Popular na Antiguidade, molho garum retorna às cozinhas profissionais


Vísceras de peixe, sal e tempo: essa é a base do molho fermentado escuro, forte e intenso

Por Danielle Nagase
Atualização:

Especial para o Estado

A onda da volta ao passado chega ao extremo. O garum, que anda aparecendo nas cozinhas profissionais no Brasil e no exterior, era o hit dos condimentos dois mil anos atrás. Potente, picante, escuro, não podia faltar em um banquete no Império Romano. Era popular também entre gregos e fenícios durante toda a Antiguidade, usado para temperar carnes, aves, peixes e às vezes até vinho. 

A receita milenar é muito simples: vísceras de peixe, sal e tempo. O pescado se decompõe e dá origem a um caldo escuro, forte e intenso. 

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Vísceras de peixe, sal e tempo: essa é a base do molho fermentado escuro, forte e intenso Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Guru dos fermentados, o americano Sandor Katz define garum como “peixe liquefeito” e ensina a fazê-lo em seu livro A Arte da Fermentação (Editora Sesi-SP): peixe de água salgada fresco e com as vísceras (dá para fazer com frutos do mar também), sal (de 15 a 25%), pote de vidro ou cerâmica e tempo. Com o passar dos dias, processos digestivos enzimáticos transformam o pescado (sólido) em líquido – o tempo de fermentação, que determina nuances no sabor e a cor do produto, varia de 30 dias a dois anos. Já o sal em grande quantidade serve para proteger o molho do rápido apodrecimento e de bactérias nocivas.

Pois esse líquido, que tem um cheiro fortíssimo, está inspirando chefs em todo o Ocidente. Em nome da complexidade e do sabor dos pratos, há uma leva de cozinheiros retomando a produção caseira do condimento. 

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O molho de peixe é ingrediente básico na cozinha asiática – a Tailândia tem o nam pla, o Vietnã faz o nuoc mam, Filipinas usa o patis e a versão coreana chama-se eojang. Em Chaoshan, na China, “pode faltar sal na cozinha, mas não molho de peixe”, como atesta a série documental A Origem do Sabor, lançada pela Netflix neste ano. Mas agora começa a ser preparado artesanalmente nos restaurantes ocidentais. 

Aficionado por fermentação, o chef dinamarquês René Redzepi mantém um laboratório no seu restaurante Noma, em Copenhague, para testar e cultivar fermentados. Entre um sem-fim de missôs, kombuchas e picles, Redzepi e seu braço-direito David Zilber aventuram-se na produção de garum de lula, de caranguejo, de camarão com rosa (isso mesmo, a flor), entre outras ousadias. No menu-degustação da temporada Seafood, em cartaz até 1 de junho, o mix de frutos do mar chega à mesa com avelãs marinadas em garum de lagosta.

Noma. Mix de frutos do mar com avelãs marinadas em garum de lagosta no menu da temporada do restaurante do chefRené Redzepi Foto: Ditte Isager
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Como a dupla Redzépi-Zilber compartilhou o modo de preparo de boa parte desses garuns no recém-lançado Noma Guide To Fermentation (Artisan), o chef Ivan Ralston, do restaurante paulistano Tuju, se viu instigado a investir na produção própria – que contou com pitacos de Fernando Goldenstein, sócio da Cia. dos Fermentados. Fez três versões de garum: a de lula, que tempera sua lula com cebola caramelizada, croqueta de tinta e limões curados; a de camarão com jasmim; e a de pólen de abelha nativa, que em breve deve afinar um drinque.

A chef Tássia Magalhães descobriu o garum na época em que trabalhou em Copenhague e aposta na receita clássica, feita com partes iguais de anchova e sal. Ela usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria, localizado no Itaim Bibi. O molho, depois de fermentado e coado, é equilibrado com vinho branco, açúcar e pimenta.

A chef Tássia Magalhães usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria Foto: Antonio Rodrigues
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No Corrutela, Cesar Costa inventou moda ao fermentar, por 30 dias, manjubinhas ovadas com sal num pote de vidro tampado. “Sacudia a mistura uma vez por semana”, conta. O molho resultante foi usado para glacear o shiitake assado na grelha, que ganhou notas de mar e um “punch” no sabor. “Aprovei, mas não emplaquei, com receio de batidas da Vigilância Sanitária. No Brasil, a produção de fermentados ainda é um tabu e pode trazer problemas”, afirma.

