É sol, é sal, é flor de sal


Ventou ou nublou, ela magoa e murcha. Arisca, só aparece numa horinha certa, com sol de rachar. Flor de sal é assim:cheia de frescura, difícil de lidar, manhosa de colher. Talvez por isso seja cortejada por dez entre dez chefs e gourmets

Por joseorenstein
Atualização:

De Mossoró, RN

Ela já foi descrita como o caviar dos sais marinhos. Num tom mais lírico, como uma neve efêmera. O fato é que a flor de sal é um produto raro, um tanto caro – e, agora, brasileiro. No Rio Grande do Norte, polo que fornece quase todo o sal que se consome no Brasil, já são três as salinas que produzem o cobiçado tempero, que há algum tempo aparece nos cardápios de restaurantes de alto gabarito e nas cozinhas caseiras mais antenadas, mas sempre na versão importada.

A primeira a perceber que ela estava ali, cristalizando debaixo do nariz e do sol de rachar de Mossoró, foi a Cimsal. Em 2008, pôs no mercado a primeira flor de sal brasileira – acrescida de iodo, como manda a lei desde 1974. Agora em outubro, a Norsal, que faz o conhecido e refinado (porque fino mesmo, não porque chique) sal Lebre, também começou a exibir o produto nos supermercados. E, a partir do ano que vem, a Salinor, gigante responsável por 55% do sal do País – não apenas o comestível, mas o que vai para a indústria – também apresenta seus delicados cristais crocantes.

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A delicada extração da flor de sal. FOTOS: Filipe Araújo/Estadão

Fazer flor de sal exige cuidado incomum a uma indústria acostumada a abastecer grandes massas. É um processo artesanal, originalmente desenvolvido no sudoeste da França, em Guérande, onde no ano de 945 monges da abadia de Landévennec criaram e registram em ata um sistema de salinas produtivo até hoje.

A água do mar é levada – ou vai sozinha pela maré e pela gravidade – a tanques escavados de não mais de dois metros de profundidade. Vai passando de um tanque para outro, num complexo sistema de canais, ficando cada vez mais concentrada. Em um determinado nível de saturação da água, o sal começa a cristalizar-se e se precipitar no fundo. Esse é o sal marinho comum. Mas num momento do dia ocorre uma primavera. E brota a flor de sal.

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Na paisagem de Mossoró, as montanhas de sal.

Com o sol intenso de depois do meio-dia, clima seco e vento constante, uma fina rede cristalina se forma na superfície líquida concentrada. É mais ou menos como assoprar uma xícara de leite quente: forma-se uma nata. No caso da salina, uma renda esbranquiçada e translúcida naturalmente aflora, no contato da água com o ar. As leis da física e da química explicam que a ação da pressão dos gases do ar e do vapor d’água naquele ponto gera as condições para que esse delicado cristal de cloreto de sódio – e alguns outros minerais – se articule. São flocos frágeis, ocos e piramidais interligados.

É a flor de sal, que por ser oca se torna crocante na boca, dando a textura tão apreciada. E por ser mais leve é menos salgada e dissolve-se facilmente. Se bater um vento mais forte ou a noite cair, a flor murcha: submerge feito placa de gelo, unindo-se aos cristais que se formam embaixo, na coluna de líquido, grandes e grosseiros, que decantam.

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Não é neve, é duna de sal.

‘Vai ter?’ Nuvens intrusas polvilham o céu na manhã de fim de outubro, na salina Uirapurus, a 22 km de Mossoró. Guilherme Vieira, diretor da Cimsal, desconfia: “Estranho. Está nublado”. E vai ter flor de sal? “Não dá para prever.” No verão potiguar, marcado pela ausência de chuva entre maio e janeiro, nuvens são raras – por isso a desconfiança.

Salina adentro, estradinhas de terra se esgueiram por entre os enormes tanques de água do mar a evaporar. A linha do horizonte só é perturbada por montanhas de sal comum já extraído. No caminho, sair do carro é para bravos: o sol castiga e minimosquitos que vivem da matéria orgânica que se acumula na espuma expulsa da água pelo vento acorrem em enxame para qualquer nesga de pele humana.

