Você não passa sem peru e tender, mas muita gente passa – e bem


Em festa de leitoa, peru não gorgoleja. Confira receitas de uma ceia de Natal bem brasileira

Por Heloisa Lupinacci
Atualização:

O Brasil de Norte a Sul come peru e tender na ceia de Natal – há pequenas variações, mais nos detalhes dos acompanhamentos que no tempero ou nas técnicas de preparo dos assados. Mas a ceia brasileira tem diversidade, sim. Por todo o Brasil, o tender e o peru dividem a mesa com receitas natalinas regionais.

O Paladar convidou chefs de diferentes partes do País para montar uma mesa com seus pratos de Natal. Thiago Castanho, do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque, em Belém; Mara Salles, do Tordesilhas, em São Paulo; Carla Tellini, do Bah, em Porto Alegre; Dona Lucinha de BH; Wanderson Medeiros, do Picuí em Maceió; e Antonio Perico, do Antiquarius, do Rio, trouxeram pratos, histórias – e as receitas.

Frango em ano bom

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Criado no interior da Paraíba, na cidade de Picuí, o chef Wanderson Medeiros relembra o Natal do sertão como sendo uma festa de mesa farta, “mas com o que tem”. E isso pode ser a comida do dia a dia – carne de sol, farinha e tudo – apenas em maior quantidade.

Quando o ano tinha sido bom, a prosperidade aparecia na mesa na forma de frango assado. “Galinha tinha sempre, a gente comida guisada. Todo mundo tinha galinha no quintal. No dia de festa, fazia frango, assado no forno”, conta Medeiros. O frango era servido com farofa de miúdos. “O pessoal comprava o maior frango, para ficar parecido com o peru.”

Frango assado pincelado com mel de engenho e acompanhado de farofa de bacon. Foto: Ailton Cruz/Estadão
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Pincelado com mel de engenho – melado de cana de açúcar – o frango fica agridoce e dourado. Para enfeitar, ovo cozido cortado em fatias, “porque não era comum ter frutas secas, nem em calda”.

Além do frango, a mesa do Natal podia ter cortes de porco ou pernil de bode, assado em churrasqueira ou na brasa. Para acompanhar, salpicão de frango, feito com repolho, uva-passa, e arroz sempre muito colorido.

Quando Wanderson tinha 11 anos, a família dele se mudou de Picuí para Maceió, onde seu pai, Rosimério Anacleto, abriu o restaurante Carne de Sol do Picuí, que, desde 1999, está sob comando de Wanderson. Ali na capital alagoana, segundo Wanderson, o Natal é mais parecido com o de todas as capitais brasileiras, com a predominância do peru. Mas é quando está explicando a diferença entre o frango do Natal e as galinhas caipiras do quintal que ele interrompe para dizer: “Eu tô aqui aguando”.

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+ RECEITA: Frango de natal ao mel de engenho com farofa de cebolas e bacon

Quartinho de ovelha

A chef gaúcha Carla Tellini não comia peru na infância. Nem ela e nem suas três irmãs. A ave era colocada a mesa na ceia da família em Porto Alegre, bem assada, cercada pelos acompanhamentos tradicionais. Mas as gurias nem provavam. Motivo? Elas eram amigas dos perus. De fato. Cresceram passando os fins de semana na Fazenda Quatro Meninas, de propriedade da família, no interior de Encruzilhada do Sul – uma serra entre Porto Alegre e o pampa, chamada de Serra do Sudeste. Na terra, batizada em homenagem a elas, havia grandes extensões de soja e trigo, um pequeno rebanho de gado de corte e algumas ovelhas que forneciam lã para cobertores e ponchos. Havia galinhas e patos, soltos. E alguns perus…

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“Éramos amigas dos bichos e brincávamos com eles a maior parte do tempo. Porém, em dezembro, um ou dois fins de semanas antes do Natal, sempre voltávamos da fazenda com um companheiro deitado silenciosamente na traseira da rural – o peru. Aquela volta era uma festa, vínhamos dando água e milho, abanando para aliviar o calor, enfim…”, lembra a dona do restaurante Bah, em Porto Alegre.

Pernil de ovelha. Foto: Felipe Giuriatti|Estadão

O peru era levado para engordar no pátio da casa. Mas as quatro irmãs passavam os dias cada vez mais afeiçoadas a ele, tentando convencer a família a excluí-lo da mesa de Natal. “Na véspera, o dia que o peru ia para o forno, era a maior tristeza. Imagina comer nosso amigo? Resultado: fazíamos greve de peru”, conta.

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A chef confessa que até hoje não faz questão de peru no Natal. Prefere os outros pratos da ceia da família: lombo ou pernil de porco, a tradicional salada de maionese de ovo com ervilha, milho, presunto em cubinhos, passas de uvas. “Tudo enfeitado com fios de ovos, figos, abacaxi e pêssegos em caldas, cerejas… claro!”.

Neste ano, Carla vai levar para a ceia da família um assado natalino popular na região da Campanha, ou Pampa – onde o peru é substituído pelo pernil de ovelha, carinhosamente chamado de “quartinho”. O pernil é assado com frutas e servido no seu molho, receita que a chef descobriu na fazenda de uma amiga, em Uruguaiana.

+ RECEITA: Pernil de ovelha

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Leitoinha de Penápolis

Os avós maternos de Mara Salles tiveram nove filhos. E cada um teve sete filhos, em média. Resultado, a conta chega, fácil, a 200 parentes na ceia de natal da Tia Filhinha, em Penápolis, no noroeste paulista. “A comilança é grande e o prato mais esperado é a leitoa – muitas leitoas”, conta a dona do restaurante Tordesilhas, em São Paulo.

Receita de leitoa assada com farofa de frutas Foto: Felipe Rau|Estadão

As leitoinhas de dois ou três meses são escolhidas no sítio do primo Tião dias antes. Abatidas ali mesmo, cortadas em quartos e distribuídas pelos freezers da família. No ano passado, foram oito leitoas. Quem tempera tudo na véspera é d. Dega, mãe da Mara – que faz aniversário no dia de Natal. Usa vinho branco, limão, sal, alho, pimenta-do-reino, cebola e deixa os quartos de leitoa na vinha d’alhos até a hora de ir ao forno para assar lentamente. Para acompanhar, frutas e pelo menos dois tipos de farofa: a de farinha de milho em flocos e bacon; e a farofa com frutas em compotas, cortadas ao meio, invenção familiar que juntou as frutas que decoravam a leitoa e a farofa servida com ela. “Amo Natal”, diz Mara, que neste ano vai passar as festas em São Paulo com os irmãos, mas não dispensa a leitoa. “Meu irmão, Nico, vai trazer a leitoa de Penápolis”, diz.