Não existe uma legislação específica sobre a produção de molhos fermentados no País. Mas a agente de fiscalização da Covisa, Andrea Boanova, afirma que “os chefs, guiados pelo costume e pela bibliografia que vem de fora, podem, sim, preparar o próprio garum na cozinha, assumindo a responsabilidade do que estão oferecendo”. Ela recomenda encomendar pesquisa microbiológica que ateste a segurança alimentar do produto. 

O chef Paulo Shin, do restaurante Komah, prefere usar molho de peixe importado da Coreia na produção do seu kimchi. “Já pensei em fazer o molho do zero, mas há muito risco e trabalho para um resultado não tão diferente do industrializado”, afirma. A chef Dani Borges, do Cochinchine, também é adepta da versão comprada. “Uso nuoc man, que é mais delicado que o nampla.” 

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Os molhos de peixes do mundo.Eojang da Corea, Nampla Tiparos da Tailandia, Garun e Nuoc Mam Nhi do Vietna Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Os molhos de peixe

Essenciais em algumas cozinhas asiáticas, os molhos de peixe, parentes do garum, são parecidos, mas têm pequenas nuances de sabor, aroma e cor devido ao tempo de fermentação. A diferença está nos detalhes, como explica a professora Susana Jhun, da Universidade Anhembi Morumbi.

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Garum | Além de anchovas ou atum, a receita romana, fermentada em potes de cerâmica, pode ser feita com frutos do mar 

Nampla | Molho de peixe tailandês, geralmente fermentado em barril de madeira, o que lhe confere sabor ainda mais complexo. É o mais fácil de ser encontrado no Brasil 

Eojang | A versão coreana, bem mais ácida, é indispensável no preparo do kimchi – além de incrementar o sabor da conserva, funciona como “agilizador” da fermentação

Nuoc Mam | Vietnamita, esse molho também fermenta em tonel de madeira. É mais suave que o nam pla tanto em sabor quanto em aroma (muitas vezes encontrado diluído em água)

Molho de Chaoshan | Típico dessa cidade portuária chinesa, é feito com peixe hilsa (pescado na foz do rio Han) e fermenta por 24 meses em tambores “esquecidos” ao sol

Patis | De cor mais escura, o molho filipino demora de 6 a 12 meses para ficar pronto. Depois de coado, a parte sólida é moída para formar a pasta bagoong, que é usada como condimento

Vestígios do garum

Por Patrícia Ferraz

As ruínas milenares das fábricas de garum podem ser vistas na costa da Andaluzia. São museus a céu aberto, em Málaga ou nos arredores de Cádiz, onde se vê os tanques de fermentação, as áreas de limpeza do peixe e armazenamento do molho que atravessaram os séculos. A região da pesca de atum, na Espanha, produzia o molho em larga escala – ali a pesca é feita pelo sistema de redes almadraba, criado pelos fenícios, a quem se atribui também a invenção do garum.

Logo depois da pesca, retiravam-se as vísceras dos peixes e elas eram jogadas em tanques com sal. Depois de meses ao sol, o líquido fermentado – muito valorizado –, era distribuído por todo Império Romano em ânforas.

Especial para o Estado

A onda da volta ao passado chega ao extremo. O garum, que anda aparecendo nas cozinhas profissionais no Brasil e no exterior, era o hit dos condimentos dois mil anos atrás. Potente, picante, escuro, não podia faltar em um banquete no Império Romano. Era popular também entre gregos e fenícios durante toda a Antiguidade, usado para temperar carnes, aves, peixes e às vezes até vinho. 

A receita milenar é muito simples: vísceras de peixe, sal e tempo. O pescado se decompõe e dá origem a um caldo escuro, forte e intenso. 

Vísceras de peixe, sal e tempo: essa é a base do molho fermentado escuro, forte e intenso Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Guru dos fermentados, o americano Sandor Katz define garum como “peixe liquefeito” e ensina a fazê-lo em seu livro A Arte da Fermentação (Editora Sesi-SP): peixe de água salgada fresco e com as vísceras (dá para fazer com frutos do mar também), sal (de 15 a 25%), pote de vidro ou cerâmica e tempo. Com o passar dos dias, processos digestivos enzimáticos transformam o pescado (sólido) em líquido – o tempo de fermentação, que determina nuances no sabor e a cor do produto, varia de 30 dias a dois anos. Já o sal em grande quantidade serve para proteger o molho do rápido apodrecimento e de bactérias nocivas.

Pois esse líquido, que tem um cheiro fortíssimo, está inspirando chefs em todo o Ocidente. Em nome da complexidade e do sabor dos pratos, há uma leva de cozinheiros retomando a produção caseira do condimento. 

