Especial para o Estado
Quem olha a beleza da maior planta aquática brasileira (e uma das maiores do mundo) não imagina que ela guarda em seu interior uma refeição completa: suas flores podem ser comidas na salada e lembram uma endívia; o rizoma é um tipo de batata chamado de cará- d'água; as sementes explodem a altas temperaturas e viram pipoca; e seu pecíolo é suculento e crocante e com ele pode fazer até espaguete.
Nativa da região amazônica em lagos e lagoas de água parada e rasa, a vitória-régia (Victoria amazonica) é uma planta aquática com folhas enormes que flutuam, podem chegar a mais de dois metros de diâmetro e suportam um peso de 40 kg. Seu formato lembra o tacho de fazer farinha de mandioca, também chamado de forno, daí os apelidos da planta forno-de-jaçanã ou forno-de-jacaré – um jacaré que virou flor?
Durante a pesquisa para o livro Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil (ed. Plantarum), o botânico Harri Lorenzi e o biólogo Valdely Kinupp encontraram citações de que indígenas já aproveitaram algumas partes da vitória-régia, em especial as sementes para fazer pipoca. A dupla incluiu a planta no livro, que tem um total de 351 espécies comestíveis não encontradas nos grandes mercados. Mas ficou instigada a pesquisar mais sobre o assunto.
Kinupp, que mora em Manaus, visitou comunidades nas várzeas amazônicas e não encontrou viva alma que mantivesse a tradição de levar a vitória-régia para a cozinha. Foi aí que resolveu investigar ele mesmo seu potencial comestível. Lorenzi fez o mesmo – ele já tinha trazido sementes da Amazônia e tornado a vitória-régia a estrela do paisagismo de seu Jardim Botânico Plantarum , em Nova Odessa, no interior de São Paulo.
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No lago do Jardim Botânico, de tempos em tempos é preciso cortar e jogar fora parte dos cabos da vitória-régia porque eles não param de crescer e, se crescem demais, não sobra espaço para as 25 folhas que estão fixas no lago. Um dia, em vez de descartá-los, Lorenzi entregou pecíolos cheios de espinhos ao chef Henrique Nunes e falou que dava para comer. “Eu perguntei ‘mas como?’. Ele respondeu ‘você é o cozinheiro, eu sou o botânico’”, conta o chef.
À frente do restaurante Naiah, dentro do Jardim Botânico Plantarum, Henrique tratou de se debruçar sobre o pecíolo, o cabo da vitória-régia. “É um cabão, que pode chegar a sete metros de comprimento, e talvez seja o maior pecíolo de um vegetal, junto com o do buriti”, explica Valdely Kinupp.
Depois de penar para retirar os espinhos, fatiou o cabo com um mandolim. Achou o aspecto e o sabor similares ao do palmito pupunha e arriscou transformar o pecíolo em espaguete.
“O sabor do pecíolo é neutro e ele tem uma capacidade incrível de absorver outros sabores e aromas. Sua textura lembra a da maçã, quando está cru, e a do broto de feijão, depois de refogado”, revela o chef. No Naiah, ele é servido cru, com cenoura ralada, shimeji, camarão e páprica doce. E o cabo, antes descartado, virou a estrela do cardápio.
De onde sai isso, da folha ou da flor? – é o que a maioria das pessoas quer saber depois de comer o espaguete vegetal. Nem de uma nem de outra, vem do cabo. A chef Helena Rizzo, do Maní, certa vez durante um evento no Jardim de Lorenzi combinou pétalas da flor com melão e azedinha. Henrique também já aproveitou a flor, mas como uma barquinha, “transportando” tartar de salmão com um crocante feito com a pipoca da vitória-régia.
Pipoca. A pipoca é um ingrediente interessantíssimo, é mais doce e mais crocante que a pipoca do milho. Explode na boca e tem sabor prolongado.
