É interessante notar como o cinema e a gastronomia costumam andar de mãos dadas com histórias leves, geralmente sem muitas complicações, como é o caso de Chef e Toscana. O ato de cozinhar, afinal, traz à memória aquele momento mais descontraído na cozinha ou, até mesmo, observando a comida como uma forma de amor, de relação. Por isso é tão interessante notar o tom mais frio, tenso e intenso do dinamarquês Sabor do Desejo.
Dirigido por Christoffer Boe, que assina o roteiro ao lado de Tobias Lindholm, o longa-metragem conta a história de Maggi (Katrine Greis-Rosenthal) e Carsten (Nikolaj Coster-Waldau, conhecido por ser Jaime Lannister de Game of Thrones). Ele é chefe de cozinha, ela é a mente por trás de tudo. É dessa mistura de personalidades que o filme mostra a obsessão na sina de conquistar a cobiçada estrela Michelin.
Ao invés dessa leveza tradicional dos filmes sobre gastronomia, Boe coloca toda a sua experiência com histórias mais áridas, como já foi visto em Departamento Q: Em Busca de Vingança e Beast. No entanto, é o roteiro de Tobias que apresenta esse mergulho ao mundo real e já visto em seus outros filmes, como A Caça e Druk: Mais uma Rodada. Nessa mistura, a cozinha fica afastada de fantasias e abraçada à dureza do mundo real.
Entre a estrela e a paixão
Toda essa história acaba sendo margeada, principalmente, pelo desejo de Maggi e Carsten em entrarem no Guia Michelin. A publicação nasceu, na verdade, como uma jogada de marketing de seu tempo: os irmãos Andre e Edouard Michelin fundaram essa companhia de pneus no final do século 19, quando existiam cerca de 3 mil veículos na França. Para tentar aumentar a venda de pneus, começaram a pensar em formas de fazer os carros circularem.
Foi aí que surgiu a ideia de criar um guia com bons restaurantes ao redor da Europa -- e, posteriormente, ao redor do mundo -- para que os clientes da Michelin pudessem pegar o carro e sair rodando por aí. Era, enfim, uma forma de gastar os pneus. Deu certo: apesar do guia ter começado como uma jogada de marketing na prática, fazendo os clientes rodarem por aí, ele acabou evoluindo e se tornando uma forma dos restaurantes se destacarem.
Em Sabor do Desejo, é a ânsia de estar nesse guia que move os personagens. É a busca por validação, por reconhecimento. A vida de Maggi e Carsten deixou de existir para além dos limites da cozinha e se tornou refém dessa aprovação externa. Tobias sabe como inserir esse tipo de preocupação dentro da história, colocando um pouco de tensão extra nos personagens, como fez com os professores em Druk, que buscam saídas na bebida.
Comida e comunicação
No entanto, Sabor do Desejo vai além de um filme que fala sobre obsessão e essa busca em aparecer no Guia Michelin. Em última instância, o longa-metragem dinamarquês fala acertadamente sobre como a gastronomia e o simples ato de cozinhar pode ser uma forma de comunicação. O filme é narrativamente mais agressivo, mas logo volta ao que fez Chef ou Ratatouille e mostra esse relacionamento que surge ao redor da criação de um prato.
Maggi e Carsten vivem em seus universos, em suas bolhas de obsessão. No entanto, quando ela come da comida do marido ou, então, ele ouve as sugestões da esposa, os dois vão explorando desejos, sentimentos e sentidos que, até aquele momento, estavam amortecidos em uma camada profunda, bem profunda, dessa ganância que cobre a rotina de uma cozinha de alto nível como é essa que aparece em Sabor do Desejo.
É aí que o filme volta a mostrar como Tobias Lindholm é um eterno contador de histórias, mesmo mergulhadas no caos: assim como a cena de dança em Druk é libertadora, apesar do caos ao redor do personagem de Mads Mikkelsen, a sequência final de Sabor do Desejo traz todo o peso e importância dessa rotina de um restaurante premiado. Não é fácil, possui muitos obstáculos no caminho. Você fica ferido. Mas, no final, tudo acaba valendo a pena.
O filme está disponível em compra ou aluguel digital em plataformas como iTunes, Google Play, YouTube, NOW e Vivo Play.