De Bragança e Tracuateua, Pará
Ela é a rainha da feira. Exibe orgulhosa seu nome, chama a atenção de quem passa. É a menina dos olhos da bancada de farinhas, a mais pedida, a mais procurada. Amarelinha, crocante, intensa. Das melhores do País. É de mandioca e é d'água. E é de onde? De Bragança.
A fama da farinha bragantina começou pelos idos de 1900, quando uma estrada de ferro cortou os 222 km que separam o nordeste paraense de Belém. A capital passou a ser abastecida com a farinha da região, já intensa produtora. Confiável, sempre bem torrada, saborosa, sem bagaço, conquistou os paraenses. A ferrovia foi desativada em 1965, mas a tradição herdada dos índios tupinambás seguiu ganhando força e, hoje, a região se prepara para pleitear o selo de indicação geográfica para a farinha.
Um grupo de trabalho envolvendo produtores locais, as prefeituras dos cinco municípios da região de Bragança e instituições de fomento se prepara para entrar no ano que vem com o pedido de Indicação de Procedência (IP), um atestado de garantia de origem do produto, protegendo consumidores e agricultores de fraudes. Um dos desafios do processo é descrever o modo de fazer da farinha bragantina. É preciso deixar claro seu diferencial sem restringir a cultura viva que é a produção artesanal – cada família (estima-se que sejam mais de 4 mil produtores na região) tem seu segredo, seu costume.
A farinha de Bragança é uma farinha d'água, o que significa que a mandioca passa por um processo de fermentação na água. Neste caso, fica pubando (fermentando), em tanque ou igarapé, por cerca de quatro dias. Depois, é descascada e pode ficar até mais dois dias submersa. Só então é levada, já amolecida, para a casa de farinha, onde é triturada (amassada na mão ou passada em uma máquina chamada de catitu), prensada (em sacos ou no tipiti, espremedor de palha trançada), peneirada e torrada.
Além do tempo de fermentação, responsável pelo sabor intenso, outro segredo é a torra: ela vai ainda úmida para o tacho, é mexida manualmente durante o processo chamado de escaldamento, quando ela pré-cozinha antes de torrar – daí a crocância. Já a cor amarelada é decorrente das variedades de mandioca usadas, nada de corantes.
O produtor mais famoso da região é seu Bené (leia abaixo). Conhecido como Mestre da Farinha, mantém as técnicas tradicionais que aprendeu com sua mãe. Outro produtor de respeito é o Sítio Fênix, onde Nazaré Rodrigues montou uma estrutura semi-industrial com seu filho David Pereira, pra produzir a farinha Sabor de Bragança. Além do catitu, eles usam prensa, tacho automatizado e peneira elétrica. A dupla inova até nos sabores, além da tradicional, fazem farinha com açaí, jambu e charque.
Tanto Nazaré quanto seu Bené se orgulham de suas farinhas serem “muito bem lavadas”. Os dois produtores lavam a mandioca em água limpa antes de ela ser prensada, um passo opcional que ajuda a diminuir a acidez da raiz. O resultado é uma farinha de gosto ainda complexo, porém mais suave e menos ácido - “pode comer o dia todo que não vai irritar o estômago”, garante seu Bené.
Por sua textura e sabor, a farinha de Bragança é muito procurada por chefs de todo o País. Antônia Padvaiskas, do Empório Poitara, traz para São Paulo cerca de 150 quilos por mês, para vender para restaurantes e clientes. Ela é usada por Helena Rizzo como crosta da banana caiçara com edamame e caldo de peixe, parte do menu-degustação do Maní. Também já esteve no cardápio do Tête à Tête, de Gabriel Matteuzzi e Guilherme Vinha. No menu dos orixás do Clandestino, de Bel Coelho, surgia bem torradinha na farofa de camarão seco que acompanhava camarões grelhados, purê de feijão-fradinho e vatapá líquido. No Meats, Paulo Yoller chuvisca a farinha bragantina por cima do hambúrguer Não Era Amor (R$ 34), que também leva queijo coalho, vinagrete com jambu e tucupi e ketchup de maracujá.
Teresa Corção, chef d’O Navegador, no Rio, usa a farinha de seu Bené, seu velho conhecido, como cuscuz – hidratada com leite de coco e tucupi – servido com peixe grelhado e molho de moqueca capixaba (R$ 78).
No Remanso do Bosque, em Belém, Thiago Castanho, que passou os verões da infância na casa da avó materna, em Bragança, também serve cuscuz de farinha d’água com lombo de robalo na manteiga (R$ 68) e com pescada amarela e legumes assados (R$ 70). Misturada com farinha de pão, também é usada para empanar filés de peixe.
Saindo de restaurantes, no Pará, a farinha d’água é consumida em todas as refeições, seca ou úmida. É a granola da manhã, estrela do almoço e jantar, par obrigatório do açaí e das caldeiradas, parceira de frutas e compotas, petisco durante a tarde. “A farinha é o pão do caboclo”, como bem diz Thiago.
