Filhos do Mocotó


É um problema de física: todos querem ir ao Mocotó, mas no Mocotó não cabem todos. Mas para resolver o problema de quem não se dispõe a enfrentar a espera, há as casas de parentes e ex-funcionários, que já vêm criando suas filas próprias

Por Patrícia Ferraz

O restaurante de cozinha sertaneja que colocou a Vila Medeiros no mapa da gastronomia gerou dois filhos nos arredores e prepara a chegada de mais um herdeiro direto, o Café Mocotó, em agosto.

Do El Bulli ao Fasano, sempre que um restaurante faz muito sucesso sua fórmula passa a ser copiada. Geralmente um ex-funcionário consegue um investidor e sai do restaurante para abrir a própria casa, levando emprestado o estilo, o cardápio e alguns colegas de brigada (ah, e parte da clientela também).

Pois na Vila Medeiros, esse fenômeno capaz de enfurecer cozinheiros no mundo todo está sendo visto como uma homenagem por Rodrigo Oliveira, o chef que colocou o bairro no mapa da gastronomia paulistana. 

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Ali, na vizinhança, seu Mocotó já gerou dois filhos naturais (e um herdeiro legítimo, o Café Mocotó que está a caminho): o Barnabé e o Nação Nordestina. Além deles e sem ligação direta com a família, tem também o Recanto Nordestino e o Dono da Noite.

O resultado é que a Vila Medeiros e arredores estão se tornando um enclave de boa comida do sertão nordestino em São Paulo. Os mocotozinhos que aproveitaram o êxito do restaurante original, disputando os clientes que sobravam de suas filas, já juntam gente em suas portas nos fins de semana.

O Paladar foi provar a cozinha sertaneja inspirada no Mocotó, como você pode conferir nesta edição. Rodrigo Oliveira fez questão de acompanhar a reportagem nas visitas à família - o Barnabé, que pertence a um primo, e o Nação Nordestina, de seu tio e padrinho, Gilvan, e do primo Luciano. Recebido com alegria, foi logo pedindo comida. Fez elogios, recomendou - e quando notou algum deslise deu um jeito de chamar o parente para longe e fazer sugestões, discretamente.

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Sarapatel, baião de dois, rapadura, dadinho de tapioca... O sotaque sertanejo não deixou nem sombra do acento português, das alheiras e do vinho que os imigrantes da Ilha da Madeira faziam ali com uvas cultivadas na própria chácara até uns 60 anos atrás. A cidade cresceu, a produção de vinho foi interrompida e nos anos 70 o bairro começou a receber migrantes nordestinos, entre eles José Almeida, que sem saber, acabaria mudando a vocação gastronômica local.

Seu Zé, pai de Rodrigo, chegou de Mulungu, no sertão de Pernambuco com os irmãos Gilvan e Tinô. Juntos fundaram a Casa do Norte Irmãos Almeida, com três endereços que vendiam produtos sertanejos. A mulher de Gilvan, Inês, preparava em casa alguns pratos e mandava para as lojas. Com o tempo, a sociedade se desfez e cada um assumiu uma loja. Seu Zé ficou com a da Vila Medeiros onde, além de carne seca, farinha e rapadura oferecia um caldo de mocotó tão bom, mas tão bom, que foi juntando gente, fazendo fama. Quando viu, já tinha um restaurante. E foi assim que da pata do boi nasceu essa história que deu origem ao Mocotó - e a seus filhos e enteados.

Família de sangue e osso

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Mocotó

Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.100, tel. 2951-3056

O Mocotó de Seu Zé fez sucesso por mais de duas décadas na Vila Madeiros. Mas foi o quando o filho Rodrigo tomou a frente da cozinha, em 2004, que a casa assumiu o importante papel de servir cozinha regional brasileira preparada com rigor técnico e ingredientes de qualidade. Isso mudou a história do restaurante, a maneira como o paulistano encarava a cozinha sertaneja e está mudando a história do bairro, inspirando a abertura de novas casas.

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Rodrigo entrou na cozinha na adolescência porque queria ficar perto do pai. Mas acabou gostando e foi se preparar. Fez faculdade de gastronomia, estagiou em grandes restaurantes importantes, visitou o sertão nordestino, comeu, foi às feiras, provou de tudo e quando herdou o fogão de seu pai sabia exatamente o que queria fazer.

“O estudo me ajudou a pensar em novos caminhos para conceitos já estabelecidos, questionar tudo o que fazia”, conta. Provocou uma revolução, com toda calma e humildade do mundo.

Não deixou de usar banha de porco, mas aprendeu a respeitar o ponto de equilíbrio para não encobrir o sabor e nem deixar a comida pesada. Foi mexendo, mudando. A carne de sol prepara ali mesmo, o baião de dois é de uma delicadeza sem igual. A carne seca, impecável, com abóbora e mandioca. Seu dadinho de tapioca está em cardápios do Rio Grande do Sul ao Pará. 

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O Mocotó, que começou com 20 lugares, tem hoje 100 - sempre lotados pelas 20 mil pessoas que passam pela casa todo mês. As longas filas de espera nos fins de semana levam horas. Em vez de três funcionários, hoje são quase 60. Na sobreloja foi instalado o Engenho Mocotó, onde cria pratos e guarda sua coleção de livros de cozinha, muitos deles escritos por chefs importantes que convidam Rodrigo a mostrar sua cozinha em restaurantes e eventos pelo mundo todo. 