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O circuito das águas, na salina, termina nos cristalizadores, tanques enormes em que o líquido marinho já foi quase todo evaporado. Como é outubro, época de colheita, escavadoras retiram a placa de sal grosso que cresce desde a estiagem. Ao lado das ruidosas máquinas, distinguem-se dois seres de branco, chapéu de palha na cabeça, haste de madeira na mão, a andar com placidez de um lado para o outro.

Já passa das 13h, e o vento nordeste dissipa as nuvens. É a hora da flor de sal. Se os cristalizadores são como campos de futebol, os minitanques onde se colhe o fino floco da gastronomia são a pequena área. Os seres de branco revelam-se Francisco Marcos e Gidean Pereira. Estão na cara do gol: vagando entre os minitanques de água concentrada de sal e, com uma peneira vão recolhendo a casca de flor de sal que começa a dominar a superfície.

Ao toque da peneira, a placa de flor de sal se quebra. Na mão, ela se desfaz. Francisco e Gidean recolhem um tanto e jogam os cristais num balaio de vime. Quando está cheio, despejam os flocos de flor de sal sobre uma mesa e espalham-nos com a mão. Ali, eles vão secar ao sol. Na França, não se pode fazer isso, pois a seca não é tão certeira e, se chover, perde-se tudo. Lá, o sal vai para uma estufa. Os flocos passam depois pela inspeção de Kátia Veronica e Francisca Iranilde, que retiram as impurezas como quem cata arroz. Elas também salpicam de iodo a flor de sal, que, ainda úmida, é envasada. Primavera pronta para consumo.

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>> Veja todos os textos publicados na edição de 15/11/12 do Paladar

De Mossoró, RN

Ela já foi descrita como o caviar dos sais marinhos. Num tom mais lírico, como uma neve efêmera. O fato é que a flor de sal é um produto raro, um tanto caro – e, agora, brasileiro. No Rio Grande do Norte, polo que fornece quase todo o sal que se consome no Brasil, já são três as salinas que produzem o cobiçado tempero, que há algum tempo aparece nos cardápios de restaurantes de alto gabarito e nas cozinhas caseiras mais antenadas, mas sempre na versão importada.

A primeira a perceber que ela estava ali, cristalizando debaixo do nariz e do sol de rachar de Mossoró, foi a Cimsal. Em 2008, pôs no mercado a primeira flor de sal brasileira – acrescida de iodo, como manda a lei desde 1974. Agora em outubro, a Norsal, que faz o conhecido e refinado (porque fino mesmo, não porque chique) sal Lebre, também começou a exibir o produto nos supermercados. E, a partir do ano que vem, a Salinor, gigante responsável por 55% do sal do País – não apenas o comestível, mas o que vai para a indústria – também apresenta seus delicados cristais crocantes.

A delicada extração da flor de sal. FOTOS: Filipe Araújo/Estadão

Fazer flor de sal exige cuidado incomum a uma indústria acostumada a abastecer grandes massas. É um processo artesanal, originalmente desenvolvido no sudoeste da França, em Guérande, onde no ano de 945 monges da abadia de Landévennec criaram e registram em ata um sistema de salinas produtivo até hoje.

A água do mar é levada – ou vai sozinha pela maré e pela gravidade – a tanques escavados de não mais de dois metros de profundidade. Vai passando de um tanque para outro, num complexo sistema de canais, ficando cada vez mais concentrada. Em um determinado nível de saturação da água, o sal começa a cristalizar-se e se precipitar no fundo. Esse é o sal marinho comum. Mas num momento do dia ocorre uma primavera. E brota a flor de sal.

Na paisagem de Mossoró, as montanhas de sal.

Com o sol intenso de depois do meio-dia, clima seco e vento constante, uma fina rede cristalina se forma na superfície líquida concentrada. É mais ou menos como assoprar uma xícara de leite quente: forma-se uma nata. No caso da salina, uma renda esbranquiçada e translúcida naturalmente aflora, no contato da água com o ar. As leis da física e da química explicam que a ação da pressão dos gases do ar e do vapor d’água naquele ponto gera as condições para que esse delicado cristal de cloreto de sódio – e alguns outros minerais – se articule. São flocos frágeis, ocos e piramidais interligados.