+ RECEITA: Leitoa assada acompanhada de farofa de frutas

Bacalhau no leite de coco

Em Belém do Pará faz parte da tradição natalina servir bacalhau cozido em leite de coco ou em leite de castanhas ao lado do peru e do tender. Mas a história do prato na família do chef Thiago Castanho começou há apenas dez anos. Na época, ele tinha quinze anos e trabalhava como entregador de pizzas – para sustentar a família, o pai havia montado uma pequena pizzaria quando os negócios no depósito de bebidas deram errado.

Bacalhau no leite de coco. Foto: Brunno Regis/Estadão

Seu Francisco preparava as pizzas com a ajuda da mulher, Carmem, e os meninos, Thiago e Felipe, se encarregavam da entrega. Trabalhavam todos os dias. E na noite de Natal, estavam os quatro na pizzaria. “A gente estava muito duro e não tinha dinheiro para comprar peru, então, meu pai comprou dois frangos assados e colocou na mesa”, conta Thiago. “E antes de comermos, ele disse que estávamos passando dificuldade, mas o que importava é que a família estava muito mais unida. Foi um momento emocionante”. No ano seguinte, seu Francisco já havia inaugurado o Remanso do Peixe e as coisas começavam a melhorar. “Na noite de Natal, meu pai preparou o bacalhau com leite de coco – e desde então este prato ficou marcado no Natal da família”.

+ RECEITA: Bacalhau ao leite de coco

Nada, nada… rabanada!

Na mesa da família Perico, em Elvas, no Alto Alentejo, o doce mais esperado no Natal eram as rabanadas, preparadas por dona Ália, mulher de Carlos Perico, segundo a tradição alentejana: com calda de vinho do Porto. Quando a família se mudou para o Rio de Janeiro e abriu o Antiquarius, em 1977, as rabanadas foram parar no cardápio. “Na época em que o restaurante começou, a gente morava no prédio em frente e minha mãe fazia todos os doces em casa mesmo”, conta Antonio Perico, filho do casal de fundadores. “Depois, minha mãe ensinou a receita a Maria das Neves, que trabalhava lá em casa, e hoje é a responsável pela doçaria do Antiquarius”, lembra Antonio que chegou ao Brasil aos nove anos de idade.

Rabanadas do restaurante Antiquarius, Foto: Wilton Junior|Estadão

A origem portuguesa da rabanada pode ser controversa (no Reino Unido e nos Estados Unidos é chamada de french toast, ou torrada francesa). Mas não há dúvidas de que foram os portugueses que trouxeram a receita para o Brasil. No Nordeste, vingou também o nome fatia de parida, pela tradição de ser oferecida às mulheres depois de dar à luz. O doce que surgiu para aproveitar o pão dormido não pode faltar na mesa de Natal do carioca – e nem nos restaurantes da família Perico. No Antiquarius, a temporada oficial começa em novembro e no Da Silva, em julho. Mas, com jeitinho, come-se o doce o ano todo. De preferência acompanhado de uma taça de Porto.

+ RECEITA: Rabanadas com vinho do Porto

Doce da Miss Brasil

Nascida há 80 anos numa família tradicional mineira, Dona Lucinha foi ensinada a ser moça prendada. Acontece que logo gostou de cozinhar e aprendeu a fazer os pães, biscoitos e quitandas que se exibiam nas mesas. Alguns doces, como o zezé leone, ela preparava apenas em dia de festa ou para convidados especiais, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Zezé leone, doce de baunilha com vinho do Porto. Foto: Felipe Rau/Estadão

À base de creme de gemas e baunilha sobre espuma de vinho do porto, não pode faltar na mesa de Natal e até hoje é um dos mais aguardados pelos filhos e netos de Dona Lucinha. “Durante o preparo, as crianças ficam loucas para passar o dedo e raspar a travessa”, conta a filha Elzinha Nunes, que cuida do Dona Lucinha em São Paulo. “O nome do doce é uma homenagem à Miss Brasil de 1922, que tinha a pele rosada.” Convidada para participar do Madrid Fusión, em janeiro, na Espanha, no time mineiro, Dona Lucinha está planejando montar no congresso uma mesa de doces mineiros. “Quero dar a eles uma lembrança dos nossos sabores”, diz ela.

+ RECEITA: Zezé leone

O Brasil de Norte a Sul come peru e tender na ceia de Natal – há pequenas variações, mais nos detalhes dos acompanhamentos que no tempero ou nas técnicas de preparo dos assados. Mas a ceia brasileira tem diversidade, sim. Por todo o Brasil, o tender e o peru dividem a mesa com receitas natalinas regionais.

O Paladar convidou chefs de diferentes partes do País para montar uma mesa com seus pratos de Natal. Thiago Castanho, do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque, em Belém; Mara Salles, do Tordesilhas, em São Paulo; Carla Tellini, do Bah, em Porto Alegre; Dona Lucinha de BH; Wanderson Medeiros, do Picuí em Maceió; e Antonio Perico, do Antiquarius, do Rio, trouxeram pratos, histórias – e as receitas.

Frango em ano bom

Criado no interior da Paraíba, na cidade de Picuí, o chef Wanderson Medeiros relembra o Natal do sertão como sendo uma festa de mesa farta, “mas com o que tem”. E isso pode ser a comida do dia a dia – carne de sol, farinha e tudo – apenas em maior quantidade.

Quando o ano tinha sido bom, a prosperidade aparecia na mesa na forma de frango assado. “Galinha tinha sempre, a gente comida guisada. Todo mundo tinha galinha no quintal. No dia de festa, fazia frango, assado no forno”, conta Medeiros. O frango era servido com farofa de miúdos. “O pessoal comprava o maior frango, para ficar parecido com o peru.”

Frango assado pincelado com mel de engenho e acompanhado de farofa de bacon. Foto: Ailton Cruz/Estadão

Pincelado com mel de engenho – melado de cana de açúcar – o frango fica agridoce e dourado. Para enfeitar, ovo cozido cortado em fatias, “porque não era comum ter frutas secas, nem em calda”.

Além do frango, a mesa do Natal podia ter cortes de porco ou pernil de bode, assado em churrasqueira ou na brasa. Para acompanhar, salpicão de frango, feito com repolho, uva-passa, e arroz sempre muito colorido.

Quando Wanderson tinha 11 anos, a família dele se mudou de Picuí para Maceió, onde seu pai, Rosimério Anacleto, abriu o restaurante Carne de Sol do Picuí, que, desde 1999, está sob comando de Wanderson. Ali na capital alagoana, segundo Wanderson, o Natal é mais parecido com o de todas as capitais brasileiras, com a predominância do peru. Mas é quando está explicando a diferença entre o frango do Natal e as galinhas caipiras do quintal que ele interrompe para dizer: “Eu tô aqui aguando”.

