O que leva uma cozinheira profissional de boa formação e em pleno domínio das técnicas da cozinha clássica a servir a seus clientes um peixe queimado como este da foto abaixo? E por que ela faz isso toda vez e de propósito? Não, a chef Gabriela Barretto, do restaurante Chou, em Pinheiros, não está fora de si. Ela é adepta de uma tendência que anda em alta em algumas cozinhas pelo mundo: assar ou grelhar ao extremo. A ideia é se aproximar dos limites o máximo possível para extrair complexidade e camadas de sabores dos alimentos. O resultado varia de agradáveis nuances amargas ao umami, o chamado quinto sabor, que envolve a boca toda e traz um toque reconfortante. Enquanto na terra de Escoffier e Carême clientes e chefs continuam torcendo o nariz para os excessos, há cozinheiros testando os limites do fogo dos Estados Unidos ao Vietnã, passando pela Dinamarca (René Redzépi, do Noma, está entre eles) e pela Argentina. Por aqui, as chefs Gabriela Barretto, do Chou, e Paola Carosella, do Arturito, são as maiores expoentes e defensoras do queimadinho.
Mais gente tem se aventurado pela cozinha rústica, de aparência imperfeita, cozinhando com forno a lenha, grelha, chapa e churrasqueira e é isto o que alimenta o crescente interesse pelo queimado. Além do fascínio pelo fogo, há a questão estética: hoje, pratos rústicos têm tanto ou mais apelo que os clássicos. Essa é a teoria defendida pela chef Gabriela Barretto, dona do Chou, em Pinheiros, queimadora profissional e ex-discípula de Paola Carosella, também queimadora, que por sua vez é ex-discípula de seu conterrâneo Francis Mallmann, argentino, outro grande queimador.
“No Chou, sempre tivemos uma queda pelos queimadinhos, sou partidária desse tipo de comida. O grelhado tem que ter cara de grelhado mesmo, com uma casquinha escura. O polvo sai tostado. Na mandioca, a gente dá uma queimada. Estou sempre vigiando e dou bronca. Se não está queimado o suficiente, volta para a grelha”, conta Gabriela.
Em Como Cozinhar sua Preguiça (em 51 Receitas), da Melhoramentos (208 págs.), a chef explica o que busca quando queima. “O que o queimado traz para a comida é justamente um contraste mais bruto, mais imperfeito. Ele imprime sua personalidade de forma inegável, talvez desequilibrando os sabores, mas transferindo uma nota forte, rústica e irresistível, e é atrás disso que nós estamos. Portanto, não tenha medo de deixar aquela marca bonita de tostado em suas cocções ígneas. Uma vez passada a desconfiança inicial você verá que o leve amargor do queimado se revela um bom companheiro da doçura, da untuosidade, da cremosidade e do frescor.”
Quem pede pela primeira vez uma empanada no La Guapa, de Paola Carosella, estranha. O recheio pode ser carne, queijo, cebola, espinafre e o formato vai da meia lua clássica ao redondo, mas o ponto não muda: a empanada chega tostada, com algumas partes da crosta queimadas. Nada a ver com forno desregulado ou descuido, logo alguém explica: é o estilo da casa. A intenção da chef é deixar a maior parte da superfície dourada e as bordas escuras, com pontos marrons. O mesmo tratamento tem sido conferido por aí a legumes, frutas, carnes, peixes e pães.
Essa guinada pode estar diretamente relacionada ao chef argentino Francis Mallmann, autor de dois livros premiados, Sete Fogos e Terra de Fogos – Minha Cozinha Irreverente (ambos da ed. Vergara & Riba). Ele estrelou um episódio na primeira temporada da série Chef’s Table, da Netflix, retratado como o grande mestre do fogo. Diz que gosta de queimar, mas nem tudo. “Apenas algumas coisas podem ser queimadas”, disse em entrevista ao Paladar. Na lista dele estão, em primeiro lugar, legumes e frutas que contêm mais açúcar: beterrabas, cebolas, abóboras, cenouras, abacaxis, pêssegos, ameixas e laranjas. O chef explica que, sendo mais ricos em açúcar, estes legumes e frutas caramelizam e ficam perfeitos chamuscados. “Porém, do jeito certo e no ponto certo”, ressalta. Seus favoritos, diz, são tomates bem maduros. Ele sugere ainda queimar levemente carnes gordurosas e vieiras. Para os iniciantes, recomenda: uma chapa ou frigideira de ferro pode ser o melhor jeito de começar a brincar com fogo.
O chef alerta para os limites. “Não se pode queimar até o fim ou brutalmente, porque o resultado é desagradável e faz mal à saúde.” Se parece difícil alcançar o queimado perfeito, saber que até os grande seguem testando pode servir de consolo. Mallmann garante: “É um processo de constante aprendizado”. Vá avançando o limite e veja até onde acha agradável.
+ Faça em casa:Rougail: pasta de berinjelas queimadas com tomates-cereja e manjericão do Chou
Tem gente que não gosta. É o caso do chef Felipe Bronze, do carioca Oro, um apaixonado pela brasa que usa a churrasqueira em ao menos um dos ingredientes de cada prato do seu novo cardápio, mas sempre com parcimônia: ele diz que tem altíssima resistência ao amargo. “Acho difícil sentir gosto em cima do queimado.”
Aprenda a queimar em casa
Pão preto, pão bom
A padeira Flávia Maculan, da Tøast (queropao@toast.fm), sempre acha engraçado quando, na fila do pão francês, ouve um cliente pedir “o mais branquinho”. Para ela, o branquinho, na verdade, não está totalmente assado. Flávia segue a escola californiana de panificação – estudou no San Francisco Baking Institute e estagiou na premiada Tartine Bakery, de São Francisco – e faz pães de casca dura e escura e miolo claro e tenro, parte de uma leva que tem invadido os cafés da cidade. Ela está certa de que, embora um ou outro ache que seu pão passou do ponto, a aparência queimadinha (o fundo chega a ser preto) é seu maior atrativo. “As pessoas querem meu pão justamente porque asso dessa maneira. A cor fica mais intensa, mas não é só uma questão estética, é de sabor. A cor castanho escuro aponta para uma caramelização intensa e mescla diferentes sabores de amargo com o mais suave do miolo, fazendo uma harmonização complexa na boca”, explica ela.
As altas temperaturas atingidas dentro do forno dão início a duas reações químicas responsáveis pela cor, pela textura e pelo sabor da casca. A primeira é a caramelização dos açúcares naturalmente presentes na farinha, fazendo com que eles derretam e depois oxidem, mudando gradualmente do amarelo claro para o marrom escuro a cor da casca que vai se formando. A segunda é a famosa reação de Maillard, quando os açúcares e as proteínas reagem entre si formando compostos responsáveis pelo sabor e também pelo escurecimento da casca.