Se ele vai parar? “Minha ideia é criar novos negócios para dar oportunidade de crescimento aos talentos que trabalham no Mocotó e permitir que não saiam”. Rico, ele diz que não está. “Meu maior luxo é ter as contas em dia, sem precisar me preocupar com dinheiro.”

Barnabé

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R. Comandante Eduardo de Oliveira, 147, tel: 2242-2435

Primeiro herdeiro direto do Mocotó, o Barnabé faz de tudo para exibir sua carga genética - da decoração ao cardápio. A casa foi aberta em 2006 por um primo de Rodrigo, o Janse Almeida, que trabalhou na cozinha do Mocotó. Já passou por duas ampliações, agregou dois imóveis vizinhos e tem hoje 160 lugares. 

Quem cozinha ali é dona Cida Oliveira Silva, parente distante, cozinheira de mão cheia treinada em 16 anos de Mocotó. “Cuidei do Rodrigo pequenininho”, diz abraçando o chef.

O que a casa tem de melhor? Um torresmo esplêndido: é sequinho e crocante por fora, mas conserva o interior úmido e macio. “O segredo é a qualidade do torresmo, mas está ficando cada vez mais difícil conseguir bom produto”, diz dona Cida. Os clientes comem 5 mil porções de torresmo por mês, ouvindo o mesmo forró que soa no Mocotó.

Outro prato que faz sucesso ali é o caldo à moda da casa. O que ele tem de diferente? Tudo. “É um caldo de mocotó que leva vinagrete, bacon, linguiça, carne-seca, ovo de codorna e pimenta biquinho.” 

Janailson, gerente da casa e irmão de Janse e, portanto, também primo de Rodrigo, define: “Nossa cozinha é do agreste, é nossa referência, aquilo que nossos pais cresceram comendo”.

A cozinha sertaneja autêntica combina com as xilogravuras de motivos nordestinos, a parede colorida, a coleção de cachaças na parede - são 250 rótulos.

“Recomendo o Barnabé sem restrições”, diz Rodrigo Oliveira enquanto traça o caldo da casa com grande entusiasmo. O primo importante abençoou o restaurante desde o início. Assim que encontrou o ponto, na divisa da Vila Medeiros com o Parque Edu Chaves, Janse Almeida levou Rodrigo para ver o local e dar sugestões.

“Quando vejo o modelo sendo replicado com tanto sucesso, considero um triunfo”, diz Rodrigo. 

O chef afirma que quer fazer da Vila Medeiros um lugar atraente para outros empreendedores da gastronomia, mostrar que o bairro é comercialmente viável e transformar a região num polo de bons restaurantes - tanto faz, para ele, se sertanejos ou não.

Café Mocotó

Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.104

Primeiro filho legítimo, reconhecido e registrado em cartório, o Café Mocotó deve começar a funcionar em agosto ao lado do restaurante. Vai ser lugar para provar uma cozinha sertaneja autoral, mais livre, à base de produtos da estação, embutidos e carnes curadas artesanalmente. E tomar café, suco, cerveja e cachaça.

A reforma está apenas começando, mas o cardápio já tem pelo menos duas grandes atrações. O porcoburguer é a resposta sertaneja ao sanduíche americano, que Paladar mostra em primeira mão. São 180g de carne suína moída (copa, pernil e costela), com recheio de porco na lata, servidos em pão de mandioca dourado na manteiga de garrafa. Para acompanhar, molho feito com caldo de suã e pé de porco, ketchup caseiro e maionese de cumari. O chef continua testando pratos e adianta que fará 4 ou 5 sanduíches.

A outra parte do cardápio promete provocar filas desde cedo na avenida Nossa Senhora do Loreto, onde o dia vai começar com pão de mandioca quentinho, manteiga de garrafa, carne-seca, tapioca, cuscuz... Será o café da manhã sertanejo feito à base de técnica apurada e ingredientes de qualidade - com receitas apresentadas pelo chef em primeira mão numa aula durante o Paladar - Cozinha do Brasil de 2011.

O café vai funcionar o dia todo, do café da manhã ao jantar. Será sertanejo, mas sem qualquer exagero ou caricatura. “A decoração virá da mesma fonte que a do Mocotó, com elementos do sertão, mas o ambiente vai ser um pouco mais moderno”, adianta o chef.

A melhor notícia é que a família deve crescer ainda mais. O Café Mocotó é só o primogênito, afirma Rodrigo. “Tenho outras ideias, sim, mas é cedo para falar delas.”

Nação Nordestina

R. Kaneda, 894, tel: 2989-4129

Começou pequeno, acanhado, há 5 anos e já está na segunda ampliação. Mantém o ar familiar, a simplicidade do ambiente, com textos de cordel pendurados num varal e artesanato sertanejo.

O Nação Nordestina pertence a Gilvan, tio e padrinho de Rodrigo, e seu filho Luciano, sobrinho e afilhado de seu Zé, pai de Rodrigo. Luciano trabalhou durante muitos anos no Mocotó - foi lavador de pratos, comprador, garçom e cozinheiro - enquanto ia matutando a ideia de abrir o próprio restaurante. 

Quem cozinha ali é a mãe dele, a dona Inês (aquela que preparava sarapatel e baião de dois para mandar para a Casa do Norte dos irmãos Almeida). 

Mas Luciano é quem trata de aproximar a cozinha à do primo famoso. E se aventura a criar pratos, como o cupim atolado, que vai concorrer na edição deste ano do festival Comida di Buteco. É uma versão da vaca atolada. “Em vez de usar a costela, usamos cupim e mandioca e fervemos bastante para apurar o caldo, mas o segredo é cozinhar os dois separadamente, para dar leveza”, revela. Para completar o prato, cebolinha perola, azeitona e pimenta biquinho. 

