em pó, vinda da provisão de alimentos dos soldados, e cobriu com pimenta-do-reino escura”, explica Gerardo Landulfo, diretor da Italcam e delegado na Accademia Italiana della Cucina.

Outras versões asseguram que o nome vem dos “carbonari” (carvoeiros) que trabalhavam nos bosques das regiões da Umbria e Abruzzo. Assim, na verdade, o prato seria uma evolução da “cacio e uova” (queijo e ovo), receita catalogada pelo napolitano Francesco Palma, no livro “Il Principe dei Cuochi”, escrito em 1881. Ou seja: tudo na mão de italianos.

“A história na qual eu gosto e acredito é a dos carbonari, que eram um grupo responsável pela queima de lenha e produção de carvão. Esse grupo vivia com pouco e carregava ingredientes de fácil conservação: o guanciale e o pecorino junto com a pasta seca e ovos de aves variadas, que encontravam durante sua jornada para conceder mais cremosidade ao prato”, explica Fernanda Veiga, chef do Sta. Matta e com passagens pelo Evvai, Relais D’Amelia e Pipero. “Os clássicos romanos se baseiam grande parte em queijo pecorino (de ovelha) e pimenta do reino preta, pois eram os ingredientes aos quais tinham mais fácil acesso na época, com suas variações que usam ovos e molho de tomate, entre outros”.

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Toda essa discussão, para Landulfo, não tira a importância do prato. “Existem pelo menos duas versões diferentes sobre a origem da maioria das receitas. O que devemos defender é o respeito à cultura gastronômica italiana e o uso de poucos e bons ingredientes. A lenda diz que Marco Polo trouxe o macarrão e o sorvete da China, mas foram os italianos que levaram a pasta e o gelato para o mundo inteiro”, afirma o especialista Gerardo Landulfo.

Como fazer um carbonara perfeito se sua origem é duvidosa?

Com tantas dúvidas sobre a origem do prato, será que não dá pra fazer o carbonara de outro jeito? Falar isso na Itália, em voz alta e em público, rende reprimendas vigorosas. Em 2010, por exemplo, a apresentadora britânica Holly Willoughby sugeriu que o carbonara poderia ser feito com presunto. Nisso, o chef italiano Gino D’Acampo repreendeu na hora: “se minha avó tivesse rodas ela teria sido uma bicicleta”, disse o chef italiano purista.

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Hoje existe até mesmo pizza de carbonara Foto: Codo Meletti/ Estadão

Grandi, sobre essa questão da tradição e do purismo nos preparos, aponta na reportagem do Financial Times que isso está se tornando, dentre outras coisas, uma forma da extrema-direita abraçar a tradição e fazer com que as pessoas sejam conservadoras em seus “costumes gastronômicos”. Também há toda a questão do turismo italiano, que chega a bater em quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país europeu. Muito desse turismo está em busca de comer pratos tipicamente italianos preparados “do jeito que deve ser”.

Os entrevistados de Paladar seguem por caminhos bem distintos sobre como fazer um carbonara “de verdade”. A chef Fernanda Veiga, que chegou a trabalhar em um restaurante em Roma, capital da Itália, explica a complexidade do prato. “A temperatura e a cremosidade são pontos chaves para um resultado incrível, além, é claro, do uso de produtos de alta qualidade. Um ditado que aprendi lá foi ‘la carbonara non viene sempre bella ma viene sempre buona’. Ou seja, o carbonara nem sempre é belo, mas é muito bom”.

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Para ela, a receita não muda. “Carbonara é feito classicamente de guanciale, pecorino, gema e pimenta do reino preta. Existem variações. Muitas colocam outros ingredientes e acabam por, algumas vezes, formar um novo prato. Não ruim, mas diverso”, completa.

Já Gerardo Landulfo, delegado na Accademia Italiana della Cucina, se mostra um pouco mais flexível sobre os preparos. “No caso do carbonara, ele pode ter suas revisitações no exterior e na própria Itália, como tantos outros pratos. No Brasil, por exemplo, faz poucos anos que alguns ingredientes legítimos italianos chegaram”, explica o especialista. “Não era comum encontrar pecorino e muito menos guanciale ou pancetta nos supermercados, por isso o uso de bacon e de outros tipos de queijo – além do famigerado creme de leite. O Carbonara Day foi criado em 2017 para promover a receita que é considerada a autêntica, a aperfeiçoada em Roma com ingredientes típicos da região”.

