Milho tem duas safras oficiais por ano e, a bem da verdade, pode dar o ano todo em clima quente com terra irrigada. Mas junho ficou marcado como o mês desse cereal, como já foi registrado em 1967 no seminal História da Alimentação no Brasil por Câmara Cascudo: “Junho, mês de são João, é mês do milho, festivo, sonoro, inesquecível, da humilde pipoca ao bolo artístico”.
É quando as festividades para o santo João, muito tradicionais no Nordeste, carregam as quermesses de curau, pamonha, milho assado, broa, bolo de fubá e outros quitutes feitos com esse que é o terceiro maior cultivo do País, atrás da cana-de-açúcar e da soja. É tanto milho que somos o terceiro maior produtor mundial, atrás de Estados Unidos e China, segundo a FAO. (Pois é, o México vem atrás do Brasil).
Outras tantas receitas derivam do milho e, para confundir o leitorado, ganham nomes diferentes de Norte a Sul. O que se conhece como curau no Sudeste, por exemplo, feito do milho verde ralado e espremido, chama-se canjica no Nordeste. Já a canjica no Sudeste é o nome que se dá ao milho seco quebrado sem o gérmen e à sua receita mais famosa (ele cozido com leite e açúcar). Voltando ao Nordeste, essa receita adocicada chama-se mugunzá (com milho branco), lembra a chef e pesquisadora Ana Luiza Trajano, que em seus livros Misture a Gosto e Básico, ambos da Melhoramentos, disseca ingredientes como o milho e suas receitas.
Apesar de nomes que causam confusão, a questão é conhecer os processos das farinhas para entender a que elas se prestam. Os processos partem do milho verde ralado, do seco moído ou do hidratado triturado. Para a farinha flocada (tipo bijú), o milho é hidratado por horas ou dias e, depois de triturado, vai para a chapa quente. “Essa farinha é a que se usa para o cuscuz paulista. Até pode-se fazer com outras, mas gosto da flocada porque deixa a textura aerada”, conta Ana Luiza, que fala do milho em aulas na FMU em parceria com o seu Instituto Brasil a Gosto.
A chef Janaina Rueda também usa a flocada para seu cuscuz, que não sai de cartaz do Bar da Dona Onça. Ali, ela prepara o caldo de legumes e galinha caipira e depois adiciona a farinha, servindo o cuscuz não mais em fôrma furada, mas em ponto de brigadeiro com salada - veja a receita.
Janaina usa a farinha que é feita pelo produtor Flávio Bragato em Lindoia (SP), na Fecularia Nossa Senhora de Brotas. Essa é a farinha usada por chefs como Marcelo Corrêa Bastos (Jiquitaia) e que integra a coleção Retratos do Gosto, vendida no box Amazônia do Mercado de Pinheiros (R$ 18, tel. 3032-0875) e em casas como Santa Luzia e St Marche.
Bragato, que é a terceira geração da família no processamento do milho, conta que hidrata seu milho de 36 a 48 horas no tanque. “Sempre trocando a água, não pode azedar”, diz ele, que também faz fubá em sua fecularia. O fubá não se faz com milho hidratado, mas com o milho seco moído mais fino ou mais grosso, que pode originar o fubá mimoso (o mais fino), o fubá normal e a sêmola.
O processo do milho para a sêmola (com que se faz polenta) e o fubá (com que se faz angu) é o mesmo. A diferença, como explica Harold McGee em Comida & Cozinha, onde escreve que “a polenta é a versão italiana do angu de fubá”, é que enquanto o fubá mimoso tem granulometria menor que 0,2 mm e o fubá normal chega a 0,2 mm, a sêmola tem de 0,6 mm a 1,2 mm.
“Polenta é um prato europeu que era feito não necessariamente com milho. Era feito com outros grãos, inclusive cevada, moído mais grosseiramente”, conta Neide Rigo, colunista do Paladar, que cresceu no interior comendo polenta feita de fubá de milho. “Era polenta com o fubá que tinha, ou mais fininho ou mais grossinho.”