Além do Naiah, outro restaurante no País já colocou a vitória-régia em seu cardápio fixo. É o Shin Suzuran, em Manaus. O chef da casa, o japonês Hiroya Takano, criou um menu-degustação amazônico com três pratos elaborados com o pecíolo: o sunomono de vitória-régia com lichia (que substitui a tradicional saladinha com pepino agridoce), o sushi de vitória-régia (sushi de tucunaré com uma calda doce elaborada com o pecíolo e açúcar) e o ankaki de pirarucu com vitória-régia (pirarucu empanado, servido com o pecíolo da planta cozido com legumes).
“O talo cortado em rodelas tem buraquinhos, como o lótus, e é extremamente crocante”, conta. Foi difícil achar um fornecedor porque a vitória-régia tinha de vir de um lago sem qualquer contaminação. Hiroya desembolsa todo mês cerca de R$ 250 para trazer 30 pecíolos da Careira da Várzea, distante três horas e meia de barco da capital até o restaurante.
A paixão de Hiroya pela vitória-régia começou na infância, no Japão, quando viu num mangá o desenho da planta com uma criança. Em 2006, para homenageá-la, criou um “sushi vitória-régia” e patenteou o nome. Dez anos mais tarde, após uma expedição com Valdely Kinupp pela Amazônia em que conheceu as possibilidades gastronômicas da planta, criou a versão do sushi que leva a iguaria.
Para Valdely Kinupp, a vitória-régia “é uma planta quase 100% comestível” que começa a ser de fato explorada só agora. Seu rizoma é a parte menos usada na cozinha porque retirá-lo implica na morte da planta, mas ainda assim é possível utilizá-lo para fazer sopas e pães.
“Chefs como Henrique Nunes e Hiroya Takano já estão aproveitando o pecíolo em pratos salgados, mas ele também fica ótimo em compotas e até desidratado como snack. Ou pode ser utilizado como nibs por empresas de chocolate”, vislumbra Kinupp, apostando no sabor da vitória.
ANATOMIA DA VITÓRIA
Folha: Sua parte mais evidente é a única que não tem potencial comestível.Flor: Tem textura e sabor amargo que lembram a endívia. Sementes: Estouram e viram pipoca, com textura mais crocante e sabor mais adocicado que a pipoca do milho.Pecíolo, cabo ou talo: É o cabo da flor. É cheio de espinhos, que devem ser retirados. É suculento e pode ser preparado como picles, virar espaguete ou ser usado em doces em calda e cristalizados. Desidratado, serve como “crocante” parecido com os nibs de cacau. Rizoma: Chamado de cará-d'água ou cará-do-rio, pode ser consumido como um cará, mas é menos usado porque sua retirada implica na morte da planta.
VIVEIRO DA PLANTA EM SP
Harri Lorenzi realizou o sonho de todo estudioso botânico e comprou um espaço para cultivar as plantas que pesquisa em expedições pelo Brasil desde 1975. O Jardim Botânico Plantarum, em Nova Odessa, distante cerca de 120 km de São Paulo, tem 4.100 espécies e foco na flora brasileira, com 95% de plantas nativas – sendo pelo menos 300 pancs (plantas alimentícias não convencionais). O jardim, que tem uma área de 90 mil metros quadrados, é considerado o maior da América Latina em diversidade de espécies.
É o próprio Harri que produz as sementes da vitória-régia, que cultiva em dois lagos. “A vitória-régia é uma planta anual, completa o ciclo de vida de um ano e morre.
Na Amazônia, ela renasce sozinha, por causa da polinização natural de um besouro que não existe em Nova Odessa. Então, aqui eu faço o ‘papel’ do besouro.” O jardim se mantém com recursos do botânico, autor de mais de 20 livros publicados pelo seu selo, Instituto Plantarum. É possível se associar ao jardim pagando taxa e receber sementes ou mudas pelo correio.
SERVIÇO
Jardim Botânico Plantarum
Av. Brasil, 2000, Nova Odessa Tel.: (19) 3466-5587www.plantarum.org.br
Restaurante Shin Suzuran R. Itananna, 100, Cj. Vieiralves, Nossa Senhora das Graças, Manaus (AM). Tel.: (92) 3584-4429