É a flor de sal, que por ser oca se torna crocante na boca, dando a textura tão apreciada. E por ser mais leve é menos salgada e dissolve-se facilmente. Se bater um vento mais forte ou a noite cair, a flor murcha: submerge feito placa de gelo, unindo-se aos cristais que se formam embaixo, na coluna de líquido, grandes e grosseiros, que decantam.

Não é neve, é duna de sal.

‘Vai ter?’ Nuvens intrusas polvilham o céu na manhã de fim de outubro, na salina Uirapurus, a 22 km de Mossoró. Guilherme Vieira, diretor da Cimsal, desconfia: “Estranho. Está nublado”. E vai ter flor de sal? “Não dá para prever.” No verão potiguar, marcado pela ausência de chuva entre maio e janeiro, nuvens são raras – por isso a desconfiança.

Salina adentro, estradinhas de terra se esgueiram por entre os enormes tanques de água do mar a evaporar. A linha do horizonte só é perturbada por montanhas de sal comum já extraído. No caminho, sair do carro é para bravos: o sol castiga e minimosquitos que vivem da matéria orgânica que se acumula na espuma expulsa da água pelo vento acorrem em enxame para qualquer nesga de pele humana.

O circuito das águas, na salina, termina nos cristalizadores, tanques enormes em que o líquido marinho já foi quase todo evaporado. Como é outubro, época de colheita, escavadoras retiram a placa de sal grosso que cresce desde a estiagem. Ao lado das ruidosas máquinas, distinguem-se dois seres de branco, chapéu de palha na cabeça, haste de madeira na mão, a andar com placidez de um lado para o outro.

Já passa das 13h, e o vento nordeste dissipa as nuvens. É a hora da flor de sal. Se os cristalizadores são como campos de futebol, os minitanques onde se colhe o fino floco da gastronomia são a pequena área. Os seres de branco revelam-se Francisco Marcos e Gidean Pereira. Estão na cara do gol: vagando entre os minitanques de água concentrada de sal e, com uma peneira vão recolhendo a casca de flor de sal que começa a dominar a superfície.

Ao toque da peneira, a placa de flor de sal se quebra. Na mão, ela se desfaz. Francisco e Gidean recolhem um tanto e jogam os cristais num balaio de vime. Quando está cheio, despejam os flocos de flor de sal sobre uma mesa e espalham-nos com a mão. Ali, eles vão secar ao sol. Na França, não se pode fazer isso, pois a seca não é tão certeira e, se chover, perde-se tudo. Lá, o sal vai para uma estufa. Os flocos passam depois pela inspeção de Kátia Veronica e Francisca Iranilde, que retiram as impurezas como quem cata arroz. Elas também salpicam de iodo a flor de sal, que, ainda úmida, é envasada. Primavera pronta para consumo.

>> Veja todos os textos publicados na edição de 15/11/12 do Paladar

De Mossoró, RN

Ela já foi descrita como o caviar dos sais marinhos. Num tom mais lírico, como uma neve efêmera. O fato é que a flor de sal é um produto raro, um tanto caro – e, agora, brasileiro. No Rio Grande do Norte, polo que fornece quase todo o sal que se consome no Brasil, já são três as salinas que produzem o cobiçado tempero, que há algum tempo aparece nos cardápios de restaurantes de alto gabarito e nas cozinhas caseiras mais antenadas, mas sempre na versão importada.

A primeira a perceber que ela estava ali, cristalizando debaixo do nariz e do sol de rachar de Mossoró, foi a Cimsal. Em 2008, pôs no mercado a primeira flor de sal brasileira – acrescida de iodo, como manda a lei desde 1974. Agora em outubro, a Norsal, que faz o conhecido e refinado (porque fino mesmo, não porque chique) sal Lebre, também começou a exibir o produto nos supermercados. E, a partir do ano que vem, a Salinor, gigante responsável por 55% do sal do País – não apenas o comestível, mas o que vai para a indústria – também apresenta seus delicados cristais crocantes.

