De Belém e Tomé-açu
A Bahia dominou por tantos séculos o cenário nacional do cacau que pouca gente sabe que a primeira muda plantada em território baiano com fins de cultivo, no século 18, veio do Pará. Ainda assim, o Pará passou décadas engatinhando na produção nacional – menos de cinco anos atrás, ainda respondia por apenas 26% do total. Neste ano, porém, por causa da seca que detonou a safra na Bahia, o úmido Pará deve assumir a dianteira pela primeira vez. A safra deve ser de 116 mil toneladas de cacau, ou cerca de 48% da produção brasileira (que ainda inclui Espírito Santo e outros Estados), sendo que a área cultivada na Bahia é o triplo da do Pará. Pode ser que no ano que vem a Bahia volte ao topo, mas não dá mais para ignorar a produção paraense.
Pois cacau não é tudo a mesma coisa; chocolate muito menos. O terroir – que pode ser notado em chocolates de origem, sem misturas com amêndoas de outras terras – qualifica cada região e até microrregiões dentro dos Estados. De modo geral e simplificado, o Pará produz cacau com mais gordura e notas frutadas, enquanto a Bahia, um fruto de toques mais cítricos, explica o empresário Marco Lessa, organizador do Festival do Chocolate e Cacau, que chegou à quarta edição em Belém há duas semanas e é realizado em Ilhéus, na Bahia, desde 2009.
Ainda é muito pequena a parte da produção processada no País como chocolate de origem – cerca de 2% no Pará e 6% na Bahia. Mas é esse o novo grito do ramo, mesmo com o cacau custando quase quatro vezes o valor do cacau comum. O movimento se iniciou em fazendas da Bahia há alguns anos, com produtores dedicados a fermentações mais longas e controladas – como João Tavares, que já ganhou prêmios no Salão do Chocolate em Paris.
No Pará, onde produtores também passaram a dar atenção a isso, marcas como De Mendes, Nayah, Amazônia Cacau e CacauWay fazem chocolate de origem. E ainda tem dona Nena (conheça a sua história e o processo de produção do seu chocolate), que vende seu chocolate para restaurantes como D.O.M. e Remanso do Bosque e é uma verdadeira chocolateira bean-to-bar: controla todas as etapas desde o plantio do cacau no seu quintal até a barra de chocolate.
Em São Paulo, é possível comprar barras como essas que chegam da Bahia, como Amma e Mendoá, e do Pará, como De Mendes, mas também tem gente daqui que traz amêndoas desses Estados para processar o chocolate em terras paulistanas, como Luisa Abram e Chocolat du Jour. A qualidade do cacau nacional melhorou tanto que até a indústria passou a investir em chocolate de origem, caso da belga Barry Callebaut, que lançou em 2015 a linha Brasil com cacau da Bahia. Cerca de cinco anos atrás, a brasileira Harald já havia lançado a linha Unique com duas barras da Bahia (de produtores identificados no rótulo, como João Tavares) e uma do Pará.
Como nasce um chocolate
Nesses tabletes, que evidenciam a diferença do terroir, os perfis sensoriais são bem distintos. Num dos chocolates da Bahia, predominam notas cítricas de frutas vermelhas; no do Pará, notas adocicadas e florais, que lembram jasmim, conta Sheila Mattos, da Harald.
Com a evolução do setor, não dá mais para falar em chocolate “brasileiro”. Assim como no caso do café, em que origem, produtor e torrefador são identificados, também o chocolate tem uma história para contar. E hoje no Pará, diz o baiano Lessa, não é só a produção que chama a atenção. “O cacau de lá só cresce: mais produtividade, mais qualidade.”
CONFIRA CINCO MARCAS DE CHOCOLATE DO PARÁ
É o terroir paraense em barra
De mendes
Cesar De Mendes já foi apelidado pelo Paladar de Indiana Jones do chocolate, em capa de setembro do ano passado, quando ele descobriu uma variedade de cacau no Pará e, com a ajuda do ambientalista Roberto Smeraldi, batizou-a como Jari Picante, no Paladar Cozinha do Brasil. Ela está em dois dos quatro tabletes De Mendes, que trazem a latitude e a longitude das plantações nos rótulos e são vendidos também em São Paulo.
As barras são: 47% cacau (variedade Jari), que leva leite de búfala e manteiga de cupuaçu, 63% cacau (variedade Maranhão), 65% (Jari) e 72% (Maranhão). São varietais, como no vinho, sem misturas. A variedade Jari ele compra da Cooperflora, que coleta cacau à beira do rio Jari; e a Maranhão vem de comunidades de várzea em Barcarena.
Apesar de não plantar cacau e só fazer o chocolate, cerca de 300 kg por mês, De Mendes ensinou extrativistas da floresta a fermentar as amêndoas de cacau por cerca de 12 dias (acima da média, que é de 5 a 7 dias). Isso resulta em chocolates de sabores complexos – a barra 65% (Jari) traz frutas como manga e kiwi à boca; já a 63% (Maranhão) tem bom defumado e gordura que lembram bacon.