+ RECEITA: Frango de natal ao mel de engenho com farofa de cebolas e bacon

Quartinho de ovelha

A chef gaúcha Carla Tellini não comia peru na infância. Nem ela e nem suas três irmãs. A ave era colocada a mesa na ceia da família em Porto Alegre, bem assada, cercada pelos acompanhamentos tradicionais. Mas as gurias nem provavam. Motivo? Elas eram amigas dos perus. De fato. Cresceram passando os fins de semana na Fazenda Quatro Meninas, de propriedade da família, no interior de Encruzilhada do Sul – uma serra entre Porto Alegre e o pampa, chamada de Serra do Sudeste. Na terra, batizada em homenagem a elas, havia grandes extensões de soja e trigo, um pequeno rebanho de gado de corte e algumas ovelhas que forneciam lã para cobertores e ponchos. Havia galinhas e patos, soltos. E alguns perus…

“Éramos amigas dos bichos e brincávamos com eles a maior parte do tempo. Porém, em dezembro, um ou dois fins de semanas antes do Natal, sempre voltávamos da fazenda com um companheiro deitado silenciosamente na traseira da rural – o peru. Aquela volta era uma festa, vínhamos dando água e milho, abanando para aliviar o calor, enfim…”, lembra a dona do restaurante Bah, em Porto Alegre.

Pernil de ovelha. Foto: Felipe Giuriatti|Estadão

O peru era levado para engordar no pátio da casa. Mas as quatro irmãs passavam os dias cada vez mais afeiçoadas a ele, tentando convencer a família a excluí-lo da mesa de Natal. “Na véspera, o dia que o peru ia para o forno, era a maior tristeza. Imagina comer nosso amigo? Resultado: fazíamos greve de peru”, conta.

A chef confessa que até hoje não faz questão de peru no Natal. Prefere os outros pratos da ceia da família: lombo ou pernil de porco, a tradicional salada de maionese de ovo com ervilha, milho, presunto em cubinhos, passas de uvas. “Tudo enfeitado com fios de ovos, figos, abacaxi e pêssegos em caldas, cerejas… claro!”.

Neste ano, Carla vai levar para a ceia da família um assado natalino popular na região da Campanha, ou Pampa – onde o peru é substituído pelo pernil de ovelha, carinhosamente chamado de “quartinho”. O pernil é assado com frutas e servido no seu molho, receita que a chef descobriu na fazenda de uma amiga, em Uruguaiana.

+ RECEITA: Pernil de ovelha

Leitoinha de Penápolis

Os avós maternos de Mara Salles tiveram nove filhos. E cada um teve sete filhos, em média. Resultado, a conta chega, fácil, a 200 parentes na ceia de natal da Tia Filhinha, em Penápolis, no noroeste paulista. “A comilança é grande e o prato mais esperado é a leitoa – muitas leitoas”, conta a dona do restaurante Tordesilhas, em São Paulo.

Receita de leitoa assada com farofa de frutas Foto: Felipe Rau|Estadão

As leitoinhas de dois ou três meses são escolhidas no sítio do primo Tião dias antes. Abatidas ali mesmo, cortadas em quartos e distribuídas pelos freezers da família. No ano passado, foram oito leitoas. Quem tempera tudo na véspera é d. Dega, mãe da Mara – que faz aniversário no dia de Natal. Usa vinho branco, limão, sal, alho, pimenta-do-reino, cebola e deixa os quartos de leitoa na vinha d’alhos até a hora de ir ao forno para assar lentamente. Para acompanhar, frutas e pelo menos dois tipos de farofa: a de farinha de milho em flocos e bacon; e a farofa com frutas em compotas, cortadas ao meio, invenção familiar que juntou as frutas que decoravam a leitoa e a farofa servida com ela. “Amo Natal”, diz Mara, que neste ano vai passar as festas em São Paulo com os irmãos, mas não dispensa a leitoa. “Meu irmão, Nico, vai trazer a leitoa de Penápolis”, diz.

+ RECEITA: Leitoa assada acompanhada de farofa de frutas

Bacalhau no leite de coco

Em Belém do Pará faz parte da tradição natalina servir bacalhau cozido em leite de coco ou em leite de castanhas ao lado do peru e do tender. Mas a história do prato na família do chef Thiago Castanho começou há apenas dez anos. Na época, ele tinha quinze anos e trabalhava como entregador de pizzas – para sustentar a família, o pai havia montado uma pequena pizzaria quando os negócios no depósito de bebidas deram errado.

Bacalhau no leite de coco. Foto: Brunno Regis/Estadão

Seu Francisco preparava as pizzas com a ajuda da mulher, Carmem, e os meninos, Thiago e Felipe, se encarregavam da entrega. Trabalhavam todos os dias. E na noite de Natal, estavam os quatro na pizzaria. “A gente estava muito duro e não tinha dinheiro para comprar peru, então, meu pai comprou dois frangos assados e colocou na mesa”, conta Thiago. “E antes de comermos, ele disse que estávamos passando dificuldade, mas o que importava é que a família estava muito mais unida. Foi um momento emocionante”. No ano seguinte, seu Francisco já havia inaugurado o Remanso do Peixe e as coisas começavam a melhorar. “Na noite de Natal, meu pai preparou o bacalhau com leite de coco – e desde então este prato ficou marcado no Natal da família”.

+ RECEITA: Bacalhau ao leite de coco

Nada, nada… rabanada!

Na mesa da família Perico, em Elvas, no Alto Alentejo, o doce mais esperado no Natal eram as rabanadas, preparadas por dona Ália, mulher de Carlos Perico, segundo a tradição alentejana: com calda de vinho do Porto. Quando a família se mudou para o Rio de Janeiro e abriu o Antiquarius, em 1977, as rabanadas foram parar no cardápio. “Na época em que o restaurante começou, a gente morava no prédio em frente e minha mãe fazia todos os doces em casa mesmo”, conta Antonio Perico, filho do casal de fundadores. “Depois, minha mãe ensinou a receita a Maria das Neves, que trabalhava lá em casa, e hoje é a responsável pela doçaria do Antiquarius”, lembra Antonio que chegou ao Brasil aos nove anos de idade.

Rabanadas do restaurante Antiquarius, Foto: Wilton Junior|Estadão

A origem portuguesa da rabanada pode ser controversa (no Reino Unido e nos Estados Unidos é chamada de french toast, ou torrada francesa). Mas não há dúvidas de que foram os portugueses que trouxeram a receita para o Brasil. No Nordeste, vingou também o nome fatia de parida, pela tradição de ser oferecida às mulheres depois de dar à luz. O doce que surgiu para aproveitar o pão dormido não pode faltar na mesa de Natal do carioca – e nem nos restaurantes da família Perico. No Antiquarius, a temporada oficial começa em novembro e no Da Silva, em julho. Mas, com jeitinho, come-se o doce o ano todo. De preferência acompanhado de uma taça de Porto.