Seu Bené ensina com as mãos e com o coração
“São muitos segredos para fazer farinha boa”. Quem diz é Benedito Batista da Silva, seu Bené, referência quando o assunto é farinha de Bragança. Com 70 anos de idade e 62 de roçado, é um grande professor, conhecido como Mestre da Farinha.
Conheça seu Bené, o Mestre da Farinha
Aprendeu a fazer farinha com sua mãe e paneiros, cesta de palha trançada à mão e recoberta com folhas frescas de guarimã usada como embalagem para a farinha, com a vida. Apenas com a primeira série do ensino fundamental completa, diz que se sente “tão rico e tão sábio quanto um doutor”. Muito respeitado, dá aulas sobre mandioca, farinha e artesanato para quem quiser ouvir. E assim, leva para frente as técnicas ancestrais que executa com tanta habilidade.
Em 2005, a Teresa Corção, chef do restaurante O Navegador, no Rio, já estudava mandioca e como ela definia a identidade culinária brasileira. Quando foi convidada para dar uma palestra sobre o assunto nos EUA, decidiu fazer um documentário sobre produtores artesanais de farinha. E foi assim que chegou até seu Bené (ela tinha visto um de seus paneiros no Ver-o-Peso anos antes e se impressionado). O curta-metragem O Professor da Farinha foi apresentado no congresso americano, noSlow Food on Film 2006, no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Para Teresa, o filme culminou na criação do Instituto Maniva. Para seu Bené, foi o início de uma trajetória de reconhecimento.
No ano seguinte, o paraense foi parte da comitiva que representou o Brasil no Terra Madre grande evento mundial do Slow Food em Turim, na Itália, e fez seu paneiro na frente de uma grande plateia. Seu ida ao evento - e primeira viagem de avião - foi o tema de uma segundo documentário também produzido por Teresa, Seu Bené vai à Itália, lançado em 2008.
Grande estudioso da farinha, até hoje, mantém as técnicas tradicionais de preparo não por apego, mas por experimentação. Ele já usa o catitu e não deixa mais a mandioca de molho no rio. Mas segue com o tacho de cobre, o cocho de madeira talhada (onde a massa úmida é trabalhada e a farinha já pronta descansa; ele testou outras madeiras e alumínio e não gostou do resultado), as peneiras manuais, o tipiti e, principalmente, o paneiro. Ele é um dos únicos que ainda fazem o artesanato, que, além de preservar a farinha crocante por um ano, dá a ela um aroma particular.
“A minha história começou tudo por conta desse artesanato aqui: o paneiro. Comecei muito jovem na agricultura, cresci sem pai, filho de mãe solteira, lutando”, conta. Hoje, produz 150 quilos de farinha (entre a lavada, de tapioca, de coco e uma versão mais torrada para fazer farofa) por dia em sua casa na região rural de Tracuateua.
O processo da IG
No Brasil, há duas modalidades de Indicação Geográfica concedidas pelo INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), órgão nacional também responsável por marcas e patentes. A Indicação de Procedência (IP) garante que determinado item veio da região reconhecida pela sua produção, tendo, portanto, características próprias e identidade reconhecida. A Denominação de Origem (DO) é dada a produtos e serviços cujas características se devam essencialmente pelos fatores naturais e humanos de um local.
Como é feita a farinha de Bragança no Sítio Fênix
O País tem 44 IPs e 18 DOs, sendo 46 deles produtos alimentícios. Há ainda 38 pedidos em avaliação. Entre eles, três regiões buscam a IP para suas farinhas de mandioca: Cruzeiro do Sul (AC), litoral do Paraná e região de Uarini, no Amazonas.
Em Bragança, um grupo de trabalho envolvendo produtores locais, prefeituras e instituições como Sebrae, Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará) e Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) está se articulando para entrar com o pedido no INPI já no ano que vem. Até agora, já foram decididas a delimitação da área geográfica que ganhará a IP (os municípios de Bragança, Tracuateua, Augusto Corrêa, Viseu e Santa Luzia do Pará) e a entidade que será portadora do selo (a Cooperativa Mista de Agricultores Familiares do Caeté, Coomac). Os próximos passos serão um parecer de uma universidade demonstrando a origem da fama da farinha d´água de Bragança e seu valor cultural e histórico, e a descrição oficial do modo de produção.
Onde comprar
Empório Poitara. Encomendas por 97310-5024 ou toni.ginger@gmail.com, R$ 25/kg Casa Tucá. R. Tijuco Preto, 262, Tatuapé, 3596-4740, R$ 22/500gCombu da Amazônia. Rua Gama Lobo, 2.319, Alto do Ipiranga, 2307-6100, R$ 19/600gCasa Santa Luzia. Al. Lorena, 1.471, Jd. Paulista, 3897-5000, R$ 46/1,3kg (vem no paneiro)Box Amazônia no Mercado Municipal de Pinheiros. Rua Pedro Cristi, 89, Pinheiros, 3032-0875, R$ 20/500g
Quer uma sugestão de trilha sonora para ler esta matéria? Conheça o retumbão, a dança típica da Marujada, grande festa popular de Bragança, e ouça um carimbó do mestre Pinduca, que embalou a viagem ao Pará (a farinha de Bragança é de mandioca, mas não, não é de tapioca).