A carne de sol também faz sucesso ali. “A base da cozinha é muito parecida com a do Mocotó, Rodrigo aprimorou as receitas nordestinas e acabei seguindo o que ele faz”, diz o primo. “Mas dei pequenos toques, por exemplo, a carne-seca dele é desfiada, a minha em cubinhos, a carne de sol é contrafilé”, conta.

No cardápio da Nação Nordestina tem até o caldo à moda do Barnabé. É tudo em família. “Não tem jeito e não tem como não fazer, o pessoal chega aqui pedindo, quero o alho assado do Mocotó, ou então, traz o caldo à moda do Barnabé...”. Uma especialidade local são as cachaças com sabor, que eles fazem ali mesmo para servir geladinha ou vender engarrafada. Tem a cachaça de rapadura, de mel e de maracujá.

Acarajé da Inês

É outro bom lanche, um passeio até a costa antes ou depois da refeição sertaneja. O acarajé (R$ 7) é fresco, bem recheado e delicado, nos limites de delicadeza que a receita impõe. Só cuidado se for enganar a fome na fila com ele, pelo risco de ficar com a barriga cheia (Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.144, tel. 2982-1243)

O Dono da Noite

Laércio Silva Filho, o proprietário, tem clientela assídua na madrugada. Serve dobradinha e mocofava (R$ 15) do almoço às 6h. Entre as refeições noturnas, joelho de porco (Av. Gustavo Adolfo, 1.006, tel. 2951-9812).

Bar do Giba

O bar abriga a coleção de antiguidades do proprietário simpático e

brincalhão. Orgulhoso, ele exibe detalhadamente alguns dos 110 rádiosantigos e em pleno funcionamento que garimpou em casas de família.

Recanto do Mocotó

Pratos de cerâmica, mesas disputadas, mais de 70 tipos de cachaça. João Elias da Costa “nasceu na terra do Lula”, em Pernambuco, e teve seu primeiro bar aos 13 anos, já em São Paulo. Com ajuda de duas cozinheiras, serve feijão de corda e outras especialidades até as 3 da madrugada (Av. Conceição, 3.232, tel. 2951-6555).

Ele conhece tudo da Mocotrilha

Por Olívia Fraga

O taxista Anderson da Silva Fernandes, de 28 anos, foi nosso guia pelas ruas da Vila Medeiros e do Tucuruvi. Por uma dessas coincidências felizes, ele fez uma corrida de táxi com a equipe do Paladar entre um restaurante dos Jardins e o bairro de Santa Cecília. Quando a equipe mencionou o Mocotó, ficou entusiasmado. “Moro por ali. Meu pai me levava lá desde criança”, contou. E fez a propaganda: “se quiserem ver a pequena revolução do Mocotó ali onde moro, me liguem. Há muito por conhecer.”

Mais tarde, por telefone, Anderson cantou pelo menos quatro endereços de parada obrigatória no bairro, sem mencionar o Mocotó, com pinta de quem entende. Falou também de suas preferências em cada um deles: “no Dono da Noite vocês não podem deixar de comer a mocofava, é muito boa. No Nação Nordestina, sempre peço o cupim atolado, já provaram? O Recanto do Mocotó serve feijão de corda com um caldo delicioso...”, foi lembrando de cabeça. Sobra espaço para o Mocotó? “Nunca comi um baião de dois como o de lá... Volto toda semana com minha turma de amigos.” 

Anderson trabalha de madrugada, depois de sair da faculdade - está no 2º ano de Direito. Quis voltar a estudar depois de passar seis anos trabalhando como ex-agente de segurança na Febem. “Aquilo mexe demais com a gente. Não era um salário ruim. Ruim é a função de ‘cuidar de menor’...”, conta ele. 

Taxista há 3 anos, Anderson já sabe o que o passageiro quer quando pede para ir à Vila Medeiros nas manhãs de sábado e domingo. “Fico muito feliz com a mudança pela qual o bairro está passando. As pessoas descobriram o bairro por causa da comida nordestina. É bem legal.” 

Se os clientes estiverem com muita fome (e a espera no Mocotó assustar), Anderson recomenda uma “esticada” a algum restaurante vizinho. De vez em quando, convence. “A viagem é muito curta, não passa de R$ 10 entre o Mocotó e algum desses endereços.” 

Taxista, torcedor do São Paulo, ex-agente de segurança, morador da Vila Medeiros... e gourmet, vale lembrar. Anderson fala de comida com gosto. “Ultimamente tenho ido muito a um restaurante japonês aqui no Tucuruvi. Conheci também alguns mexicanos, mas não gosto da comida dessas redes. Preciso conhecer lugares autênticos”, diz ele. 

Tour pelo Medeirão facilita a digestão

Por Heloísa Lupinacci

A história do Mocotó, e da Vila Medeiros, vai virar livro. Para resgatar a trajetória do bairro, Élcio Fonseca, autor de O Pai, o Filho, o Restaurante, a parte do livro que reconta a trajetória do Mocotó, conversou com os vizinhos, pesquisou em livros e consultou sua própria memória. 