Quando pensamos no carbonara, celebrado oficialmente nesta quinta-feira, 6, logo pensamos na culinária italiana. Afinal, o prato sempre foi reconhecido, nos quatro cantos, como uma iguaria do país europeu. Não à toa, há uma certa rigidez em seu preparo: precisa levar ovos, pecorino e guanciale, que vem das bochechas do porco -- nada de bacon. Mas, na última semana, uma polêmica renasceu: o carbonara talvez não seja italiano, mas americano.

Quem reacendeu a chama da polêmica foi o professor de História da Alimentação da Universidade de Parma, na Itália, Alberto Grandi. Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, o italiano resolveu dissecar alguns mitos da culinária de seu próprio país. Dentre seus alvos, tiramisú, pizza margherita, panetone e, claro, o carbonara. Sobre este último prato, Grandi vê como o exemplo perfeito: para ele, é a tentativa de criar uma identidade nacional e um sentimento cívico ao redor de uma receita que não nasceu, de fato, na Itália.

Ser ou não ser? Carbonara vive dilema existencial Foto: Felipe Rau|Estadão

Grandi tem como base um livro americano publicado em 1954, no qual a receita teria aparecido pela primeira vez. E ainda ressalta que esse “controle de qualidade” com os ingredientes é algo que também surgiu depois. Ele aponta que, no passado, o carbonara já teve queijo gruyère (1954, na revista La Cucina Italiana) e até “presunto e cogumelos salteados em fatias finas” (1958, restaurante Tre Scalini de Roma). Já o guanciale surgiu apenas na década de 1990. Antes disso, era bacon mesmo -- algo tipicamente americano.

“É uma questão de identidade”, Grandi diz ao Financial Times. “Quando uma comunidade se vê privada de seu senso de identidade, por causa de qualquer choque histórico ou fratura com seu passado, ela inventa tradições para atuar como os seus mitos fundadores”.

Qual a história de origem do Carbonara?

Hoje, à parte das polêmicas de Grandi, já há um intenso debate sobre a origem do carbonara. Além do registro do prato no livro americano, pelo menos mais duas origens são discutidas. “A versão mais difundida contava que a pasta alla carbonara foi criada em 1944 pelo cozinheiro bolonhês Renato Gualandi em Riccione, na costa da Emilia-Romagna. No decorrer de um almoço para oficiais ingleses e americanos que festejavam a liberação da cidade, Gualandi preparou uma massa com bacon, creme de leite, queijo e gema de ovo em pó, vinda da provisão de alimentos dos soldados, e cobriu com pimenta-do-reino escura”, explica Gerardo Landulfo, diretor da Italcam e delegado na Accademia Italiana della Cucina.

Outras versões asseguram que o nome vem dos “carbonari” (carvoeiros) que trabalhavam nos bosques das regiões da Umbria e Abruzzo. Assim, na verdade, o prato seria uma evolução da “cacio e uova” (queijo e ovo), receita catalogada pelo napolitano Francesco Palma, no livro “Il Principe dei Cuochi”, escrito em 1881. Ou seja: tudo na mão de italianos.

“A história na qual eu gosto e acredito é a dos carbonari, que eram um grupo responsável pela queima de lenha e produção de carvão. Esse grupo vivia com pouco e carregava ingredientes de fácil conservação: o guanciale e o pecorino junto com a pasta seca e ovos de aves variadas, que encontravam durante sua jornada para conceder mais cremosidade ao prato”, explica Fernanda Veiga, chef do Sta. Matta e com passagens pelo Evvai, Relais D’Amelia e Pipero. “Os clássicos romanos se baseiam grande parte em queijo pecorino (de ovelha) e pimenta do reino preta, pois eram os ingredientes aos quais tinham mais fácil acesso na época, com suas variações que usam ovos e molho de tomate, entre outros”.

