A expressão pão fresquinho está ganhando um novo significado. Esqueça o cheiro de pão recém-saído do forno, pode ser que na próxima vez que entrar na padaria o aroma fresquinho seja o do trigo. Isso porque alguns padeiros e chefs passaram a moer a sua própria farinha. A ideia é simples: farinha moída na hora deixa o pão melhor e com mais sabor.
N’A Padeira, na Vila Beatriz, o espaço de 38 m² que acomoda a produção e a loja agora também abriga um charmoso moinho de madeira à vista do cliente. Alethea Suedt, a padeira dona da casa, olha para o equipamento que chegou há um mês da Áustria como uma criança admirando um brinquedo novo.
O moinho Ostiroller foi escolhido a dedo: um modelo horizontal com cilindro de pedra produzido há mais de 250 anos pela mesma família. É o primeiro e, por enquanto, o único no País. Com ele, Alethea transforma 25 kg de trigo em farinha por semana – uma parcela ainda muito pequena comparada às quase duas toneladas de farinha que ela usa por mês. Mas o importante é que a farinha moída por ela já está virando pão: há quatro semanas, entre as fornadas de croissant e outros pães de fermentação natural, ela assa pelo menos quatro filões feitos com a sua própria farinha 100% integral.
“Não foi fácil, tive que reaprender a fazer pão. É um produto muito diferente, mais vivo, volátil e cheio de personalidade, fiz muitos testes até chegar a um pão como o que já faço com a farinha tradicional.”
O pão em questão foi batizado de “nosso pão” (os clientes mais fiéis participaram da evolução da receita), ele tem casca escura, intenso sabor de trigo, notas de cacau e uma acidez elevada que faz a boca salivar.
A padeira conta que queria ter um elo com todas as etapas da cadeia de produção do pão. Pensa que ela vai parar por aí nesse ciclo? Que nada, já está plantando trigo, em um sítio em Piracaia, no interior de São Paulo. Ela espera usar sua própria produção até 2020.
Foi buscando novos sabores que a padeira Hanny Guimarães, que hoje toca a padaria do Futuro Refeitório, decidiu experimentar moer a própria farinha. “O pão produzido com farinha recém moída tem outro sabor, o sabor do próprio trigo, com mais personalidade. É o mesmo princípio do café, quanto mais fresco, mais propriedades e, com isso, mais saboroso.”
O moinho de Hanny é bem menor que o de Alethea, um modelo de pequeno porte, caseiro, que ela trouxe na mala, também da Áustria. Ela mói trigo e centeio suficientes apenas, por enquanto, para a fornada de dois fins de semana por mês. As fornadas são anunciadas nas redes sociais do restaurante.
“O de centeio parece que tem chocolate na massa, é uma loucura”, conta a padeira, que ainda quer expandir a brincadeira para outros grãos, como espelta (trigo selvagem), entre outras espécies antigas. “Para mim, o próximo passo na panificação não é colocar mais coisas dentro do pão, azeitona, ervas etc., e sim pirar nos ingredientes básicos e brincar com os grãos frescos”, aposta.
Usar farinha fresca já estava nos planos de Gabriella Zanforlin antes mesmo de ela abrir as portas da sua Zan Pan. “Um pão é feito com pouquíssimos elementos e o resultado está diretamente ligado à qualidade do trigo e do fermento usados.”
Até chegar às prateleiras do supermercado, a farinha passa por diferentes processos, perdendo nutrientes e sabor. Mesmo a farinha integral industrializada é refinada antes de receber de volta seus componentes, como o gérmen e o farelo. “Ao moer a minha farinha, tenho 100% do grão, tudo está ali, cheio de aromas e sabores, um produto único”, diz Gabriella.
A padeira compra o trigo de uma cooperativa de orgânicos do Paraná e dedica uma manhã por semana a moer 30 kg do grão, que serão usados na produção de pães multigrãos e integral, além de uma parte para alimentar o seu fermento natural, o levain. O moinho da Zan Pan, assim como o de Hanny, é caseiro, veio da Califórnia, também na mala de viagem, mas dá conta do trabalho. Por enquanto.
O movimento extrapola as padarias artesanais. No restaurante Corrutela, o moinho do chef Cesar Costa é cheio de história. Comprado na internet, o moinho vertical tem quase 30 anos de uso. Veio de Minas Gerais e foi um dos pilares da concepção do restaurante: a ideia do chef era colocá-lo no centro do salão, para os clientes verem a transformação, mas os arquitetos o fizeram mudar de ideia.
Ali, além de moer o trigo orgânico, o moinho também é usado para transformar o milho crioulo em fubá para a polenta. Cesar mói quase 60 kg de trigo por mês para fazer pães, tortas, bolos e outras massas, como a de profiteroles que ele serve com calda do chocolate também produzido na cozinha do restaurante – do cacau à barra.
Alethea já fez parcerias com outros padeiros e chefs como Luciano Nardelli, da Carlos Pizza, para compartilhar a farinha produzida por ela. A ideia por trás da instalação de um moinho não é a autossuficiência. Está ligada à busca da qualidade, do sabor. E esse é só o começo de um movimento que está crescendo pelo mundo.