Nascido na região, cresceu no “Medeirão”, de onde saiu no começo da vida adulta. Há dois anos, voltou para lá. Segundo ele, a história, que termina quando Rodrigo Oliveira assume o restaurante, já está escrita. Agora falta o teste das receitas. “O Rodrigo quer testar, uma por uma, com equipamentos domésticos”, conta Fonseca, sogro do chef. Ele guiou parte deste passeio - a outra foi conduzida pelo taxista Anderson da Silva Fernandes.

Para seduzir visitantes a esticar a estada no bairro, usou termo gastronômico: “A Vila Medeiros tem terroir”, que mistura a herança portuguesa, no empório Olmos, à de migrantes do Nordeste, que prevalece entre acarajés e tapiocas, além da vida de bairro que lembra cidade do interior. Então, para abrir o apetite ou fazer a digestão, a próxima vez que for ao bairro da zona norte de São Paulo, faça como em Roma (não como os romanos, mas como os turistas mesmo).

Reserve o fim da tarde para conhecer o bairro onde fica a única igreja dedicada a Nossa Senhora do Loreto, santa portuguesa padroeira dos pilotos de avião - para um passeio com efeitos especiais, no dia 12 de dezembro, pilotos sobrevoam a igreja e jogam pétalas de rosas sobre ela, que foi construída porque o Edu Chaves, do bairro ali ao lado, sofreu um acidente de avião na região, sobreviveu e decretou a homenagem à santa.

O restaurante de cozinha sertaneja que colocou a Vila Medeiros no mapa da gastronomia gerou dois filhos nos arredores e prepara a chegada de mais um herdeiro direto, o Café Mocotó, em agosto.

Do El Bulli ao Fasano, sempre que um restaurante faz muito sucesso sua fórmula passa a ser copiada. Geralmente um ex-funcionário consegue um investidor e sai do restaurante para abrir a própria casa, levando emprestado o estilo, o cardápio e alguns colegas de brigada (ah, e parte da clientela também).

Pois na Vila Medeiros, esse fenômeno capaz de enfurecer cozinheiros no mundo todo está sendo visto como uma homenagem por Rodrigo Oliveira, o chef que colocou o bairro no mapa da gastronomia paulistana. 

Ali, na vizinhança, seu Mocotó já gerou dois filhos naturais (e um herdeiro legítimo, o Café Mocotó que está a caminho): o Barnabé e o Nação Nordestina. Além deles e sem ligação direta com a família, tem também o Recanto Nordestino e o Dono da Noite.

O resultado é que a Vila Medeiros e arredores estão se tornando um enclave de boa comida do sertão nordestino em São Paulo. Os mocotozinhos que aproveitaram o êxito do restaurante original, disputando os clientes que sobravam de suas filas, já juntam gente em suas portas nos fins de semana.

O Paladar foi provar a cozinha sertaneja inspirada no Mocotó, como você pode conferir nesta edição. Rodrigo Oliveira fez questão de acompanhar a reportagem nas visitas à família - o Barnabé, que pertence a um primo, e o Nação Nordestina, de seu tio e padrinho, Gilvan, e do primo Luciano. Recebido com alegria, foi logo pedindo comida. Fez elogios, recomendou - e quando notou algum deslise deu um jeito de chamar o parente para longe e fazer sugestões, discretamente.

Sarapatel, baião de dois, rapadura, dadinho de tapioca... O sotaque sertanejo não deixou nem sombra do acento português, das alheiras e do vinho que os imigrantes da Ilha da Madeira faziam ali com uvas cultivadas na própria chácara até uns 60 anos atrás. A cidade cresceu, a produção de vinho foi interrompida e nos anos 70 o bairro começou a receber migrantes nordestinos, entre eles José Almeida, que sem saber, acabaria mudando a vocação gastronômica local.

Seu Zé, pai de Rodrigo, chegou de Mulungu, no sertão de Pernambuco com os irmãos Gilvan e Tinô. Juntos fundaram a Casa do Norte Irmãos Almeida, com três endereços que vendiam produtos sertanejos. A mulher de Gilvan, Inês, preparava em casa alguns pratos e mandava para as lojas. Com o tempo, a sociedade se desfez e cada um assumiu uma loja. Seu Zé ficou com a da Vila Medeiros onde, além de carne seca, farinha e rapadura oferecia um caldo de mocotó tão bom, mas tão bom, que foi juntando gente, fazendo fama. Quando viu, já tinha um restaurante. E foi assim que da pata do boi nasceu essa história que deu origem ao Mocotó - e a seus filhos e enteados.

Família de sangue e osso

Mocotó

Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.100, tel. 2951-3056

O Mocotó de Seu Zé fez sucesso por mais de duas décadas na Vila Madeiros. Mas foi o quando o filho Rodrigo tomou a frente da cozinha, em 2004, que a casa assumiu o importante papel de servir cozinha regional brasileira preparada com rigor técnico e ingredientes de qualidade. Isso mudou a história do restaurante, a maneira como o paulistano encarava a cozinha sertaneja e está mudando a história do bairro, inspirando a abertura de novas casas.

Rodrigo entrou na cozinha na adolescência porque queria ficar perto do pai. Mas acabou gostando e foi se preparar. Fez faculdade de gastronomia, estagiou em grandes restaurantes importantes, visitou o sertão nordestino, comeu, foi às feiras, provou de tudo e quando herdou o fogão de seu pai sabia exatamente o que queria fazer.

“O estudo me ajudou a pensar em novos caminhos para conceitos já estabelecidos, questionar tudo o que fazia”, conta. Provocou uma revolução, com toda calma e humildade do mundo.