Toda essa discussão, para Landulfo, não tira a importância do prato. “Existem pelo menos duas versões diferentes sobre a origem da maioria das receitas. O que devemos defender é o respeito à cultura gastronômica italiana e o uso de poucos e bons ingredientes. A lenda diz que Marco Polo trouxe o macarrão e o sorvete da China, mas foram os italianos que levaram a pasta e o gelato para o mundo inteiro”, afirma o especialista Gerardo Landulfo.

Como fazer um carbonara perfeito se sua origem é duvidosa?

Com tantas dúvidas sobre a origem do prato, será que não dá pra fazer o carbonara de outro jeito? Falar isso na Itália, em voz alta e em público, rende reprimendas vigorosas. Em 2010, por exemplo, a apresentadora britânica Holly Willoughby sugeriu que o carbonara poderia ser feito com presunto. Nisso, o chef italiano Gino D’Acampo repreendeu na hora: “se minha avó tivesse rodas ela teria sido uma bicicleta”, disse o chef italiano purista.

Hoje existe até mesmo pizza de carbonara Foto: Codo Meletti/ Estadão

Grandi, sobre essa questão da tradição e do purismo nos preparos, aponta na reportagem do Financial Times que isso está se tornando, dentre outras coisas, uma forma da extrema-direita abraçar a tradição e fazer com que as pessoas sejam conservadoras em seus “costumes gastronômicos”. Também há toda a questão do turismo italiano, que chega a bater em quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país europeu. Muito desse turismo está em busca de comer pratos tipicamente italianos preparados “do jeito que deve ser”.

Os entrevistados de Paladar seguem por caminhos bem distintos sobre como fazer um carbonara “de verdade”. A chef Fernanda Veiga, que chegou a trabalhar em um restaurante em Roma, capital da Itália, explica a complexidade do prato. “A temperatura e a cremosidade são pontos chaves para um resultado incrível, além, é claro, do uso de produtos de alta qualidade. Um ditado que aprendi lá foi ‘la carbonara non viene sempre bella ma viene sempre buona’. Ou seja, o carbonara nem sempre é belo, mas é muito bom”.

Para ela, a receita não muda. “Carbonara é feito classicamente de guanciale, pecorino, gema e pimenta do reino preta. Existem variações. Muitas colocam outros ingredientes e acabam por, algumas vezes, formar um novo prato. Não ruim, mas diverso”, completa.

Já Gerardo Landulfo, delegado na Accademia Italiana della Cucina, se mostra um pouco mais flexível sobre os preparos. “No caso do carbonara, ele pode ter suas revisitações no exterior e na própria Itália, como tantos outros pratos. No Brasil, por exemplo, faz poucos anos que alguns ingredientes legítimos italianos chegaram”, explica o especialista. “Não era comum encontrar pecorino e muito menos guanciale ou pancetta nos supermercados, por isso o uso de bacon e de outros tipos de queijo – além do famigerado creme de leite. O Carbonara Day foi criado em 2017 para promover a receita que é considerada a autêntica, a aperfeiçoada em Roma com ingredientes típicos da região”.

Quando pensamos no carbonara, celebrado oficialmente nesta quinta-feira, 6, logo pensamos na culinária italiana. Afinal, o prato sempre foi reconhecido, nos quatro cantos, como uma iguaria do país europeu. Não à toa, há uma certa rigidez em seu preparo: precisa levar ovos, pecorino e guanciale, que vem das bochechas do porco -- nada de bacon. Mas, na última semana, uma polêmica renasceu: o carbonara talvez não seja italiano, mas americano.

Quem reacendeu a chama da polêmica foi o professor de História da Alimentação da Universidade de Parma, na Itália, Alberto Grandi. Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, o italiano resolveu dissecar alguns mitos da culinária de seu próprio país. Dentre seus alvos, tiramisú, pizza margherita, panetone e, claro, o carbonara. Sobre este último prato, Grandi vê como o exemplo perfeito: para ele, é a tentativa de criar uma identidade nacional e um sentimento cívico ao redor de uma receita que não nasceu, de fato, na Itália.