+ RECEITA: Rabanadas com vinho do Porto

Doce da Miss Brasil

Nascida há 80 anos numa família tradicional mineira, Dona Lucinha foi ensinada a ser moça prendada. Acontece que logo gostou de cozinhar e aprendeu a fazer os pães, biscoitos e quitandas que se exibiam nas mesas. Alguns doces, como o zezé leone, ela preparava apenas em dia de festa ou para convidados especiais, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Zezé leone, doce de baunilha com vinho do Porto. Foto: Felipe Rau/Estadão

À base de creme de gemas e baunilha sobre espuma de vinho do porto, não pode faltar na mesa de Natal e até hoje é um dos mais aguardados pelos filhos e netos de Dona Lucinha. “Durante o preparo, as crianças ficam loucas para passar o dedo e raspar a travessa”, conta a filha Elzinha Nunes, que cuida do Dona Lucinha em São Paulo. “O nome do doce é uma homenagem à Miss Brasil de 1922, que tinha a pele rosada.” Convidada para participar do Madrid Fusión, em janeiro, na Espanha, no time mineiro, Dona Lucinha está planejando montar no congresso uma mesa de doces mineiros. “Quero dar a eles uma lembrança dos nossos sabores”, diz ela.

+ RECEITA: Zezé leone

O Brasil de Norte a Sul come peru e tender na ceia de Natal – há pequenas variações, mais nos detalhes dos acompanhamentos que no tempero ou nas técnicas de preparo dos assados. Mas a ceia brasileira tem diversidade, sim. Por todo o Brasil, o tender e o peru dividem a mesa com receitas natalinas regionais.

O Paladar convidou chefs de diferentes partes do País para montar uma mesa com seus pratos de Natal. Thiago Castanho, do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque, em Belém; Mara Salles, do Tordesilhas, em São Paulo; Carla Tellini, do Bah, em Porto Alegre; Dona Lucinha de BH; Wanderson Medeiros, do Picuí em Maceió; e Antonio Perico, do Antiquarius, do Rio, trouxeram pratos, histórias – e as receitas.

Frango em ano bom

Criado no interior da Paraíba, na cidade de Picuí, o chef Wanderson Medeiros relembra o Natal do sertão como sendo uma festa de mesa farta, “mas com o que tem”. E isso pode ser a comida do dia a dia – carne de sol, farinha e tudo – apenas em maior quantidade.

Quando o ano tinha sido bom, a prosperidade aparecia na mesa na forma de frango assado. “Galinha tinha sempre, a gente comida guisada. Todo mundo tinha galinha no quintal. No dia de festa, fazia frango, assado no forno”, conta Medeiros. O frango era servido com farofa de miúdos. “O pessoal comprava o maior frango, para ficar parecido com o peru.”

Frango assado pincelado com mel de engenho e acompanhado de farofa de bacon. Foto: Ailton Cruz/Estadão

Pincelado com mel de engenho – melado de cana de açúcar – o frango fica agridoce e dourado. Para enfeitar, ovo cozido cortado em fatias, “porque não era comum ter frutas secas, nem em calda”.

Além do frango, a mesa do Natal podia ter cortes de porco ou pernil de bode, assado em churrasqueira ou na brasa. Para acompanhar, salpicão de frango, feito com repolho, uva-passa, e arroz sempre muito colorido.

Quando Wanderson tinha 11 anos, a família dele se mudou de Picuí para Maceió, onde seu pai, Rosimério Anacleto, abriu o restaurante Carne de Sol do Picuí, que, desde 1999, está sob comando de Wanderson. Ali na capital alagoana, segundo Wanderson, o Natal é mais parecido com o de todas as capitais brasileiras, com a predominância do peru. Mas é quando está explicando a diferença entre o frango do Natal e as galinhas caipiras do quintal que ele interrompe para dizer: “Eu tô aqui aguando”.

+ RECEITA: Frango de natal ao mel de engenho com farofa de cebolas e bacon

Quartinho de ovelha

A chef gaúcha Carla Tellini não comia peru na infância. Nem ela e nem suas três irmãs. A ave era colocada a mesa na ceia da família em Porto Alegre, bem assada, cercada pelos acompanhamentos tradicionais. Mas as gurias nem provavam. Motivo? Elas eram amigas dos perus. De fato. Cresceram passando os fins de semana na Fazenda Quatro Meninas, de propriedade da família, no interior de Encruzilhada do Sul – uma serra entre Porto Alegre e o pampa, chamada de Serra do Sudeste. Na terra, batizada em homenagem a elas, havia grandes extensões de soja e trigo, um pequeno rebanho de gado de corte e algumas ovelhas que forneciam lã para cobertores e ponchos. Havia galinhas e patos, soltos. E alguns perus…

“Éramos amigas dos bichos e brincávamos com eles a maior parte do tempo. Porém, em dezembro, um ou dois fins de semanas antes do Natal, sempre voltávamos da fazenda com um companheiro deitado silenciosamente na traseira da rural – o peru. Aquela volta era uma festa, vínhamos dando água e milho, abanando para aliviar o calor, enfim…”, lembra a dona do restaurante Bah, em Porto Alegre.

Pernil de ovelha. Foto: Felipe Giuriatti|Estadão

O peru era levado para engordar no pátio da casa. Mas as quatro irmãs passavam os dias cada vez mais afeiçoadas a ele, tentando convencer a família a excluí-lo da mesa de Natal. “Na véspera, o dia que o peru ia para o forno, era a maior tristeza. Imagina comer nosso amigo? Resultado: fazíamos greve de peru”, conta.

A chef confessa que até hoje não faz questão de peru no Natal. Prefere os outros pratos da ceia da família: lombo ou pernil de porco, a tradicional salada de maionese de ovo com ervilha, milho, presunto em cubinhos, passas de uvas. “Tudo enfeitado com fios de ovos, figos, abacaxi e pêssegos em caldas, cerejas… claro!”.

Neste ano, Carla vai levar para a ceia da família um assado natalino popular na região da Campanha, ou Pampa – onde o peru é substituído pelo pernil de ovelha, carinhosamente chamado de “quartinho”. O pernil é assado com frutas e servido no seu molho, receita que a chef descobriu na fazenda de uma amiga, em Uruguaiana.

+ RECEITA: Pernil de ovelha

Leitoinha de Penápolis

Os avós maternos de Mara Salles tiveram nove filhos. E cada um teve sete filhos, em média. Resultado, a conta chega, fácil, a 200 parentes na ceia de natal da Tia Filhinha, em Penápolis, no noroeste paulista. “A comilança é grande e o prato mais esperado é a leitoa – muitas leitoas”, conta a dona do restaurante Tordesilhas, em São Paulo.