+ Farinha de milho. É assim que se faz
Se o milho seco não é moído, mas quebrado, ele dá origem à canjica (grosso, quase inteiro) e à quirera (ou canjiquinha, com textura de açúcar cristal), mas pode haver tamanhos variados. O chef Fábio Vieira, por exemplo, usa no Micaela uma canjiquinha do tamanho do arroz arbóreo para fazer o seu cozido com chá de capim-santo, linguiça e camarão.
AS FARINHAS E SUBPRODUTOS DO MILHO
+ Receitas com milho e suas diversas farinhas
MILHO VERDE
São muitas as variedades de milho no mundo, manipuladas ou não pela indústria, de variadas cores. Os mais comuns são o branco e o amarelo. O milho verde é o amarelo fresco, que comemos cozido direto da espiga. Sem cozinhar, ele pode ser ralado e, depois da massa úmida espremida, o líquido rende receitas como curau, a exemplo do de Ana Luiza Trajano. Se o líquido decantar, sobra o amido, usado para engrossar caldos. O amido de milho ficou nacionalmente conhecido como "maisena" por alusão à marca Maizena, que popularizou seu uso na cozinha.
É usado em: curau (feito com o líquido do milho ralado, vai para a panela com açúcar; chamado de canjica no Nordeste), pamonha (com o mesmo líquido, sem açúcar e cozido dentro da palha), angu (em geral, faz-se com fubá, mas também há angu de milho verde, com ele ralado) e acaçá (receita de orixá, faz-se com a massa do milho branco fresco, ou seco, ralado).
MILHO SECO E MOÍDO
O milho seco moído (ou pilado em pilão de pedra, como se faz de forma artesanal) origina farinhas finas, cujos grânulos podem ter diferentes tamanhos: o fubá mimoso é o mais fino de todos (grânulo menor que 0,2 mm), depois vem o fubá normal (0,2 mm) e a sêmola (de 0,6 mm a 1,2 mm). Existe ainda uma farinha chamada fuba (sem acento), como já contou Neide Rigo em sua coluna no Paladar, feita do milho seco torrado (alguns estouram como pipoca) e depois moído.
É usado em: pães e bolos (também com o fubá normal), angu (receita típica mineira, esse creme é tradicionalmente feito com fubá), empanados (melhor com fubá mimoso), polenta (receita italiana que usa em geral a sêmola, mais grossa que o fubá, mas descendentes por aqui sempre usaram o fubá e broa (feita com fubá normal, como a da chef Ana Luiza Trajano).
MILHO SECO E QUEBRADO
Quando o milho é quebrado ou batido, em diferentes tamanhos, sem ser moído, ele dá origem a produtos (já que não dá para chamar de farinha) como a canjica e a canjiquinha (ou quirela, também chamada de quirera). Entre o grão maior (canjica) e o menor, pode haver muitas granulometrias. O chef Fábio Vieira usa no Micaela, por exemplo, uma canjiquinha do tamanho do arroz arbóreo para fazer seu cozido com camarão.
Usado em: canjica (receita doce com o mesmo nome da farinha; chama-se mugunzá na Bahia, com o milho branco) e cozidos (como a canjiquinha com camarões abaixo).
MILHO HIDRATADO
Após ser colhido, o milho fresco é colocado para secar (em secadora ou ao sol). Os grãos secos são, então, hidratados em tanques de água por horas ou dias, com ou sem fermentação. Depois, são triturados e passam por moinho de disco, de onde saem direto para uma chapa quente, onde “estouram” em flocos. Dá origem à farinha flocada (bijú), branca ou amarela, de acordo com a cor do milho. É usado em virados, bolos e pães, farofas (tente essa com suco de três limões e manteiga de garrafa do chef Rodrigo Oliveira) e cuscuz paulista (tradicionalmente, leva a farinha flocada, como faz Janaina Rueda; é também usada para o cuscuz nordestino).