Ser ou não ser? Carbonara vive dilema existencial Foto: Felipe Rau|Estadão

Grandi tem como base um livro americano publicado em 1954, no qual a receita teria aparecido pela primeira vez. E ainda ressalta que esse “controle de qualidade” com os ingredientes é algo que também surgiu depois. Ele aponta que, no passado, o carbonara já teve queijo gruyère (1954, na revista La Cucina Italiana) e até “presunto e cogumelos salteados em fatias finas” (1958, restaurante Tre Scalini de Roma). Já o guanciale surgiu apenas na década de 1990. Antes disso, era bacon mesmo -- algo tipicamente americano.

“É uma questão de identidade”, Grandi diz ao Financial Times. “Quando uma comunidade se vê privada de seu senso de identidade, por causa de qualquer choque histórico ou fratura com seu passado, ela inventa tradições para atuar como os seus mitos fundadores”.

Qual a história de origem do Carbonara?

Hoje, à parte das polêmicas de Grandi, já há um intenso debate sobre a origem do carbonara. Além do registro do prato no livro americano, pelo menos mais duas origens são discutidas. “A versão mais difundida contava que a pasta alla carbonara foi criada em 1944 pelo cozinheiro bolonhês Renato Gualandi em Riccione, na costa da Emilia-Romagna. No decorrer de um almoço para oficiais ingleses e americanos que festejavam a liberação da cidade, Gualandi preparou uma massa com bacon, creme de leite, queijo e gema de ovo em pó, vinda da provisão de alimentos dos soldados, e cobriu com pimenta-do-reino escura”, explica Gerardo Landulfo, diretor da Italcam e delegado na Accademia Italiana della Cucina.

Outras versões asseguram que o nome vem dos “carbonari” (carvoeiros) que trabalhavam nos bosques das regiões da Umbria e Abruzzo. Assim, na verdade, o prato seria uma evolução da “cacio e uova” (queijo e ovo), receita catalogada pelo napolitano Francesco Palma, no livro “Il Principe dei Cuochi”, escrito em 1881. Ou seja: tudo na mão de italianos.

“A história na qual eu gosto e acredito é a dos carbonari, que eram um grupo responsável pela queima de lenha e produção de carvão. Esse grupo vivia com pouco e carregava ingredientes de fácil conservação: o guanciale e o pecorino junto com a pasta seca e ovos de aves variadas, que encontravam durante sua jornada para conceder mais cremosidade ao prato”, explica Fernanda Veiga, chef do Sta. Matta e com passagens pelo Evvai, Relais D’Amelia e Pipero. “Os clássicos romanos se baseiam grande parte em queijo pecorino (de ovelha) e pimenta do reino preta, pois eram os ingredientes aos quais tinham mais fácil acesso na época, com suas variações que usam ovos e molho de tomate, entre outros”.

Toda essa discussão, para Landulfo, não tira a importância do prato. “Existem pelo menos duas versões diferentes sobre a origem da maioria das receitas. O que devemos defender é o respeito à cultura gastronômica italiana e o uso de poucos e bons ingredientes. A lenda diz que Marco Polo trouxe o macarrão e o sorvete da China, mas foram os italianos que levaram a pasta e o gelato para o mundo inteiro”, afirma o especialista Gerardo Landulfo.

Como fazer um carbonara perfeito se sua origem é duvidosa?

Com tantas dúvidas sobre a origem do prato, será que não dá pra fazer o carbonara de outro jeito? Falar isso na Itália, em voz alta e em público, rende reprimendas vigorosas. Em 2010, por exemplo, a apresentadora britânica Holly Willoughby sugeriu que o carbonara poderia ser feito com presunto. Nisso, o chef italiano Gino D’Acampo repreendeu na hora: “se minha avó tivesse rodas ela teria sido uma bicicleta”, disse o chef italiano purista.

Hoje existe até mesmo pizza de carbonara Foto: Codo Meletti/ Estadão

Grandi, sobre essa questão da tradição e do purismo nos preparos, aponta na reportagem do Financial Times que isso está se tornando, dentre outras coisas, uma forma da extrema-direita abraçar a tradição e fazer com que as pessoas sejam conservadoras em seus “costumes gastronômicos”. Também há toda a questão do turismo italiano, que chega a bater em quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país europeu. Muito desse turismo está em busca de comer pratos tipicamente italianos preparados “do jeito que deve ser”.

