Marrakech desperta. Rajadas de sol alastram o canto hipnótico do almuádem. Todo dia, há quase mil anos, aquela voz encerra o confinamento na antiga medina. Não é e é a mesma voz. Na primeira hora da manhã, o alarme alto aviva a cidade, nas seguintes abafa outros sons, encobre desejos.
O primeiro deles, do próprio muezim. Outrora, esse chamador das preces era cego. Assim, do alto do minarete, não caia na tentação de espreitar moça nenhuma. Ritmava o desadormecer sem ver que dali a pouco as vielas sinuosas se coloririam com turbantes, túnicas, tapetes, luminárias, cerâmicas e montanhas de azeitonas, doces, frutas e especiarias.
Pelas ruas, há muita cor, muita obscuridade também. Nos cafés, toma-se chá. Preto, fumegante, açucarado, intensamente perfumado com menta fresca. Nos cafés, homens tomam chá. Servidos por homens. Fumam e não comem.
Devem ter em casa sopas e saladas dessas que não têm receita na web. Apesar de toda a produção agrária, devem tomar néctar de laranja em caixinha, espalhar margarina e não smen (a tradicional manteiga rançosa) em crepes ou biscoitos. Custos e “modernidade” confundindo as cabeças e os hábitos.
Sobre a mesa ou o tapete, a cozinha marroquina não tem sexo e, ao mesmo tempo, é das mais sensuais que há: mestiça e afrodisíaca, crocante e tenra. Dos persas, herdou o casamento entre carnes e frutas; dos turcos, a tara pelo dulçor. Faz do pão macio um conjunto de talheres e guardanapo; das trabalhosíssimas massas folhadas, esconderijos doces-salgados de carne e cebola ao aroma de canela.
Herança egípcia, o cuscuz, cozido no vapor, não leva apenas cinco minutos para ficar pronto como os de caixinha e repete-se, sagradamente, às sextas-feiras. Pode ser umedecido com caldo, molho, leite de ovelha ou de cabra. Escoltado por legumes e carnes cozidas. O de Khadija com vitela, cebolas caramelizadas e ameixas secas inebria.
Dar Tazi (http://www.restaurantdartazi.com/) é o térreo e o terraço de sua casa. Entre um andar e outro, a cozinheira vive com as duas filhas e o marido. Aos domingos, os quatro fogem para a praia. Não levam biquinis na bagagem, mas quiçá molhem os pés na água e comam sem culpa os docinhos da cozinheira empreendedora. Nozes, amêndoas e pistache, mel e caldas, tâmaras e figos, canela e gergelim em losangos, flores, quadradinhos, charutos, meias-luas...
Em bom francês, raridade mesmo sendo língua oficial do país, Khadija confessa a preferência pela confeitaria. A dela, aprendida nas frestas de tempo entre as obrigações do lar é dom. Um pequeno orgulho se comparado ao inglês falado pelas filhas e ao fato da primogênita estar na universidade e a caçula a caminho.
A primeira faz o caixa e supervisiona o salão, cuida do Instagram (@dartazi), do Facebook e não usa véu. Porém, estranhou a cliente que esqueceu de entrar no toilette para acompanhar a cadência da meia dúzia de mulheres entre pia e fogão.
Na cozinha, elas não são desertoras, analfabetas, viúvas ou mãe solteiras, mas soldadas munidas de açafrão, cardamomo, gengibre, cravo da índia. Armas e aromas poderosos, que perfumam e encobrem as aflições do dia a dia. Essas mulheres não sonham com prêmios, nem guias, tampouco usam dólmãs. Contentam-se em acarinhar com pratos que, se pudessem, estariam preparando aos filhos, pais e irmãos.
Algo como o que acontece na Amal for the Culinary Arts (http://amalnonprofit.org), uma associação que, desde 2013, empodera mulheres, “uma refeição de cada vez”, por meio da culinária. Por lá, marroquinas desfavorecidas, de 18 a 35, com exceções de até 40 anos, são acolhidas e capacitadas durante um semestre para poderem ter qualquer cargo da restauração: cozinheiras, atendentes, gerentes – o que demonstrarem maior aptidão.
Treinam no restaurante interno e, uma vez diplomadas, têm hotéis, riads (casarão familiar construído em torno de um pátio e hoje forma de hospedagem na medina) e outros negócios parceiros para buscarem autonomia financeira. A ideia bem-sucedida partiu de Nora Belahcen Fitzgerald e, uma década depois, rendeu homenagem no The World’s 50 Best Restaurants.
Nascida no Marrocos de pais americanos, ela cozinha empreendedorismo social e, assim, já formou 320 mulheres. Soma-se a isso um café no Centro de Língua e Cultura de Marrakech, onde mulheres com deficiência auditiva comandam a operação. Proezas como essas renderam à regente o título de “campeã da mudança” neste ano.
Como na lousinha pendurada no jardim da instituição, Nora acredita no poder da boa comida para mudar vidas, aproximar pessoas, alimentar e curar. Não à toa, no seu quintal, a porção generosa de cabelo de anjo com frutas secas, manteiga e especiarias é colo com sabor de independência. Propaga a mesma crença. Coloca o invisível à vista. Deixa amal (esperança em árabe) no ar.