O molho de peixe é ingrediente básico na cozinha asiática – a Tailândia tem o nam pla, o Vietnã faz o nuoc mam, Filipinas usa o patis e a versão coreana chama-se eojang. Em Chaoshan, na China, “pode faltar sal na cozinha, mas não molho de peixe”, como atesta a série documental A Origem do Sabor, lançada pela Netflix neste ano. Mas agora começa a ser preparado artesanalmente nos restaurantes ocidentais. 

Aficionado por fermentação, o chef dinamarquês René Redzepi mantém um laboratório no seu restaurante Noma, em Copenhague, para testar e cultivar fermentados. Entre um sem-fim de missôs, kombuchas e picles, Redzepi e seu braço-direito David Zilber aventuram-se na produção de garum de lula, de caranguejo, de camarão com rosa (isso mesmo, a flor), entre outras ousadias. No menu-degustação da temporada Seafood, em cartaz até 1 de junho, o mix de frutos do mar chega à mesa com avelãs marinadas em garum de lagosta.

Noma. Mix de frutos do mar com avelãs marinadas em garum de lagosta no menu da temporada do restaurante do chefRené Redzepi Foto: Ditte Isager

Como a dupla Redzépi-Zilber compartilhou o modo de preparo de boa parte desses garuns no recém-lançado Noma Guide To Fermentation (Artisan), o chef Ivan Ralston, do restaurante paulistano Tuju, se viu instigado a investir na produção própria – que contou com pitacos de Fernando Goldenstein, sócio da Cia. dos Fermentados. Fez três versões de garum: a de lula, que tempera sua lula com cebola caramelizada, croqueta de tinta e limões curados; a de camarão com jasmim; e a de pólen de abelha nativa, que em breve deve afinar um drinque.

A chef Tássia Magalhães descobriu o garum na época em que trabalhou em Copenhague e aposta na receita clássica, feita com partes iguais de anchova e sal. Ela usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria, localizado no Itaim Bibi. O molho, depois de fermentado e coado, é equilibrado com vinho branco, açúcar e pimenta.

A chef Tássia Magalhães usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria Foto: Antonio Rodrigues

No Corrutela, Cesar Costa inventou moda ao fermentar, por 30 dias, manjubinhas ovadas com sal num pote de vidro tampado. “Sacudia a mistura uma vez por semana”, conta. O molho resultante foi usado para glacear o shiitake assado na grelha, que ganhou notas de mar e um “punch” no sabor. “Aprovei, mas não emplaquei, com receio de batidas da Vigilância Sanitária. No Brasil, a produção de fermentados ainda é um tabu e pode trazer problemas”, afirma.

Não existe uma legislação específica sobre a produção de molhos fermentados no País. Mas a agente de fiscalização da Covisa, Andrea Boanova, afirma que “os chefs, guiados pelo costume e pela bibliografia que vem de fora, podem, sim, preparar o próprio garum na cozinha, assumindo a responsabilidade do que estão oferecendo”. Ela recomenda encomendar pesquisa microbiológica que ateste a segurança alimentar do produto. 

O chef Paulo Shin, do restaurante Komah, prefere usar molho de peixe importado da Coreia na produção do seu kimchi. “Já pensei em fazer o molho do zero, mas há muito risco e trabalho para um resultado não tão diferente do industrializado”, afirma. A chef Dani Borges, do Cochinchine, também é adepta da versão comprada. “Uso nuoc man, que é mais delicado que o nampla.” 

Os molhos de peixes do mundo.Eojang da Corea, Nampla Tiparos da Tailandia, Garun e Nuoc Mam Nhi do Vietna Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Os molhos de peixe

Essenciais em algumas cozinhas asiáticas, os molhos de peixe, parentes do garum, são parecidos, mas têm pequenas nuances de sabor, aroma e cor devido ao tempo de fermentação. A diferença está nos detalhes, como explica a professora Susana Jhun, da Universidade Anhembi Morumbi.

Garum | Além de anchovas ou atum, a receita romana, fermentada em potes de cerâmica, pode ser feita com frutos do mar 

Nampla | Molho de peixe tailandês, geralmente fermentado em barril de madeira, o que lhe confere sabor ainda mais complexo. É o mais fácil de ser encontrado no Brasil 

Eojang | A versão coreana, bem mais ácida, é indispensável no preparo do kimchi – além de incrementar o sabor da conserva, funciona como “agilizador” da fermentação

Nuoc Mam | Vietnamita, esse molho também fermenta em tonel de madeira. É mais suave que o nam pla tanto em sabor quanto em aroma (muitas vezes encontrado diluído em água)