Receita de leitoa assada com farofa de frutas Foto: Felipe Rau|Estadão

As leitoinhas de dois ou três meses são escolhidas no sítio do primo Tião dias antes. Abatidas ali mesmo, cortadas em quartos e distribuídas pelos freezers da família. No ano passado, foram oito leitoas. Quem tempera tudo na véspera é d. Dega, mãe da Mara – que faz aniversário no dia de Natal. Usa vinho branco, limão, sal, alho, pimenta-do-reino, cebola e deixa os quartos de leitoa na vinha d’alhos até a hora de ir ao forno para assar lentamente. Para acompanhar, frutas e pelo menos dois tipos de farofa: a de farinha de milho em flocos e bacon; e a farofa com frutas em compotas, cortadas ao meio, invenção familiar que juntou as frutas que decoravam a leitoa e a farofa servida com ela. “Amo Natal”, diz Mara, que neste ano vai passar as festas em São Paulo com os irmãos, mas não dispensa a leitoa. “Meu irmão, Nico, vai trazer a leitoa de Penápolis”, diz.

+ RECEITA: Leitoa assada acompanhada de farofa de frutas

Bacalhau no leite de coco

Em Belém do Pará faz parte da tradição natalina servir bacalhau cozido em leite de coco ou em leite de castanhas ao lado do peru e do tender. Mas a história do prato na família do chef Thiago Castanho começou há apenas dez anos. Na época, ele tinha quinze anos e trabalhava como entregador de pizzas – para sustentar a família, o pai havia montado uma pequena pizzaria quando os negócios no depósito de bebidas deram errado.

Bacalhau no leite de coco. Foto: Brunno Regis/Estadão

Seu Francisco preparava as pizzas com a ajuda da mulher, Carmem, e os meninos, Thiago e Felipe, se encarregavam da entrega. Trabalhavam todos os dias. E na noite de Natal, estavam os quatro na pizzaria. “A gente estava muito duro e não tinha dinheiro para comprar peru, então, meu pai comprou dois frangos assados e colocou na mesa”, conta Thiago. “E antes de comermos, ele disse que estávamos passando dificuldade, mas o que importava é que a família estava muito mais unida. Foi um momento emocionante”. No ano seguinte, seu Francisco já havia inaugurado o Remanso do Peixe e as coisas começavam a melhorar. “Na noite de Natal, meu pai preparou o bacalhau com leite de coco – e desde então este prato ficou marcado no Natal da família”.

+ RECEITA: Bacalhau ao leite de coco

Nada, nada… rabanada!

Na mesa da família Perico, em Elvas, no Alto Alentejo, o doce mais esperado no Natal eram as rabanadas, preparadas por dona Ália, mulher de Carlos Perico, segundo a tradição alentejana: com calda de vinho do Porto. Quando a família se mudou para o Rio de Janeiro e abriu o Antiquarius, em 1977, as rabanadas foram parar no cardápio. “Na época em que o restaurante começou, a gente morava no prédio em frente e minha mãe fazia todos os doces em casa mesmo”, conta Antonio Perico, filho do casal de fundadores. “Depois, minha mãe ensinou a receita a Maria das Neves, que trabalhava lá em casa, e hoje é a responsável pela doçaria do Antiquarius”, lembra Antonio que chegou ao Brasil aos nove anos de idade.

Rabanadas do restaurante Antiquarius, Foto: Wilton Junior|Estadão

A origem portuguesa da rabanada pode ser controversa (no Reino Unido e nos Estados Unidos é chamada de french toast, ou torrada francesa). Mas não há dúvidas de que foram os portugueses que trouxeram a receita para o Brasil. No Nordeste, vingou também o nome fatia de parida, pela tradição de ser oferecida às mulheres depois de dar à luz. O doce que surgiu para aproveitar o pão dormido não pode faltar na mesa de Natal do carioca – e nem nos restaurantes da família Perico. No Antiquarius, a temporada oficial começa em novembro e no Da Silva, em julho. Mas, com jeitinho, come-se o doce o ano todo. De preferência acompanhado de uma taça de Porto.

+ RECEITA: Rabanadas com vinho do Porto

Doce da Miss Brasil

Nascida há 80 anos numa família tradicional mineira, Dona Lucinha foi ensinada a ser moça prendada. Acontece que logo gostou de cozinhar e aprendeu a fazer os pães, biscoitos e quitandas que se exibiam nas mesas. Alguns doces, como o zezé leone, ela preparava apenas em dia de festa ou para convidados especiais, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Zezé leone, doce de baunilha com vinho do Porto. Foto: Felipe Rau/Estadão

À base de creme de gemas e baunilha sobre espuma de vinho do porto, não pode faltar na mesa de Natal e até hoje é um dos mais aguardados pelos filhos e netos de Dona Lucinha. “Durante o preparo, as crianças ficam loucas para passar o dedo e raspar a travessa”, conta a filha Elzinha Nunes, que cuida do Dona Lucinha em São Paulo. “O nome do doce é uma homenagem à Miss Brasil de 1922, que tinha a pele rosada.” Convidada para participar do Madrid Fusión, em janeiro, na Espanha, no time mineiro, Dona Lucinha está planejando montar no congresso uma mesa de doces mineiros. “Quero dar a eles uma lembrança dos nossos sabores”, diz ela.

+ RECEITA: Zezé leone

O Brasil de Norte a Sul come peru e tender na ceia de Natal – há pequenas variações, mais nos detalhes dos acompanhamentos que no tempero ou nas técnicas de preparo dos assados. Mas a ceia brasileira tem diversidade, sim. Por todo o Brasil, o tender e o peru dividem a mesa com receitas natalinas regionais.

O Paladar convidou chefs de diferentes partes do País para montar uma mesa com seus pratos de Natal. Thiago Castanho, do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque, em Belém; Mara Salles, do Tordesilhas, em São Paulo; Carla Tellini, do Bah, em Porto Alegre; Dona Lucinha de BH; Wanderson Medeiros, do Picuí em Maceió; e Antonio Perico, do Antiquarius, do Rio, trouxeram pratos, histórias – e as receitas.

Frango em ano bom

Criado no interior da Paraíba, na cidade de Picuí, o chef Wanderson Medeiros relembra o Natal do sertão como sendo uma festa de mesa farta, “mas com o que tem”. E isso pode ser a comida do dia a dia – carne de sol, farinha e tudo – apenas em maior quantidade.

Quando o ano tinha sido bom, a prosperidade aparecia na mesa na forma de frango assado. “Galinha tinha sempre, a gente comida guisada. Todo mundo tinha galinha no quintal. No dia de festa, fazia frango, assado no forno”, conta Medeiros. O frango era servido com farofa de miúdos. “O pessoal comprava o maior frango, para ficar parecido com o peru.”