Não deixou de usar banha de porco, mas aprendeu a respeitar o ponto de equilíbrio para não encobrir o sabor e nem deixar a comida pesada. Foi mexendo, mudando. A carne de sol prepara ali mesmo, o baião de dois é de uma delicadeza sem igual. A carne seca, impecável, com abóbora e mandioca. Seu dadinho de tapioca está em cardápios do Rio Grande do Sul ao Pará. 

O Mocotó, que começou com 20 lugares, tem hoje 100 - sempre lotados pelas 20 mil pessoas que passam pela casa todo mês. As longas filas de espera nos fins de semana levam horas. Em vez de três funcionários, hoje são quase 60. Na sobreloja foi instalado o Engenho Mocotó, onde cria pratos e guarda sua coleção de livros de cozinha, muitos deles escritos por chefs importantes que convidam Rodrigo a mostrar sua cozinha em restaurantes e eventos pelo mundo todo. 

Se ele vai parar? “Minha ideia é criar novos negócios para dar oportunidade de crescimento aos talentos que trabalham no Mocotó e permitir que não saiam”. Rico, ele diz que não está. “Meu maior luxo é ter as contas em dia, sem precisar me preocupar com dinheiro.”

Barnabé

R. Comandante Eduardo de Oliveira, 147, tel: 2242-2435

Primeiro herdeiro direto do Mocotó, o Barnabé faz de tudo para exibir sua carga genética - da decoração ao cardápio. A casa foi aberta em 2006 por um primo de Rodrigo, o Janse Almeida, que trabalhou na cozinha do Mocotó. Já passou por duas ampliações, agregou dois imóveis vizinhos e tem hoje 160 lugares. 

Quem cozinha ali é dona Cida Oliveira Silva, parente distante, cozinheira de mão cheia treinada em 16 anos de Mocotó. “Cuidei do Rodrigo pequenininho”, diz abraçando o chef.

O que a casa tem de melhor? Um torresmo esplêndido: é sequinho e crocante por fora, mas conserva o interior úmido e macio. “O segredo é a qualidade do torresmo, mas está ficando cada vez mais difícil conseguir bom produto”, diz dona Cida. Os clientes comem 5 mil porções de torresmo por mês, ouvindo o mesmo forró que soa no Mocotó.

Outro prato que faz sucesso ali é o caldo à moda da casa. O que ele tem de diferente? Tudo. “É um caldo de mocotó que leva vinagrete, bacon, linguiça, carne-seca, ovo de codorna e pimenta biquinho.” 

Janailson, gerente da casa e irmão de Janse e, portanto, também primo de Rodrigo, define: “Nossa cozinha é do agreste, é nossa referência, aquilo que nossos pais cresceram comendo”.

A cozinha sertaneja autêntica combina com as xilogravuras de motivos nordestinos, a parede colorida, a coleção de cachaças na parede - são 250 rótulos.

“Recomendo o Barnabé sem restrições”, diz Rodrigo Oliveira enquanto traça o caldo da casa com grande entusiasmo. O primo importante abençoou o restaurante desde o início. Assim que encontrou o ponto, na divisa da Vila Medeiros com o Parque Edu Chaves, Janse Almeida levou Rodrigo para ver o local e dar sugestões.

“Quando vejo o modelo sendo replicado com tanto sucesso, considero um triunfo”, diz Rodrigo. 

O chef afirma que quer fazer da Vila Medeiros um lugar atraente para outros empreendedores da gastronomia, mostrar que o bairro é comercialmente viável e transformar a região num polo de bons restaurantes - tanto faz, para ele, se sertanejos ou não.

Café Mocotó

Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.104

Primeiro filho legítimo, reconhecido e registrado em cartório, o Café Mocotó deve começar a funcionar em agosto ao lado do restaurante. Vai ser lugar para provar uma cozinha sertaneja autoral, mais livre, à base de produtos da estação, embutidos e carnes curadas artesanalmente. E tomar café, suco, cerveja e cachaça.

A reforma está apenas começando, mas o cardápio já tem pelo menos duas grandes atrações. O porcoburguer é a resposta sertaneja ao sanduíche americano, que Paladar mostra em primeira mão. São 180g de carne suína moída (copa, pernil e costela), com recheio de porco na lata, servidos em pão de mandioca dourado na manteiga de garrafa. Para acompanhar, molho feito com caldo de suã e pé de porco, ketchup caseiro e maionese de cumari. O chef continua testando pratos e adianta que fará 4 ou 5 sanduíches.

A outra parte do cardápio promete provocar filas desde cedo na avenida Nossa Senhora do Loreto, onde o dia vai começar com pão de mandioca quentinho, manteiga de garrafa, carne-seca, tapioca, cuscuz... Será o café da manhã sertanejo feito à base de técnica apurada e ingredientes de qualidade - com receitas apresentadas pelo chef em primeira mão numa aula durante o Paladar - Cozinha do Brasil de 2011.

O café vai funcionar o dia todo, do café da manhã ao jantar. Será sertanejo, mas sem qualquer exagero ou caricatura. “A decoração virá da mesma fonte que a do Mocotó, com elementos do sertão, mas o ambiente vai ser um pouco mais moderno”, adianta o chef.

A melhor notícia é que a família deve crescer ainda mais. O Café Mocotó é só o primogênito, afirma Rodrigo. “Tenho outras ideias, sim, mas é cedo para falar delas.”

Nação Nordestina

R. Kaneda, 894, tel: 2989-4129

Começou pequeno, acanhado, há 5 anos e já está na segunda ampliação. Mantém o ar familiar, a simplicidade do ambiente, com textos de cordel pendurados num varal e artesanato sertanejo.