Molho de Chaoshan | Típico dessa cidade portuária chinesa, é feito com peixe hilsa (pescado na foz do rio Han) e fermenta por 24 meses em tambores “esquecidos” ao sol

Patis | De cor mais escura, o molho filipino demora de 6 a 12 meses para ficar pronto. Depois de coado, a parte sólida é moída para formar a pasta bagoong, que é usada como condimento

Vestígios do garum

Por Patrícia Ferraz

As ruínas milenares das fábricas de garum podem ser vistas na costa da Andaluzia. São museus a céu aberto, em Málaga ou nos arredores de Cádiz, onde se vê os tanques de fermentação, as áreas de limpeza do peixe e armazenamento do molho que atravessaram os séculos. A região da pesca de atum, na Espanha, produzia o molho em larga escala – ali a pesca é feita pelo sistema de redes almadraba, criado pelos fenícios, a quem se atribui também a invenção do garum.

Logo depois da pesca, retiravam-se as vísceras dos peixes e elas eram jogadas em tanques com sal. Depois de meses ao sol, o líquido fermentado – muito valorizado –, era distribuído por todo Império Romano em ânforas.

Especial para o Estado

A onda da volta ao passado chega ao extremo. O garum, que anda aparecendo nas cozinhas profissionais no Brasil e no exterior, era o hit dos condimentos dois mil anos atrás. Potente, picante, escuro, não podia faltar em um banquete no Império Romano. Era popular também entre gregos e fenícios durante toda a Antiguidade, usado para temperar carnes, aves, peixes e às vezes até vinho. 

A receita milenar é muito simples: vísceras de peixe, sal e tempo. O pescado se decompõe e dá origem a um caldo escuro, forte e intenso. 

Vísceras de peixe, sal e tempo: essa é a base do molho fermentado escuro, forte e intenso Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Guru dos fermentados, o americano Sandor Katz define garum como “peixe liquefeito” e ensina a fazê-lo em seu livro A Arte da Fermentação (Editora Sesi-SP): peixe de água salgada fresco e com as vísceras (dá para fazer com frutos do mar também), sal (de 15 a 25%), pote de vidro ou cerâmica e tempo. Com o passar dos dias, processos digestivos enzimáticos transformam o pescado (sólido) em líquido – o tempo de fermentação, que determina nuances no sabor e a cor do produto, varia de 30 dias a dois anos. Já o sal em grande quantidade serve para proteger o molho do rápido apodrecimento e de bactérias nocivas.

Pois esse líquido, que tem um cheiro fortíssimo, está inspirando chefs em todo o Ocidente. Em nome da complexidade e do sabor dos pratos, há uma leva de cozinheiros retomando a produção caseira do condimento. 

O molho de peixe é ingrediente básico na cozinha asiática – a Tailândia tem o nam pla, o Vietnã faz o nuoc mam, Filipinas usa o patis e a versão coreana chama-se eojang. Em Chaoshan, na China, “pode faltar sal na cozinha, mas não molho de peixe”, como atesta a série documental A Origem do Sabor, lançada pela Netflix neste ano. Mas agora começa a ser preparado artesanalmente nos restaurantes ocidentais. 

Aficionado por fermentação, o chef dinamarquês René Redzepi mantém um laboratório no seu restaurante Noma, em Copenhague, para testar e cultivar fermentados. Entre um sem-fim de missôs, kombuchas e picles, Redzepi e seu braço-direito David Zilber aventuram-se na produção de garum de lula, de caranguejo, de camarão com rosa (isso mesmo, a flor), entre outras ousadias. No menu-degustação da temporada Seafood, em cartaz até 1 de junho, o mix de frutos do mar chega à mesa com avelãs marinadas em garum de lagosta.

Noma. Mix de frutos do mar com avelãs marinadas em garum de lagosta no menu da temporada do restaurante do chefRené Redzepi Foto: Ditte Isager

Como a dupla Redzépi-Zilber compartilhou o modo de preparo de boa parte desses garuns no recém-lançado Noma Guide To Fermentation (Artisan), o chef Ivan Ralston, do restaurante paulistano Tuju, se viu instigado a investir na produção própria – que contou com pitacos de Fernando Goldenstein, sócio da Cia. dos Fermentados. Fez três versões de garum: a de lula, que tempera sua lula com cebola caramelizada, croqueta de tinta e limões curados; a de camarão com jasmim; e a de pólen de abelha nativa, que em breve deve afinar um drinque.

A chef Tássia Magalhães descobriu o garum na época em que trabalhou em Copenhague e aposta na receita clássica, feita com partes iguais de anchova e sal. Ela usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria, localizado no Itaim Bibi. O molho, depois de fermentado e coado, é equilibrado com vinho branco, açúcar e pimenta.