Os entrevistados de Paladar seguem por caminhos bem distintos sobre como fazer um carbonara “de verdade”. A chef Fernanda Veiga, que chegou a trabalhar em um restaurante em Roma, capital da Itália, explica a complexidade do prato. “A temperatura e a cremosidade são pontos chaves para um resultado incrível, além, é claro, do uso de produtos de alta qualidade. Um ditado que aprendi lá foi ‘la carbonara non viene sempre bella ma viene sempre buona’. Ou seja, o carbonara nem sempre é belo, mas é muito bom”.

Para ela, a receita não muda. “Carbonara é feito classicamente de guanciale, pecorino, gema e pimenta do reino preta. Existem variações. Muitas colocam outros ingredientes e acabam por, algumas vezes, formar um novo prato. Não ruim, mas diverso”, completa.

Já Gerardo Landulfo, delegado na Accademia Italiana della Cucina, se mostra um pouco mais flexível sobre os preparos. “No caso do carbonara, ele pode ter suas revisitações no exterior e na própria Itália, como tantos outros pratos. No Brasil, por exemplo, faz poucos anos que alguns ingredientes legítimos italianos chegaram”, explica o especialista. “Não era comum encontrar pecorino e muito menos guanciale ou pancetta nos supermercados, por isso o uso de bacon e de outros tipos de queijo – além do famigerado creme de leite. O Carbonara Day foi criado em 2017 para promover a receita que é considerada a autêntica, a aperfeiçoada em Roma com ingredientes típicos da região”.

Quando pensamos no carbonara, celebrado oficialmente nesta quinta-feira, 6, logo pensamos na culinária italiana. Afinal, o prato sempre foi reconhecido, nos quatro cantos, como uma iguaria do país europeu. Não à toa, há uma certa rigidez em seu preparo: precisa levar ovos, pecorino e guanciale, que vem das bochechas do porco -- nada de bacon. Mas, na última semana, uma polêmica renasceu: o carbonara talvez não seja italiano, mas americano.

Quem reacendeu a chama da polêmica foi o professor de História da Alimentação da Universidade de Parma, na Itália, Alberto Grandi. Em entrevista ao jornal britânico Financial Times, o italiano resolveu dissecar alguns mitos da culinária de seu próprio país. Dentre seus alvos, tiramisú, pizza margherita, panetone e, claro, o carbonara. Sobre este último prato, Grandi vê como o exemplo perfeito: para ele, é a tentativa de criar uma identidade nacional e um sentimento cívico ao redor de uma receita que não nasceu, de fato, na Itália.

Ser ou não ser? Carbonara vive dilema existencial Foto: Felipe Rau|Estadão

Grandi tem como base um livro americano publicado em 1954, no qual a receita teria aparecido pela primeira vez. E ainda ressalta que esse “controle de qualidade” com os ingredientes é algo que também surgiu depois. Ele aponta que, no passado, o carbonara já teve queijo gruyère (1954, na revista La Cucina Italiana) e até “presunto e cogumelos salteados em fatias finas” (1958, restaurante Tre Scalini de Roma). Já o guanciale surgiu apenas na década de 1990. Antes disso, era bacon mesmo -- algo tipicamente americano.

“É uma questão de identidade”, Grandi diz ao Financial Times. “Quando uma comunidade se vê privada de seu senso de identidade, por causa de qualquer choque histórico ou fratura com seu passado, ela inventa tradições para atuar como os seus mitos fundadores”.

Qual a história de origem do Carbonara?

Hoje, à parte das polêmicas de Grandi, já há um intenso debate sobre a origem do carbonara. Além do registro do prato no livro americano, pelo menos mais duas origens são discutidas. “A versão mais difundida contava que a pasta alla carbonara foi criada em 1944 pelo cozinheiro bolonhês Renato Gualandi em Riccione, na costa da Emilia-Romagna. No decorrer de um almoço para oficiais ingleses e americanos que festejavam a liberação da cidade, Gualandi preparou uma massa com bacon, creme de leite, queijo e gema de ovo em pó, vinda da provisão de alimentos dos soldados, e cobriu com pimenta-do-reino escura”, explica Gerardo Landulfo, diretor da Italcam e delegado na Accademia Italiana della Cucina.