O Nação Nordestina pertence a Gilvan, tio e padrinho de Rodrigo, e seu filho Luciano, sobrinho e afilhado de seu Zé, pai de Rodrigo. Luciano trabalhou durante muitos anos no Mocotó - foi lavador de pratos, comprador, garçom e cozinheiro - enquanto ia matutando a ideia de abrir o próprio restaurante. 

Quem cozinha ali é a mãe dele, a dona Inês (aquela que preparava sarapatel e baião de dois para mandar para a Casa do Norte dos irmãos Almeida). 

Mas Luciano é quem trata de aproximar a cozinha à do primo famoso. E se aventura a criar pratos, como o cupim atolado, que vai concorrer na edição deste ano do festival Comida di Buteco. É uma versão da vaca atolada. “Em vez de usar a costela, usamos cupim e mandioca e fervemos bastante para apurar o caldo, mas o segredo é cozinhar os dois separadamente, para dar leveza”, revela. Para completar o prato, cebolinha perola, azeitona e pimenta biquinho. 

A carne de sol também faz sucesso ali. “A base da cozinha é muito parecida com a do Mocotó, Rodrigo aprimorou as receitas nordestinas e acabei seguindo o que ele faz”, diz o primo. “Mas dei pequenos toques, por exemplo, a carne-seca dele é desfiada, a minha em cubinhos, a carne de sol é contrafilé”, conta.

No cardápio da Nação Nordestina tem até o caldo à moda do Barnabé. É tudo em família. “Não tem jeito e não tem como não fazer, o pessoal chega aqui pedindo, quero o alho assado do Mocotó, ou então, traz o caldo à moda do Barnabé...”. Uma especialidade local são as cachaças com sabor, que eles fazem ali mesmo para servir geladinha ou vender engarrafada. Tem a cachaça de rapadura, de mel e de maracujá.

Acarajé da Inês

É outro bom lanche, um passeio até a costa antes ou depois da refeição sertaneja. O acarajé (R$ 7) é fresco, bem recheado e delicado, nos limites de delicadeza que a receita impõe. Só cuidado se for enganar a fome na fila com ele, pelo risco de ficar com a barriga cheia (Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.144, tel. 2982-1243)

O Dono da Noite

Laércio Silva Filho, o proprietário, tem clientela assídua na madrugada. Serve dobradinha e mocofava (R$ 15) do almoço às 6h. Entre as refeições noturnas, joelho de porco (Av. Gustavo Adolfo, 1.006, tel. 2951-9812).

Bar do Giba

O bar abriga a coleção de antiguidades do proprietário simpático e

brincalhão. Orgulhoso, ele exibe detalhadamente alguns dos 110 rádiosantigos e em pleno funcionamento que garimpou em casas de família.

Recanto do Mocotó

Pratos de cerâmica, mesas disputadas, mais de 70 tipos de cachaça. João Elias da Costa “nasceu na terra do Lula”, em Pernambuco, e teve seu primeiro bar aos 13 anos, já em São Paulo. Com ajuda de duas cozinheiras, serve feijão de corda e outras especialidades até as 3 da madrugada (Av. Conceição, 3.232, tel. 2951-6555).

Ele conhece tudo da Mocotrilha

Por Olívia Fraga

O taxista Anderson da Silva Fernandes, de 28 anos, foi nosso guia pelas ruas da Vila Medeiros e do Tucuruvi. Por uma dessas coincidências felizes, ele fez uma corrida de táxi com a equipe do Paladar entre um restaurante dos Jardins e o bairro de Santa Cecília. Quando a equipe mencionou o Mocotó, ficou entusiasmado. “Moro por ali. Meu pai me levava lá desde criança”, contou. E fez a propaganda: “se quiserem ver a pequena revolução do Mocotó ali onde moro, me liguem. Há muito por conhecer.”

Mais tarde, por telefone, Anderson cantou pelo menos quatro endereços de parada obrigatória no bairro, sem mencionar o Mocotó, com pinta de quem entende. Falou também de suas preferências em cada um deles: “no Dono da Noite vocês não podem deixar de comer a mocofava, é muito boa. No Nação Nordestina, sempre peço o cupim atolado, já provaram? O Recanto do Mocotó serve feijão de corda com um caldo delicioso...”, foi lembrando de cabeça. Sobra espaço para o Mocotó? “Nunca comi um baião de dois como o de lá... Volto toda semana com minha turma de amigos.” 

Anderson trabalha de madrugada, depois de sair da faculdade - está no 2º ano de Direito. Quis voltar a estudar depois de passar seis anos trabalhando como ex-agente de segurança na Febem. “Aquilo mexe demais com a gente. Não era um salário ruim. Ruim é a função de ‘cuidar de menor’...”, conta ele. 

Taxista há 3 anos, Anderson já sabe o que o passageiro quer quando pede para ir à Vila Medeiros nas manhãs de sábado e domingo. “Fico muito feliz com a mudança pela qual o bairro está passando. As pessoas descobriram o bairro por causa da comida nordestina. É bem legal.” 

Se os clientes estiverem com muita fome (e a espera no Mocotó assustar), Anderson recomenda uma “esticada” a algum restaurante vizinho. De vez em quando, convence. “A viagem é muito curta, não passa de R$ 10 entre o Mocotó e algum desses endereços.” 