A chef Tássia Magalhães usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria Foto: Antonio Rodrigues

No Corrutela, Cesar Costa inventou moda ao fermentar, por 30 dias, manjubinhas ovadas com sal num pote de vidro tampado. “Sacudia a mistura uma vez por semana”, conta. O molho resultante foi usado para glacear o shiitake assado na grelha, que ganhou notas de mar e um “punch” no sabor. “Aprovei, mas não emplaquei, com receio de batidas da Vigilância Sanitária. No Brasil, a produção de fermentados ainda é um tabu e pode trazer problemas”, afirma.

Não existe uma legislação específica sobre a produção de molhos fermentados no País. Mas a agente de fiscalização da Covisa, Andrea Boanova, afirma que “os chefs, guiados pelo costume e pela bibliografia que vem de fora, podem, sim, preparar o próprio garum na cozinha, assumindo a responsabilidade do que estão oferecendo”. Ela recomenda encomendar pesquisa microbiológica que ateste a segurança alimentar do produto. 

O chef Paulo Shin, do restaurante Komah, prefere usar molho de peixe importado da Coreia na produção do seu kimchi. “Já pensei em fazer o molho do zero, mas há muito risco e trabalho para um resultado não tão diferente do industrializado”, afirma. A chef Dani Borges, do Cochinchine, também é adepta da versão comprada. “Uso nuoc man, que é mais delicado que o nampla.” 

Os molhos de peixes do mundo.Eojang da Corea, Nampla Tiparos da Tailandia, Garun e Nuoc Mam Nhi do Vietna Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Os molhos de peixe

Essenciais em algumas cozinhas asiáticas, os molhos de peixe, parentes do garum, são parecidos, mas têm pequenas nuances de sabor, aroma e cor devido ao tempo de fermentação. A diferença está nos detalhes, como explica a professora Susana Jhun, da Universidade Anhembi Morumbi.

Garum | Além de anchovas ou atum, a receita romana, fermentada em potes de cerâmica, pode ser feita com frutos do mar 

Nampla | Molho de peixe tailandês, geralmente fermentado em barril de madeira, o que lhe confere sabor ainda mais complexo. É o mais fácil de ser encontrado no Brasil 

Eojang | A versão coreana, bem mais ácida, é indispensável no preparo do kimchi – além de incrementar o sabor da conserva, funciona como “agilizador” da fermentação

Nuoc Mam | Vietnamita, esse molho também fermenta em tonel de madeira. É mais suave que o nam pla tanto em sabor quanto em aroma (muitas vezes encontrado diluído em água)

Molho de Chaoshan | Típico dessa cidade portuária chinesa, é feito com peixe hilsa (pescado na foz do rio Han) e fermenta por 24 meses em tambores “esquecidos” ao sol

Patis | De cor mais escura, o molho filipino demora de 6 a 12 meses para ficar pronto. Depois de coado, a parte sólida é moída para formar a pasta bagoong, que é usada como condimento

Vestígios do garum

Por Patrícia Ferraz

As ruínas milenares das fábricas de garum podem ser vistas na costa da Andaluzia. São museus a céu aberto, em Málaga ou nos arredores de Cádiz, onde se vê os tanques de fermentação, as áreas de limpeza do peixe e armazenamento do molho que atravessaram os séculos. A região da pesca de atum, na Espanha, produzia o molho em larga escala – ali a pesca é feita pelo sistema de redes almadraba, criado pelos fenícios, a quem se atribui também a invenção do garum.

Logo depois da pesca, retiravam-se as vísceras dos peixes e elas eram jogadas em tanques com sal. Depois de meses ao sol, o líquido fermentado – muito valorizado –, era distribuído por todo Império Romano em ânforas.

Especial para o Estado

A onda da volta ao passado chega ao extremo. O garum, que anda aparecendo nas cozinhas profissionais no Brasil e no exterior, era o hit dos condimentos dois mil anos atrás. Potente, picante, escuro, não podia faltar em um banquete no Império Romano. Era popular também entre gregos e fenícios durante toda a Antiguidade, usado para temperar carnes, aves, peixes e às vezes até vinho. 

A receita milenar é muito simples: vísceras de peixe, sal e tempo. O pescado se decompõe e dá origem a um caldo escuro, forte e intenso. 