Frango assado pincelado com mel de engenho e acompanhado de farofa de bacon. Foto: Ailton Cruz/Estadão

Pincelado com mel de engenho – melado de cana de açúcar – o frango fica agridoce e dourado. Para enfeitar, ovo cozido cortado em fatias, “porque não era comum ter frutas secas, nem em calda”.

Além do frango, a mesa do Natal podia ter cortes de porco ou pernil de bode, assado em churrasqueira ou na brasa. Para acompanhar, salpicão de frango, feito com repolho, uva-passa, e arroz sempre muito colorido.

Quando Wanderson tinha 11 anos, a família dele se mudou de Picuí para Maceió, onde seu pai, Rosimério Anacleto, abriu o restaurante Carne de Sol do Picuí, que, desde 1999, está sob comando de Wanderson. Ali na capital alagoana, segundo Wanderson, o Natal é mais parecido com o de todas as capitais brasileiras, com a predominância do peru. Mas é quando está explicando a diferença entre o frango do Natal e as galinhas caipiras do quintal que ele interrompe para dizer: “Eu tô aqui aguando”.

+ RECEITA: Frango de natal ao mel de engenho com farofa de cebolas e bacon

Quartinho de ovelha

A chef gaúcha Carla Tellini não comia peru na infância. Nem ela e nem suas três irmãs. A ave era colocada a mesa na ceia da família em Porto Alegre, bem assada, cercada pelos acompanhamentos tradicionais. Mas as gurias nem provavam. Motivo? Elas eram amigas dos perus. De fato. Cresceram passando os fins de semana na Fazenda Quatro Meninas, de propriedade da família, no interior de Encruzilhada do Sul – uma serra entre Porto Alegre e o pampa, chamada de Serra do Sudeste. Na terra, batizada em homenagem a elas, havia grandes extensões de soja e trigo, um pequeno rebanho de gado de corte e algumas ovelhas que forneciam lã para cobertores e ponchos. Havia galinhas e patos, soltos. E alguns perus…

“Éramos amigas dos bichos e brincávamos com eles a maior parte do tempo. Porém, em dezembro, um ou dois fins de semanas antes do Natal, sempre voltávamos da fazenda com um companheiro deitado silenciosamente na traseira da rural – o peru. Aquela volta era uma festa, vínhamos dando água e milho, abanando para aliviar o calor, enfim…”, lembra a dona do restaurante Bah, em Porto Alegre.

Pernil de ovelha. Foto: Felipe Giuriatti|Estadão

O peru era levado para engordar no pátio da casa. Mas as quatro irmãs passavam os dias cada vez mais afeiçoadas a ele, tentando convencer a família a excluí-lo da mesa de Natal. “Na véspera, o dia que o peru ia para o forno, era a maior tristeza. Imagina comer nosso amigo? Resultado: fazíamos greve de peru”, conta.

A chef confessa que até hoje não faz questão de peru no Natal. Prefere os outros pratos da ceia da família: lombo ou pernil de porco, a tradicional salada de maionese de ovo com ervilha, milho, presunto em cubinhos, passas de uvas. “Tudo enfeitado com fios de ovos, figos, abacaxi e pêssegos em caldas, cerejas… claro!”.

Neste ano, Carla vai levar para a ceia da família um assado natalino popular na região da Campanha, ou Pampa – onde o peru é substituído pelo pernil de ovelha, carinhosamente chamado de “quartinho”. O pernil é assado com frutas e servido no seu molho, receita que a chef descobriu na fazenda de uma amiga, em Uruguaiana.

+ RECEITA: Pernil de ovelha

Leitoinha de Penápolis

Os avós maternos de Mara Salles tiveram nove filhos. E cada um teve sete filhos, em média. Resultado, a conta chega, fácil, a 200 parentes na ceia de natal da Tia Filhinha, em Penápolis, no noroeste paulista. “A comilança é grande e o prato mais esperado é a leitoa – muitas leitoas”, conta a dona do restaurante Tordesilhas, em São Paulo.

Receita de leitoa assada com farofa de frutas Foto: Felipe Rau|Estadão

As leitoinhas de dois ou três meses são escolhidas no sítio do primo Tião dias antes. Abatidas ali mesmo, cortadas em quartos e distribuídas pelos freezers da família. No ano passado, foram oito leitoas. Quem tempera tudo na véspera é d. Dega, mãe da Mara – que faz aniversário no dia de Natal. Usa vinho branco, limão, sal, alho, pimenta-do-reino, cebola e deixa os quartos de leitoa na vinha d’alhos até a hora de ir ao forno para assar lentamente. Para acompanhar, frutas e pelo menos dois tipos de farofa: a de farinha de milho em flocos e bacon; e a farofa com frutas em compotas, cortadas ao meio, invenção familiar que juntou as frutas que decoravam a leitoa e a farofa servida com ela. “Amo Natal”, diz Mara, que neste ano vai passar as festas em São Paulo com os irmãos, mas não dispensa a leitoa. “Meu irmão, Nico, vai trazer a leitoa de Penápolis”, diz.

+ RECEITA: Leitoa assada acompanhada de farofa de frutas

Bacalhau no leite de coco

Em Belém do Pará faz parte da tradição natalina servir bacalhau cozido em leite de coco ou em leite de castanhas ao lado do peru e do tender. Mas a história do prato na família do chef Thiago Castanho começou há apenas dez anos. Na época, ele tinha quinze anos e trabalhava como entregador de pizzas – para sustentar a família, o pai havia montado uma pequena pizzaria quando os negócios no depósito de bebidas deram errado.

Bacalhau no leite de coco. Foto: Brunno Regis/Estadão

Seu Francisco preparava as pizzas com a ajuda da mulher, Carmem, e os meninos, Thiago e Felipe, se encarregavam da entrega. Trabalhavam todos os dias. E na noite de Natal, estavam os quatro na pizzaria. “A gente estava muito duro e não tinha dinheiro para comprar peru, então, meu pai comprou dois frangos assados e colocou na mesa”, conta Thiago. “E antes de comermos, ele disse que estávamos passando dificuldade, mas o que importava é que a família estava muito mais unida. Foi um momento emocionante”. No ano seguinte, seu Francisco já havia inaugurado o Remanso do Peixe e as coisas começavam a melhorar. “Na noite de Natal, meu pai preparou o bacalhau com leite de coco – e desde então este prato ficou marcado no Natal da família”.

+ RECEITA: Bacalhau ao leite de coco

Nada, nada… rabanada!