Taxista, torcedor do São Paulo, ex-agente de segurança, morador da Vila Medeiros... e gourmet, vale lembrar. Anderson fala de comida com gosto. “Ultimamente tenho ido muito a um restaurante japonês aqui no Tucuruvi. Conheci também alguns mexicanos, mas não gosto da comida dessas redes. Preciso conhecer lugares autênticos”, diz ele. 

Tour pelo Medeirão facilita a digestão

Por Heloísa Lupinacci

A história do Mocotó, e da Vila Medeiros, vai virar livro. Para resgatar a trajetória do bairro, Élcio Fonseca, autor de O Pai, o Filho, o Restaurante, a parte do livro que reconta a trajetória do Mocotó, conversou com os vizinhos, pesquisou em livros e consultou sua própria memória. 

Nascido na região, cresceu no “Medeirão”, de onde saiu no começo da vida adulta. Há dois anos, voltou para lá. Segundo ele, a história, que termina quando Rodrigo Oliveira assume o restaurante, já está escrita. Agora falta o teste das receitas. “O Rodrigo quer testar, uma por uma, com equipamentos domésticos”, conta Fonseca, sogro do chef. Ele guiou parte deste passeio - a outra foi conduzida pelo taxista Anderson da Silva Fernandes.

Para seduzir visitantes a esticar a estada no bairro, usou termo gastronômico: “A Vila Medeiros tem terroir”, que mistura a herança portuguesa, no empório Olmos, à de migrantes do Nordeste, que prevalece entre acarajés e tapiocas, além da vida de bairro que lembra cidade do interior. Então, para abrir o apetite ou fazer a digestão, a próxima vez que for ao bairro da zona norte de São Paulo, faça como em Roma (não como os romanos, mas como os turistas mesmo).

Reserve o fim da tarde para conhecer o bairro onde fica a única igreja dedicada a Nossa Senhora do Loreto, santa portuguesa padroeira dos pilotos de avião - para um passeio com efeitos especiais, no dia 12 de dezembro, pilotos sobrevoam a igreja e jogam pétalas de rosas sobre ela, que foi construída porque o Edu Chaves, do bairro ali ao lado, sofreu um acidente de avião na região, sobreviveu e decretou a homenagem à santa.

O restaurante de cozinha sertaneja que colocou a Vila Medeiros no mapa da gastronomia gerou dois filhos nos arredores e prepara a chegada de mais um herdeiro direto, o Café Mocotó, em agosto.

Do El Bulli ao Fasano, sempre que um restaurante faz muito sucesso sua fórmula passa a ser copiada. Geralmente um ex-funcionário consegue um investidor e sai do restaurante para abrir a própria casa, levando emprestado o estilo, o cardápio e alguns colegas de brigada (ah, e parte da clientela também).

Pois na Vila Medeiros, esse fenômeno capaz de enfurecer cozinheiros no mundo todo está sendo visto como uma homenagem por Rodrigo Oliveira, o chef que colocou o bairro no mapa da gastronomia paulistana. 

Ali, na vizinhança, seu Mocotó já gerou dois filhos naturais (e um herdeiro legítimo, o Café Mocotó que está a caminho): o Barnabé e o Nação Nordestina. Além deles e sem ligação direta com a família, tem também o Recanto Nordestino e o Dono da Noite.

O resultado é que a Vila Medeiros e arredores estão se tornando um enclave de boa comida do sertão nordestino em São Paulo. Os mocotozinhos que aproveitaram o êxito do restaurante original, disputando os clientes que sobravam de suas filas, já juntam gente em suas portas nos fins de semana.

O Paladar foi provar a cozinha sertaneja inspirada no Mocotó, como você pode conferir nesta edição. Rodrigo Oliveira fez questão de acompanhar a reportagem nas visitas à família - o Barnabé, que pertence a um primo, e o Nação Nordestina, de seu tio e padrinho, Gilvan, e do primo Luciano. Recebido com alegria, foi logo pedindo comida. Fez elogios, recomendou - e quando notou algum deslise deu um jeito de chamar o parente para longe e fazer sugestões, discretamente.

Sarapatel, baião de dois, rapadura, dadinho de tapioca... O sotaque sertanejo não deixou nem sombra do acento português, das alheiras e do vinho que os imigrantes da Ilha da Madeira faziam ali com uvas cultivadas na própria chácara até uns 60 anos atrás. A cidade cresceu, a produção de vinho foi interrompida e nos anos 70 o bairro começou a receber migrantes nordestinos, entre eles José Almeida, que sem saber, acabaria mudando a vocação gastronômica local.

Seu Zé, pai de Rodrigo, chegou de Mulungu, no sertão de Pernambuco com os irmãos Gilvan e Tinô. Juntos fundaram a Casa do Norte Irmãos Almeida, com três endereços que vendiam produtos sertanejos. A mulher de Gilvan, Inês, preparava em casa alguns pratos e mandava para as lojas. Com o tempo, a sociedade se desfez e cada um assumiu uma loja. Seu Zé ficou com a da Vila Medeiros onde, além de carne seca, farinha e rapadura oferecia um caldo de mocotó tão bom, mas tão bom, que foi juntando gente, fazendo fama. Quando viu, já tinha um restaurante. E foi assim que da pata do boi nasceu essa história que deu origem ao Mocotó - e a seus filhos e enteados.