Vísceras de peixe, sal e tempo: essa é a base do molho fermentado escuro, forte e intenso Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Guru dos fermentados, o americano Sandor Katz define garum como “peixe liquefeito” e ensina a fazê-lo em seu livro A Arte da Fermentação (Editora Sesi-SP): peixe de água salgada fresco e com as vísceras (dá para fazer com frutos do mar também), sal (de 15 a 25%), pote de vidro ou cerâmica e tempo. Com o passar dos dias, processos digestivos enzimáticos transformam o pescado (sólido) em líquido – o tempo de fermentação, que determina nuances no sabor e a cor do produto, varia de 30 dias a dois anos. Já o sal em grande quantidade serve para proteger o molho do rápido apodrecimento e de bactérias nocivas.

Pois esse líquido, que tem um cheiro fortíssimo, está inspirando chefs em todo o Ocidente. Em nome da complexidade e do sabor dos pratos, há uma leva de cozinheiros retomando a produção caseira do condimento. 

O molho de peixe é ingrediente básico na cozinha asiática – a Tailândia tem o nam pla, o Vietnã faz o nuoc mam, Filipinas usa o patis e a versão coreana chama-se eojang. Em Chaoshan, na China, “pode faltar sal na cozinha, mas não molho de peixe”, como atesta a série documental A Origem do Sabor, lançada pela Netflix neste ano. Mas agora começa a ser preparado artesanalmente nos restaurantes ocidentais. 

Aficionado por fermentação, o chef dinamarquês René Redzepi mantém um laboratório no seu restaurante Noma, em Copenhague, para testar e cultivar fermentados. Entre um sem-fim de missôs, kombuchas e picles, Redzepi e seu braço-direito David Zilber aventuram-se na produção de garum de lula, de caranguejo, de camarão com rosa (isso mesmo, a flor), entre outras ousadias. No menu-degustação da temporada Seafood, em cartaz até 1 de junho, o mix de frutos do mar chega à mesa com avelãs marinadas em garum de lagosta.

Noma. Mix de frutos do mar com avelãs marinadas em garum de lagosta no menu da temporada do restaurante do chefRené Redzepi Foto: Ditte Isager

Como a dupla Redzépi-Zilber compartilhou o modo de preparo de boa parte desses garuns no recém-lançado Noma Guide To Fermentation (Artisan), o chef Ivan Ralston, do restaurante paulistano Tuju, se viu instigado a investir na produção própria – que contou com pitacos de Fernando Goldenstein, sócio da Cia. dos Fermentados. Fez três versões de garum: a de lula, que tempera sua lula com cebola caramelizada, croqueta de tinta e limões curados; a de camarão com jasmim; e a de pólen de abelha nativa, que em breve deve afinar um drinque.

A chef Tássia Magalhães descobriu o garum na época em que trabalhou em Copenhague e aposta na receita clássica, feita com partes iguais de anchova e sal. Ela usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria, localizado no Itaim Bibi. O molho, depois de fermentado e coado, é equilibrado com vinho branco, açúcar e pimenta.

A chef Tássia Magalhães usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria Foto: Antonio Rodrigues

No Corrutela, Cesar Costa inventou moda ao fermentar, por 30 dias, manjubinhas ovadas com sal num pote de vidro tampado. “Sacudia a mistura uma vez por semana”, conta. O molho resultante foi usado para glacear o shiitake assado na grelha, que ganhou notas de mar e um “punch” no sabor. “Aprovei, mas não emplaquei, com receio de batidas da Vigilância Sanitária. No Brasil, a produção de fermentados ainda é um tabu e pode trazer problemas”, afirma.

Não existe uma legislação específica sobre a produção de molhos fermentados no País. Mas a agente de fiscalização da Covisa, Andrea Boanova, afirma que “os chefs, guiados pelo costume e pela bibliografia que vem de fora, podem, sim, preparar o próprio garum na cozinha, assumindo a responsabilidade do que estão oferecendo”. Ela recomenda encomendar pesquisa microbiológica que ateste a segurança alimentar do produto. 

O chef Paulo Shin, do restaurante Komah, prefere usar molho de peixe importado da Coreia na produção do seu kimchi. “Já pensei em fazer o molho do zero, mas há muito risco e trabalho para um resultado não tão diferente do industrializado”, afirma. A chef Dani Borges, do Cochinchine, também é adepta da versão comprada. “Uso nuoc man, que é mais delicado que o nampla.” 

Os molhos de peixes do mundo.Eojang da Corea, Nampla Tiparos da Tailandia, Garun e Nuoc Mam Nhi do Vietna Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Os molhos de peixe

Essenciais em algumas cozinhas asiáticas, os molhos de peixe, parentes do garum, são parecidos, mas têm pequenas nuances de sabor, aroma e cor devido ao tempo de fermentação. A diferença está nos detalhes, como explica a professora Susana Jhun, da Universidade Anhembi Morumbi.