Na mesa da família Perico, em Elvas, no Alto Alentejo, o doce mais esperado no Natal eram as rabanadas, preparadas por dona Ália, mulher de Carlos Perico, segundo a tradição alentejana: com calda de vinho do Porto. Quando a família se mudou para o Rio de Janeiro e abriu o Antiquarius, em 1977, as rabanadas foram parar no cardápio. “Na época em que o restaurante começou, a gente morava no prédio em frente e minha mãe fazia todos os doces em casa mesmo”, conta Antonio Perico, filho do casal de fundadores. “Depois, minha mãe ensinou a receita a Maria das Neves, que trabalhava lá em casa, e hoje é a responsável pela doçaria do Antiquarius”, lembra Antonio que chegou ao Brasil aos nove anos de idade.

Rabanadas do restaurante Antiquarius, Foto: Wilton Junior|Estadão

A origem portuguesa da rabanada pode ser controversa (no Reino Unido e nos Estados Unidos é chamada de french toast, ou torrada francesa). Mas não há dúvidas de que foram os portugueses que trouxeram a receita para o Brasil. No Nordeste, vingou também o nome fatia de parida, pela tradição de ser oferecida às mulheres depois de dar à luz. O doce que surgiu para aproveitar o pão dormido não pode faltar na mesa de Natal do carioca – e nem nos restaurantes da família Perico. No Antiquarius, a temporada oficial começa em novembro e no Da Silva, em julho. Mas, com jeitinho, come-se o doce o ano todo. De preferência acompanhado de uma taça de Porto.

+ RECEITA: Rabanadas com vinho do Porto

Doce da Miss Brasil

Nascida há 80 anos numa família tradicional mineira, Dona Lucinha foi ensinada a ser moça prendada. Acontece que logo gostou de cozinhar e aprendeu a fazer os pães, biscoitos e quitandas que se exibiam nas mesas. Alguns doces, como o zezé leone, ela preparava apenas em dia de festa ou para convidados especiais, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Zezé leone, doce de baunilha com vinho do Porto. Foto: Felipe Rau/Estadão

À base de creme de gemas e baunilha sobre espuma de vinho do porto, não pode faltar na mesa de Natal e até hoje é um dos mais aguardados pelos filhos e netos de Dona Lucinha. “Durante o preparo, as crianças ficam loucas para passar o dedo e raspar a travessa”, conta a filha Elzinha Nunes, que cuida do Dona Lucinha em São Paulo. “O nome do doce é uma homenagem à Miss Brasil de 1922, que tinha a pele rosada.” Convidada para participar do Madrid Fusión, em janeiro, na Espanha, no time mineiro, Dona Lucinha está planejando montar no congresso uma mesa de doces mineiros. “Quero dar a eles uma lembrança dos nossos sabores”, diz ela.

+ RECEITA: Zezé leone

O Brasil de Norte a Sul come peru e tender na ceia de Natal – há pequenas variações, mais nos detalhes dos acompanhamentos que no tempero ou nas técnicas de preparo dos assados. Mas a ceia brasileira tem diversidade, sim. Por todo o Brasil, o tender e o peru dividem a mesa com receitas natalinas regionais.

O Paladar convidou chefs de diferentes partes do País para montar uma mesa com seus pratos de Natal. Thiago Castanho, do Remanso do Peixe e do Remanso do Bosque, em Belém; Mara Salles, do Tordesilhas, em São Paulo; Carla Tellini, do Bah, em Porto Alegre; Dona Lucinha de BH; Wanderson Medeiros, do Picuí em Maceió; e Antonio Perico, do Antiquarius, do Rio, trouxeram pratos, histórias – e as receitas.

Frango em ano bom

Criado no interior da Paraíba, na cidade de Picuí, o chef Wanderson Medeiros relembra o Natal do sertão como sendo uma festa de mesa farta, “mas com o que tem”. E isso pode ser a comida do dia a dia – carne de sol, farinha e tudo – apenas em maior quantidade.

Quando o ano tinha sido bom, a prosperidade aparecia na mesa na forma de frango assado. “Galinha tinha sempre, a gente comida guisada. Todo mundo tinha galinha no quintal. No dia de festa, fazia frango, assado no forno”, conta Medeiros. O frango era servido com farofa de miúdos. “O pessoal comprava o maior frango, para ficar parecido com o peru.”

Frango assado pincelado com mel de engenho e acompanhado de farofa de bacon. Foto: Ailton Cruz/Estadão

Pincelado com mel de engenho – melado de cana de açúcar – o frango fica agridoce e dourado. Para enfeitar, ovo cozido cortado em fatias, “porque não era comum ter frutas secas, nem em calda”.

Além do frango, a mesa do Natal podia ter cortes de porco ou pernil de bode, assado em churrasqueira ou na brasa. Para acompanhar, salpicão de frango, feito com repolho, uva-passa, e arroz sempre muito colorido.

Quando Wanderson tinha 11 anos, a família dele se mudou de Picuí para Maceió, onde seu pai, Rosimério Anacleto, abriu o restaurante Carne de Sol do Picuí, que, desde 1999, está sob comando de Wanderson. Ali na capital alagoana, segundo Wanderson, o Natal é mais parecido com o de todas as capitais brasileiras, com a predominância do peru. Mas é quando está explicando a diferença entre o frango do Natal e as galinhas caipiras do quintal que ele interrompe para dizer: “Eu tô aqui aguando”.

+ RECEITA: Frango de natal ao mel de engenho com farofa de cebolas e bacon

Quartinho de ovelha

A chef gaúcha Carla Tellini não comia peru na infância. Nem ela e nem suas três irmãs. A ave era colocada a mesa na ceia da família em Porto Alegre, bem assada, cercada pelos acompanhamentos tradicionais. Mas as gurias nem provavam. Motivo? Elas eram amigas dos perus. De fato. Cresceram passando os fins de semana na Fazenda Quatro Meninas, de propriedade da família, no interior de Encruzilhada do Sul – uma serra entre Porto Alegre e o pampa, chamada de Serra do Sudeste. Na terra, batizada em homenagem a elas, havia grandes extensões de soja e trigo, um pequeno rebanho de gado de corte e algumas ovelhas que forneciam lã para cobertores e ponchos. Havia galinhas e patos, soltos. E alguns perus…

“Éramos amigas dos bichos e brincávamos com eles a maior parte do tempo. Porém, em dezembro, um ou dois fins de semanas antes do Natal, sempre voltávamos da fazenda com um companheiro deitado silenciosamente na traseira da rural – o peru. Aquela volta era uma festa, vínhamos dando água e milho, abanando para aliviar o calor, enfim…”, lembra a dona do restaurante Bah, em Porto Alegre.

