Por Maria da Paz TrefautEspecial para o Estado
Food design. Experimente escrever essas duas palavras num site de busca e se prepare para toda sorte de bizarrices. O termo serve para designar qualquer manifestação que use a comida como metáfora: de performances que repensam a maneira de servir refeições até composições vanguardistas cuja matéria-prima são alimentos. O que pouca gente fala é do design da comida, propriamente dito, e de sua funcionalidade. Da ciência que faz o sushiman variar o tamanho do sushi conforme a boca do cliente e estabelece parâmetros para o sucesso do casamento de um tipo de macarrão com determinado molho.
O design sempre frequentou a cozinha. O mais comum, porém, é pensar na funcionalidade dos utensílios ou na apresentação dos pratos. Mas ele vai muito além da ergonomia dos talheres ou do visual escolhido para a montagem de uma receita.
“Comer é consumir design: ele está todos os dias em nossa mesa. O design faz parte da história da alimentação e, como ela, foi influenciado por vários movimentos artísticos”, decreta Marc Brétillot, criador e professor do curso de design culinário da École Supérieur d’Art et de Design de Reims, uma referência na França. A concepção de alguns produtos, segundo ele, faz parte da etimologia da palavra. É o caso de fromage, que vem da palavra “formage” – feito na fôrma. Arquitetos que viraram chefs, como Ana Soares, da Mesa III, estão entre aqueles que melhor elaboram formas e funcionalidade. “Food design é trabalhar com as adversidades e usar o conhecimento para dar estrutura ao que se quer.
Aprendi isso em Bolonha, há mais de uma década, quando estava me aperfeiçoando”, conta a chef. “Lá, tinha uma senhora de 80 anos que trabalhava no grupo da Marcella Hazan e me disse assim: ‘Ouse, senhora Ana. A única coisa importante é manter a estrutura’.” Enquanto mostra como faz estampas nas massas, ela recorda um erro do qual extraiu boas lições. Foi quando preparou tortelli de zucca para uma festa comandada por Emmanuel Bassoleil e, na hora, a massa se abriu. “O recheio era muito úmido e a massa não tinha estrutura para suportar.”
A questão da forma e do conteúdo está presente desde os primórdios da chocolateria. As técnicas belgas usam mais moldes, e as francesas, mais produtos banhados. “Os carrés, como diz o nome, têm o formato quadrado porque partimos do recheio. Fazemos o recheio numa fôrma grande e, quando cristaliza, cortamos quadradinhos que, depois, são banhados”, diz a chocolatière Renata Arassiro.
Já as barras maciças devem ser mais finas para derreter na boca com rapidez. “Quem faz chocolate sabe que é assim, não pergunta por quê. Temos a noção de que todas as formas, que fazem parte da cultura do chocolate, foram desenvolvidas para facilitar a degustação e maximizar as sensações.”
Design e funcionalidade convivem lado a lado na cozinha desde antes da Revolução Industrial. O que nem sempre se faz, entretanto, é uma reflexão sobre os motivos que levam a determinado resultado.
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ESTÉTICA FUNCIONAL
FOTO: Daniel Teixeira/Estadão
Massas “A massa é um pacotinho feito para envelopar um recheio. Você desenha no plano e, depois, no espaço. Um recheio úmido precisa de proteção”, diz Ana Soares. “Penso nisso cada vez que monto um agnolotti, um cappelli ou um ravióli”. No caso dos formatos tradicionais, a estrutura praticamente dita a receita: os tubos, firmes e com ranhuras, são feitos sob medida para segurar molhos encorpados e com pedaços. Já os fios e fitas, longos, absorvem melhor os molhos cremosos.
FOTO: Livro ‘Fabrico Próprio’/Divulgação
Pastel de nata A massa precisa ser aberta por mãos treinadas para ficar bem fina e resistente e não deixar vazar o recheio. A receita do Convento de Santa Maria de Belém, comercializada desde 1837, é uma das formas que está no livro Fabrico Próprio, brincadeira de três designers portugueses – Rita João, Frederico Duarte e Pedro Ferreira – que decidiram estudar formas, mitos e histórias dos doces de seu país. Criaram um site que deu no livro, editado em 2008. Até agora, já analisaram 92 doces.
FOTO: Robson Fernandjes/Estadão
Hambúrguer A proporção entre carne e pão mudou bastante com o tempo. Antigamente, os hambúrgueres tinham muito pão e apenas 100g ou 120g de carne. Hoje, os bons partem de 200g e podem chegar até a 350g. Mas não é só juntar pão e carne: é preciso calcular a expansão do recheio quando o sanduíche é apertado com as mãos para ir à boca. Quando um hambúrguer é bem pensado, ele não deixa escapar pedaços pelas bordas.
Sushi
FOTO: Divulgação
“Nesse universo é tudo muito empírico, a proporção se acha fazendo, vendo se está pesado, se está leve. É difícil racionalizar a sensibilidade. No sushi, tento encontrar a liga certa para que o arroz se desmanche sozinho. Ele deve se separar com uma leve pressão da língua no céu da boca”, diz o arquiteto e sushiman Jun Sakamoto. Tsuyoshi Murakami, chef do Kinoshita, completa: “Em todas as técnicas da cozinha japonesa – grelhado, cozido, frito, curtido –, tudo é pensado para ser abraçado por dois hashis. Você não tem um garfo para espetar nem uma faca para cortar. O sushi se come com a mão e de uma bocada só”.