Garum | Além de anchovas ou atum, a receita romana, fermentada em potes de cerâmica, pode ser feita com frutos do mar 

Nampla | Molho de peixe tailandês, geralmente fermentado em barril de madeira, o que lhe confere sabor ainda mais complexo. É o mais fácil de ser encontrado no Brasil 

Eojang | A versão coreana, bem mais ácida, é indispensável no preparo do kimchi – além de incrementar o sabor da conserva, funciona como “agilizador” da fermentação

Nuoc Mam | Vietnamita, esse molho também fermenta em tonel de madeira. É mais suave que o nam pla tanto em sabor quanto em aroma (muitas vezes encontrado diluído em água)

Molho de Chaoshan | Típico dessa cidade portuária chinesa, é feito com peixe hilsa (pescado na foz do rio Han) e fermenta por 24 meses em tambores “esquecidos” ao sol

Patis | De cor mais escura, o molho filipino demora de 6 a 12 meses para ficar pronto. Depois de coado, a parte sólida é moída para formar a pasta bagoong, que é usada como condimento

Vestígios do garum

Por Patrícia Ferraz

As ruínas milenares das fábricas de garum podem ser vistas na costa da Andaluzia. São museus a céu aberto, em Málaga ou nos arredores de Cádiz, onde se vê os tanques de fermentação, as áreas de limpeza do peixe e armazenamento do molho que atravessaram os séculos. A região da pesca de atum, na Espanha, produzia o molho em larga escala – ali a pesca é feita pelo sistema de redes almadraba, criado pelos fenícios, a quem se atribui também a invenção do garum.

Logo depois da pesca, retiravam-se as vísceras dos peixes e elas eram jogadas em tanques com sal. Depois de meses ao sol, o líquido fermentado – muito valorizado –, era distribuído por todo Império Romano em ânforas.

Especial para o Estado

A onda da volta ao passado chega ao extremo. O garum, que anda aparecendo nas cozinhas profissionais no Brasil e no exterior, era o hit dos condimentos dois mil anos atrás. Potente, picante, escuro, não podia faltar em um banquete no Império Romano. Era popular também entre gregos e fenícios durante toda a Antiguidade, usado para temperar carnes, aves, peixes e às vezes até vinho. 

A receita milenar é muito simples: vísceras de peixe, sal e tempo. O pescado se decompõe e dá origem a um caldo escuro, forte e intenso. 

Vísceras de peixe, sal e tempo: essa é a base do molho fermentado escuro, forte e intenso Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Guru dos fermentados, o americano Sandor Katz define garum como “peixe liquefeito” e ensina a fazê-lo em seu livro A Arte da Fermentação (Editora Sesi-SP): peixe de água salgada fresco e com as vísceras (dá para fazer com frutos do mar também), sal (de 15 a 25%), pote de vidro ou cerâmica e tempo. Com o passar dos dias, processos digestivos enzimáticos transformam o pescado (sólido) em líquido – o tempo de fermentação, que determina nuances no sabor e a cor do produto, varia de 30 dias a dois anos. Já o sal em grande quantidade serve para proteger o molho do rápido apodrecimento e de bactérias nocivas.

Pois esse líquido, que tem um cheiro fortíssimo, está inspirando chefs em todo o Ocidente. Em nome da complexidade e do sabor dos pratos, há uma leva de cozinheiros retomando a produção caseira do condimento. 

O molho de peixe é ingrediente básico na cozinha asiática – a Tailândia tem o nam pla, o Vietnã faz o nuoc mam, Filipinas usa o patis e a versão coreana chama-se eojang. Em Chaoshan, na China, “pode faltar sal na cozinha, mas não molho de peixe”, como atesta a série documental A Origem do Sabor, lançada pela Netflix neste ano. Mas agora começa a ser preparado artesanalmente nos restaurantes ocidentais. 

Aficionado por fermentação, o chef dinamarquês René Redzepi mantém um laboratório no seu restaurante Noma, em Copenhague, para testar e cultivar fermentados. Entre um sem-fim de missôs, kombuchas e picles, Redzepi e seu braço-direito David Zilber aventuram-se na produção de garum de lula, de caranguejo, de camarão com rosa (isso mesmo, a flor), entre outras ousadias. No menu-degustação da temporada Seafood, em cartaz até 1 de junho, o mix de frutos do mar chega à mesa com avelãs marinadas em garum de lagosta.