Outras versões asseguram que o nome vem dos “carbonari” (carvoeiros) que trabalhavam nos bosques das regiões da Umbria e Abruzzo. Assim, na verdade, o prato seria uma evolução da “cacio e uova” (queijo e ovo), receita catalogada pelo napolitano Francesco Palma, no livro “Il Principe dei Cuochi”, escrito em 1881. Ou seja: tudo na mão de italianos.

“A história na qual eu gosto e acredito é a dos carbonari, que eram um grupo responsável pela queima de lenha e produção de carvão. Esse grupo vivia com pouco e carregava ingredientes de fácil conservação: o guanciale e o pecorino junto com a pasta seca e ovos de aves variadas, que encontravam durante sua jornada para conceder mais cremosidade ao prato”, explica Fernanda Veiga, chef do Sta. Matta e com passagens pelo Evvai, Relais D’Amelia e Pipero. “Os clássicos romanos se baseiam grande parte em queijo pecorino (de ovelha) e pimenta do reino preta, pois eram os ingredientes aos quais tinham mais fácil acesso na época, com suas variações que usam ovos e molho de tomate, entre outros”.

Toda essa discussão, para Landulfo, não tira a importância do prato. “Existem pelo menos duas versões diferentes sobre a origem da maioria das receitas. O que devemos defender é o respeito à cultura gastronômica italiana e o uso de poucos e bons ingredientes. A lenda diz que Marco Polo trouxe o macarrão e o sorvete da China, mas foram os italianos que levaram a pasta e o gelato para o mundo inteiro”, afirma o especialista Gerardo Landulfo.

Como fazer um carbonara perfeito se sua origem é duvidosa?

Com tantas dúvidas sobre a origem do prato, será que não dá pra fazer o carbonara de outro jeito? Falar isso na Itália, em voz alta e em público, rende reprimendas vigorosas. Em 2010, por exemplo, a apresentadora britânica Holly Willoughby sugeriu que o carbonara poderia ser feito com presunto. Nisso, o chef italiano Gino D’Acampo repreendeu na hora: “se minha avó tivesse rodas ela teria sido uma bicicleta”, disse o chef italiano purista.

Hoje existe até mesmo pizza de carbonara Foto: Codo Meletti/ Estadão

Grandi, sobre essa questão da tradição e do purismo nos preparos, aponta na reportagem do Financial Times que isso está se tornando, dentre outras coisas, uma forma da extrema-direita abraçar a tradição e fazer com que as pessoas sejam conservadoras em seus “costumes gastronômicos”. Também há toda a questão do turismo italiano, que chega a bater em quase 10% do Produto Interno Bruto (PIB) do país europeu. Muito desse turismo está em busca de comer pratos tipicamente italianos preparados “do jeito que deve ser”.

Os entrevistados de Paladar seguem por caminhos bem distintos sobre como fazer um carbonara “de verdade”. A chef Fernanda Veiga, que chegou a trabalhar em um restaurante em Roma, capital da Itália, explica a complexidade do prato. “A temperatura e a cremosidade são pontos chaves para um resultado incrível, além, é claro, do uso de produtos de alta qualidade. Um ditado que aprendi lá foi ‘la carbonara non viene sempre bella ma viene sempre buona’. Ou seja, o carbonara nem sempre é belo, mas é muito bom”.

Para ela, a receita não muda. “Carbonara é feito classicamente de guanciale, pecorino, gema e pimenta do reino preta. Existem variações. Muitas colocam outros ingredientes e acabam por, algumas vezes, formar um novo prato. Não ruim, mas diverso”, completa.

Já Gerardo Landulfo, delegado na Accademia Italiana della Cucina, se mostra um pouco mais flexível sobre os preparos. “No caso do carbonara, ele pode ter suas revisitações no exterior e na própria Itália, como tantos outros pratos. No Brasil, por exemplo, faz poucos anos que alguns ingredientes legítimos italianos chegaram”, explica o especialista. “Não era comum encontrar pecorino e muito menos guanciale ou pancetta nos supermercados, por isso o uso de bacon e de outros tipos de queijo – além do famigerado creme de leite. O Carbonara Day foi criado em 2017 para promover a receita que é considerada a autêntica, a aperfeiçoada em Roma com ingredientes típicos da região”.

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