Pernil de ovelha. Foto: Felipe Giuriatti|Estadão

O peru era levado para engordar no pátio da casa. Mas as quatro irmãs passavam os dias cada vez mais afeiçoadas a ele, tentando convencer a família a excluí-lo da mesa de Natal. “Na véspera, o dia que o peru ia para o forno, era a maior tristeza. Imagina comer nosso amigo? Resultado: fazíamos greve de peru”, conta.

A chef confessa que até hoje não faz questão de peru no Natal. Prefere os outros pratos da ceia da família: lombo ou pernil de porco, a tradicional salada de maionese de ovo com ervilha, milho, presunto em cubinhos, passas de uvas. “Tudo enfeitado com fios de ovos, figos, abacaxi e pêssegos em caldas, cerejas… claro!”.

Neste ano, Carla vai levar para a ceia da família um assado natalino popular na região da Campanha, ou Pampa – onde o peru é substituído pelo pernil de ovelha, carinhosamente chamado de “quartinho”. O pernil é assado com frutas e servido no seu molho, receita que a chef descobriu na fazenda de uma amiga, em Uruguaiana.

+ RECEITA: Pernil de ovelha

Leitoinha de Penápolis

Os avós maternos de Mara Salles tiveram nove filhos. E cada um teve sete filhos, em média. Resultado, a conta chega, fácil, a 200 parentes na ceia de natal da Tia Filhinha, em Penápolis, no noroeste paulista. “A comilança é grande e o prato mais esperado é a leitoa – muitas leitoas”, conta a dona do restaurante Tordesilhas, em São Paulo.

Receita de leitoa assada com farofa de frutas Foto: Felipe Rau|Estadão

As leitoinhas de dois ou três meses são escolhidas no sítio do primo Tião dias antes. Abatidas ali mesmo, cortadas em quartos e distribuídas pelos freezers da família. No ano passado, foram oito leitoas. Quem tempera tudo na véspera é d. Dega, mãe da Mara – que faz aniversário no dia de Natal. Usa vinho branco, limão, sal, alho, pimenta-do-reino, cebola e deixa os quartos de leitoa na vinha d’alhos até a hora de ir ao forno para assar lentamente. Para acompanhar, frutas e pelo menos dois tipos de farofa: a de farinha de milho em flocos e bacon; e a farofa com frutas em compotas, cortadas ao meio, invenção familiar que juntou as frutas que decoravam a leitoa e a farofa servida com ela. “Amo Natal”, diz Mara, que neste ano vai passar as festas em São Paulo com os irmãos, mas não dispensa a leitoa. “Meu irmão, Nico, vai trazer a leitoa de Penápolis”, diz.

+ RECEITA: Leitoa assada acompanhada de farofa de frutas

Bacalhau no leite de coco

Em Belém do Pará faz parte da tradição natalina servir bacalhau cozido em leite de coco ou em leite de castanhas ao lado do peru e do tender. Mas a história do prato na família do chef Thiago Castanho começou há apenas dez anos. Na época, ele tinha quinze anos e trabalhava como entregador de pizzas – para sustentar a família, o pai havia montado uma pequena pizzaria quando os negócios no depósito de bebidas deram errado.

Bacalhau no leite de coco. Foto: Brunno Regis/Estadão

Seu Francisco preparava as pizzas com a ajuda da mulher, Carmem, e os meninos, Thiago e Felipe, se encarregavam da entrega. Trabalhavam todos os dias. E na noite de Natal, estavam os quatro na pizzaria. “A gente estava muito duro e não tinha dinheiro para comprar peru, então, meu pai comprou dois frangos assados e colocou na mesa”, conta Thiago. “E antes de comermos, ele disse que estávamos passando dificuldade, mas o que importava é que a família estava muito mais unida. Foi um momento emocionante”. No ano seguinte, seu Francisco já havia inaugurado o Remanso do Peixe e as coisas começavam a melhorar. “Na noite de Natal, meu pai preparou o bacalhau com leite de coco – e desde então este prato ficou marcado no Natal da família”.

+ RECEITA: Bacalhau ao leite de coco

Nada, nada… rabanada!

Na mesa da família Perico, em Elvas, no Alto Alentejo, o doce mais esperado no Natal eram as rabanadas, preparadas por dona Ália, mulher de Carlos Perico, segundo a tradição alentejana: com calda de vinho do Porto. Quando a família se mudou para o Rio de Janeiro e abriu o Antiquarius, em 1977, as rabanadas foram parar no cardápio. “Na época em que o restaurante começou, a gente morava no prédio em frente e minha mãe fazia todos os doces em casa mesmo”, conta Antonio Perico, filho do casal de fundadores. “Depois, minha mãe ensinou a receita a Maria das Neves, que trabalhava lá em casa, e hoje é a responsável pela doçaria do Antiquarius”, lembra Antonio que chegou ao Brasil aos nove anos de idade.

Rabanadas do restaurante Antiquarius, Foto: Wilton Junior|Estadão

A origem portuguesa da rabanada pode ser controversa (no Reino Unido e nos Estados Unidos é chamada de french toast, ou torrada francesa). Mas não há dúvidas de que foram os portugueses que trouxeram a receita para o Brasil. No Nordeste, vingou também o nome fatia de parida, pela tradição de ser oferecida às mulheres depois de dar à luz. O doce que surgiu para aproveitar o pão dormido não pode faltar na mesa de Natal do carioca – e nem nos restaurantes da família Perico. No Antiquarius, a temporada oficial começa em novembro e no Da Silva, em julho. Mas, com jeitinho, come-se o doce o ano todo. De preferência acompanhado de uma taça de Porto.

+ RECEITA: Rabanadas com vinho do Porto

Doce da Miss Brasil

Nascida há 80 anos numa família tradicional mineira, Dona Lucinha foi ensinada a ser moça prendada. Acontece que logo gostou de cozinhar e aprendeu a fazer os pães, biscoitos e quitandas que se exibiam nas mesas. Alguns doces, como o zezé leone, ela preparava apenas em dia de festa ou para convidados especiais, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek.

Zezé leone, doce de baunilha com vinho do Porto. Foto: Felipe Rau/Estadão

À base de creme de gemas e baunilha sobre espuma de vinho do porto, não pode faltar na mesa de Natal e até hoje é um dos mais aguardados pelos filhos e netos de Dona Lucinha. “Durante o preparo, as crianças ficam loucas para passar o dedo e raspar a travessa”, conta a filha Elzinha Nunes, que cuida do Dona Lucinha em São Paulo. “O nome do doce é uma homenagem à Miss Brasil de 1922, que tinha a pele rosada.” Convidada para participar do Madrid Fusión, em janeiro, na Espanha, no time mineiro, Dona Lucinha está planejando montar no congresso uma mesa de doces mineiros. “Quero dar a eles uma lembrança dos nossos sabores”, diz ela.

+ RECEITA: Zezé leone

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