Noma. Mix de frutos do mar com avelãs marinadas em garum de lagosta no menu da temporada do restaurante do chefRené Redzepi Foto: Ditte Isager

Como a dupla Redzépi-Zilber compartilhou o modo de preparo de boa parte desses garuns no recém-lançado Noma Guide To Fermentation (Artisan), o chef Ivan Ralston, do restaurante paulistano Tuju, se viu instigado a investir na produção própria – que contou com pitacos de Fernando Goldenstein, sócio da Cia. dos Fermentados. Fez três versões de garum: a de lula, que tempera sua lula com cebola caramelizada, croqueta de tinta e limões curados; a de camarão com jasmim; e a de pólen de abelha nativa, que em breve deve afinar um drinque.

A chef Tássia Magalhães descobriu o garum na época em que trabalhou em Copenhague e aposta na receita clássica, feita com partes iguais de anchova e sal. Ela usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria, localizado no Itaim Bibi. O molho, depois de fermentado e coado, é equilibrado com vinho branco, açúcar e pimenta.

A chef Tássia Magalhães usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria Foto: Antonio Rodrigues

No Corrutela, Cesar Costa inventou moda ao fermentar, por 30 dias, manjubinhas ovadas com sal num pote de vidro tampado. “Sacudia a mistura uma vez por semana”, conta. O molho resultante foi usado para glacear o shiitake assado na grelha, que ganhou notas de mar e um “punch” no sabor. “Aprovei, mas não emplaquei, com receio de batidas da Vigilância Sanitária. No Brasil, a produção de fermentados ainda é um tabu e pode trazer problemas”, afirma.

Não existe uma legislação específica sobre a produção de molhos fermentados no País. Mas a agente de fiscalização da Covisa, Andrea Boanova, afirma que “os chefs, guiados pelo costume e pela bibliografia que vem de fora, podem, sim, preparar o próprio garum na cozinha, assumindo a responsabilidade do que estão oferecendo”. Ela recomenda encomendar pesquisa microbiológica que ateste a segurança alimentar do produto. 

O chef Paulo Shin, do restaurante Komah, prefere usar molho de peixe importado da Coreia na produção do seu kimchi. “Já pensei em fazer o molho do zero, mas há muito risco e trabalho para um resultado não tão diferente do industrializado”, afirma. A chef Dani Borges, do Cochinchine, também é adepta da versão comprada. “Uso nuoc man, que é mais delicado que o nampla.” 

Os molhos de peixes do mundo.Eojang da Corea, Nampla Tiparos da Tailandia, Garun e Nuoc Mam Nhi do Vietna Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Os molhos de peixe

Essenciais em algumas cozinhas asiáticas, os molhos de peixe, parentes do garum, são parecidos, mas têm pequenas nuances de sabor, aroma e cor devido ao tempo de fermentação. A diferença está nos detalhes, como explica a professora Susana Jhun, da Universidade Anhembi Morumbi.

Garum | Além de anchovas ou atum, a receita romana, fermentada em potes de cerâmica, pode ser feita com frutos do mar 

Nampla | Molho de peixe tailandês, geralmente fermentado em barril de madeira, o que lhe confere sabor ainda mais complexo. É o mais fácil de ser encontrado no Brasil 

Eojang | A versão coreana, bem mais ácida, é indispensável no preparo do kimchi – além de incrementar o sabor da conserva, funciona como “agilizador” da fermentação

Nuoc Mam | Vietnamita, esse molho também fermenta em tonel de madeira. É mais suave que o nam pla tanto em sabor quanto em aroma (muitas vezes encontrado diluído em água)

Molho de Chaoshan | Típico dessa cidade portuária chinesa, é feito com peixe hilsa (pescado na foz do rio Han) e fermenta por 24 meses em tambores “esquecidos” ao sol

Patis | De cor mais escura, o molho filipino demora de 6 a 12 meses para ficar pronto. Depois de coado, a parte sólida é moída para formar a pasta bagoong, que é usada como condimento

Vestígios do garum

Por Patrícia Ferraz

As ruínas milenares das fábricas de garum podem ser vistas na costa da Andaluzia. São museus a céu aberto, em Málaga ou nos arredores de Cádiz, onde se vê os tanques de fermentação, as áreas de limpeza do peixe e armazenamento do molho que atravessaram os séculos. A região da pesca de atum, na Espanha, produzia o molho em larga escala – ali a pesca é feita pelo sistema de redes almadraba, criado pelos fenícios, a quem se atribui também a invenção do garum.

Logo depois da pesca, retiravam-se as vísceras dos peixes e elas eram jogadas em tanques com sal. Depois de meses ao sol, o líquido fermentado – muito valorizado –, era distribuído por todo Império Romano em ânforas.

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