No ramo desde 2005, o engenheiro químico De Mendes lançou sua marca em 2013. Como não é dono de toda a produção de cacau, até estimula colegas a comprarem parte dela, para que os extrativistas continuem estimulados a fermentar o cacau com essa qualidade – e não se voltem só ao açaí e à castanha-do-pará, por exemplo.
Uma das chocolateiras que andou recentemente por suas terras foi a paulistana Luisa Abram, que faz barras em São Paulo e também compra do Acre as amêndoas de cacau de várzea, de plantios selvagens em terras alagadiças.
Serviço
Box Amazônia do Mercado de Pinheiros por R$ 23 (50g) R. Pedro Cristi, 89, Pinheiros Tel.: 3032-0875
Casa Santa Luzia por R$ 23,80 (50g) Al. Lorena, 1.471, Cerqueira César Tel.: 3897-5000)
Nayah
Há exatamente um ano, a Nayah lançou sua primeira linha de chocolates depois de montar uma pequena fábrica com dinheiro de um prêmio de empreendedorismo. A empresa é fruto de projeto acadêmico da engenheira de alimentos Luciana Ferreira Centeno, que já estagiou na Barry Callebaut, na Bahia, e fez curso de chocolate no exterior.
A linha inclui oito barras, sendo cinco de chocolate e três de “cupulate” (com amêndoas de cupuaçu, primo botânico do cacau e feito também por marcas como a baiana Amma). Entre as cinco barras, tem ao leite 30%, 35% e 45% cacau, além de sem leite 56% e 70%.
Em várias barras, a marca, que produz 300 kg de chocolate por mês, inclui o emulsificante lecitina de soja, que melhora a textura e geralmente é usado pela indústria. No caso da Nayah, Luciana justifica que o produto é natural e seu uso é comum – apesar de concorrentes do mesmo porte conseguirem boa textura sem o emulsificante.
Além de barras saborizadas (com jambu, açaí, café e outros ingredientes), a Nayah acabou de lançar a linha 70% de cacau de origem, em que as regiões, todas paraenses, são identificadas no rótulo: Barcarena, Tucumã, Ilha do Combu, Medicilândia e Tomé-Açu. O terroir é sentido à boca – o chocolate de Barcarena, por exemplo, é denso e adocicado, já o de Medicilândia traz mais tostado ao paladar, no retrogosto.
Serviço
R$ 22 (80g) na fábrica em Belém. www.nayahamazon.com
Amazônia Cacau
A Amazônia Cacau nasceu mais de dez anos atrás por iniciativa de Cesar De Mendes e um sócio. Em 2013, quando De Mendes resolveu se voltar ao chocolate de várzea, “selvagem”, a empresa foi vendida para Alexandre Távora, ganhou cara nova e incluiu produtos no catálogo.
Só no ano passado passou a comercializar os novos itens, que incluem barras puras de chocolate branco, 35% e 43% ao leite (esses com lecitina de soja), 55%, 70% e 93%, entre outros mais de 20 produtos como bombons, licores, geleias e tabletes saborizados (com doce de cupuaçu, açaí etc.). A marca, que faz cerca de 250 kg por mês com cacau cultivado em Medicilândia, abrirá no próximo mês a loja de fábrica, em Santa Bárbara, rota turística no Estado.Também vende em lojas no Rio e em Belém.
Serviço R$ 5,50 (30g) na fábrica
Cacauway
Há produtor de cacau na região de Medicilândia pelo menos desde a década de 1970, quando o governo estimulou o plantio com o fluxo de migrantes na região para a construção da Transamazônica. “Mas as amêndoas sempre saíram daqui e fizeram fama na Bahia. A gente queria mudar isso”, conta a engenheira agrônoma Hélia Félix, da Coopatrans (Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica), que montou uma fábrica para começar a processar chocolate na cidade em 2010.
Na linha principal da CacauWay, são cinco barras: 30% e 50% cacau, ambas ao leite, 52% (com manteiga de cupuaçu), 65% e 70% (esta última a única sem lecitina de soja).
A marca usa apenas de 10% a 15% das amêndoas que os cooperados produzem – o resto é exportado ou vendido para fábricas, como a pequena Java, em Belo Horizonte (javachocolates.com.br). Ainda assim, a CacauWay produz cerca de uma tonelada de chocolate por mês, vendido em lojas da marca em algumas cidades paraenses.
No Rio, o chocolate 70% chega ao restaurante Aprazível e é usado em receitas como o bolo cremoso de chocolate com castanha-de-caju. Para a casa de açaí ASA, aberta há pouco mais de um mês pelo mesmo grupo, a fábrica da CacauWay desenvolveu uma barra 72% cacau exclusiva, que é vendida sob o nome ASA – em breve, também no Aprazível (aprazivel.com.br).
Serviço R$ 2,75 (20g) em lojas no Paráwww.cacauway.com.br
Filha do Combu
Dona Nena vende seu chocolate para restaurantes como D.O.M. e Remanso do Bosque e é uma verdadeira chocolateira bean-to-bar: controla todas as etapas desde o plantio do cacau no seu quintal até a barra de chocolate. Saiba mais aqui.
Viagem a convite do 4º Festival Internacional do Chocolate e Cacau da Amazônia, em Belém.