A delicada extração da flor de sal. FOTOS: Filipe Araújo/Estadão

Fazer flor de sal exige cuidado incomum a uma indústria acostumada a abastecer grandes massas. É um processo artesanal, originalmente desenvolvido no sudoeste da França, em Guérande, onde no ano de 945 monges da abadia de Landévennec criaram e registram em ata um sistema de salinas produtivo até hoje.

A água do mar é levada – ou vai sozinha pela maré e pela gravidade – a tanques escavados de não mais de dois metros de profundidade. Vai passando de um tanque para outro, num complexo sistema de canais, ficando cada vez mais concentrada. Em um determinado nível de saturação da água, o sal começa a cristalizar-se e se precipitar no fundo. Esse é o sal marinho comum. Mas num momento do dia ocorre uma primavera. E brota a flor de sal.

Na paisagem de Mossoró, as montanhas de sal.

Com o sol intenso de depois do meio-dia, clima seco e vento constante, uma fina rede cristalina se forma na superfície líquida concentrada. É mais ou menos como assoprar uma xícara de leite quente: forma-se uma nata. No caso da salina, uma renda esbranquiçada e translúcida naturalmente aflora, no contato da água com o ar. As leis da física e da química explicam que a ação da pressão dos gases do ar e do vapor d’água naquele ponto gera as condições para que esse delicado cristal de cloreto de sódio – e alguns outros minerais – se articule. São flocos frágeis, ocos e piramidais interligados.

É a flor de sal, que por ser oca se torna crocante na boca, dando a textura tão apreciada. E por ser mais leve é menos salgada e dissolve-se facilmente. Se bater um vento mais forte ou a noite cair, a flor murcha: submerge feito placa de gelo, unindo-se aos cristais que se formam embaixo, na coluna de líquido, grandes e grosseiros, que decantam.

Não é neve, é duna de sal.

‘Vai ter?’ Nuvens intrusas polvilham o céu na manhã de fim de outubro, na salina Uirapurus, a 22 km de Mossoró. Guilherme Vieira, diretor da Cimsal, desconfia: “Estranho. Está nublado”. E vai ter flor de sal? “Não dá para prever.” No verão potiguar, marcado pela ausência de chuva entre maio e janeiro, nuvens são raras – por isso a desconfiança.

Salina adentro, estradinhas de terra se esgueiram por entre os enormes tanques de água do mar a evaporar. A linha do horizonte só é perturbada por montanhas de sal comum já extraído. No caminho, sair do carro é para bravos: o sol castiga e minimosquitos que vivem da matéria orgânica que se acumula na espuma expulsa da água pelo vento acorrem em enxame para qualquer nesga de pele humana.

O circuito das águas, na salina, termina nos cristalizadores, tanques enormes em que o líquido marinho já foi quase todo evaporado. Como é outubro, época de colheita, escavadoras retiram a placa de sal grosso que cresce desde a estiagem. Ao lado das ruidosas máquinas, distinguem-se dois seres de branco, chapéu de palha na cabeça, haste de madeira na mão, a andar com placidez de um lado para o outro.

Já passa das 13h, e o vento nordeste dissipa as nuvens. É a hora da flor de sal. Se os cristalizadores são como campos de futebol, os minitanques onde se colhe o fino floco da gastronomia são a pequena área. Os seres de branco revelam-se Francisco Marcos e Gidean Pereira. Estão na cara do gol: vagando entre os minitanques de água concentrada de sal e, com uma peneira vão recolhendo a casca de flor de sal que começa a dominar a superfície.

Ao toque da peneira, a placa de flor de sal se quebra. Na mão, ela se desfaz. Francisco e Gidean recolhem um tanto e jogam os cristais num balaio de vime. Quando está cheio, despejam os flocos de flor de sal sobre uma mesa e espalham-nos com a mão. Ali, eles vão secar ao sol. Na França, não se pode fazer isso, pois a seca não é tão certeira e, se chover, perde-se tudo. Lá, o sal vai para uma estufa. Os flocos passam depois pela inspeção de Kátia Veronica e Francisca Iranilde, que retiram as impurezas como quem cata arroz. Elas também salpicam de iodo a flor de sal, que, ainda úmida, é envasada. Primavera pronta para consumo.

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