Família de sangue e osso

Mocotó

Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.100, tel. 2951-3056

O Mocotó de Seu Zé fez sucesso por mais de duas décadas na Vila Madeiros. Mas foi o quando o filho Rodrigo tomou a frente da cozinha, em 2004, que a casa assumiu o importante papel de servir cozinha regional brasileira preparada com rigor técnico e ingredientes de qualidade. Isso mudou a história do restaurante, a maneira como o paulistano encarava a cozinha sertaneja e está mudando a história do bairro, inspirando a abertura de novas casas.

Rodrigo entrou na cozinha na adolescência porque queria ficar perto do pai. Mas acabou gostando e foi se preparar. Fez faculdade de gastronomia, estagiou em grandes restaurantes importantes, visitou o sertão nordestino, comeu, foi às feiras, provou de tudo e quando herdou o fogão de seu pai sabia exatamente o que queria fazer.

“O estudo me ajudou a pensar em novos caminhos para conceitos já estabelecidos, questionar tudo o que fazia”, conta. Provocou uma revolução, com toda calma e humildade do mundo.

Não deixou de usar banha de porco, mas aprendeu a respeitar o ponto de equilíbrio para não encobrir o sabor e nem deixar a comida pesada. Foi mexendo, mudando. A carne de sol prepara ali mesmo, o baião de dois é de uma delicadeza sem igual. A carne seca, impecável, com abóbora e mandioca. Seu dadinho de tapioca está em cardápios do Rio Grande do Sul ao Pará. 

O Mocotó, que começou com 20 lugares, tem hoje 100 - sempre lotados pelas 20 mil pessoas que passam pela casa todo mês. As longas filas de espera nos fins de semana levam horas. Em vez de três funcionários, hoje são quase 60. Na sobreloja foi instalado o Engenho Mocotó, onde cria pratos e guarda sua coleção de livros de cozinha, muitos deles escritos por chefs importantes que convidam Rodrigo a mostrar sua cozinha em restaurantes e eventos pelo mundo todo. 

Se ele vai parar? “Minha ideia é criar novos negócios para dar oportunidade de crescimento aos talentos que trabalham no Mocotó e permitir que não saiam”. Rico, ele diz que não está. “Meu maior luxo é ter as contas em dia, sem precisar me preocupar com dinheiro.”

Barnabé

R. Comandante Eduardo de Oliveira, 147, tel: 2242-2435

Primeiro herdeiro direto do Mocotó, o Barnabé faz de tudo para exibir sua carga genética - da decoração ao cardápio. A casa foi aberta em 2006 por um primo de Rodrigo, o Janse Almeida, que trabalhou na cozinha do Mocotó. Já passou por duas ampliações, agregou dois imóveis vizinhos e tem hoje 160 lugares. 

Quem cozinha ali é dona Cida Oliveira Silva, parente distante, cozinheira de mão cheia treinada em 16 anos de Mocotó. “Cuidei do Rodrigo pequenininho”, diz abraçando o chef.

O que a casa tem de melhor? Um torresmo esplêndido: é sequinho e crocante por fora, mas conserva o interior úmido e macio. “O segredo é a qualidade do torresmo, mas está ficando cada vez mais difícil conseguir bom produto”, diz dona Cida. Os clientes comem 5 mil porções de torresmo por mês, ouvindo o mesmo forró que soa no Mocotó.

Outro prato que faz sucesso ali é o caldo à moda da casa. O que ele tem de diferente? Tudo. “É um caldo de mocotó que leva vinagrete, bacon, linguiça, carne-seca, ovo de codorna e pimenta biquinho.” 

Janailson, gerente da casa e irmão de Janse e, portanto, também primo de Rodrigo, define: “Nossa cozinha é do agreste, é nossa referência, aquilo que nossos pais cresceram comendo”.

A cozinha sertaneja autêntica combina com as xilogravuras de motivos nordestinos, a parede colorida, a coleção de cachaças na parede - são 250 rótulos.

“Recomendo o Barnabé sem restrições”, diz Rodrigo Oliveira enquanto traça o caldo da casa com grande entusiasmo. O primo importante abençoou o restaurante desde o início. Assim que encontrou o ponto, na divisa da Vila Medeiros com o Parque Edu Chaves, Janse Almeida levou Rodrigo para ver o local e dar sugestões.

“Quando vejo o modelo sendo replicado com tanto sucesso, considero um triunfo”, diz Rodrigo. 

O chef afirma que quer fazer da Vila Medeiros um lugar atraente para outros empreendedores da gastronomia, mostrar que o bairro é comercialmente viável e transformar a região num polo de bons restaurantes - tanto faz, para ele, se sertanejos ou não.

Café Mocotó

Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.104

Primeiro filho legítimo, reconhecido e registrado em cartório, o Café Mocotó deve começar a funcionar em agosto ao lado do restaurante. Vai ser lugar para provar uma cozinha sertaneja autoral, mais livre, à base de produtos da estação, embutidos e carnes curadas artesanalmente. E tomar café, suco, cerveja e cachaça.

A reforma está apenas começando, mas o cardápio já tem pelo menos duas grandes atrações. O porcoburguer é a resposta sertaneja ao sanduíche americano, que Paladar mostra em primeira mão. São 180g de carne suína moída (copa, pernil e costela), com recheio de porco na lata, servidos em pão de mandioca dourado na manteiga de garrafa. Para acompanhar, molho feito com caldo de suã e pé de porco, ketchup caseiro e maionese de cumari. O chef continua testando pratos e adianta que fará 4 ou 5 sanduíches.

A outra parte do cardápio promete provocar filas desde cedo na avenida Nossa Senhora do Loreto, onde o dia vai começar com pão de mandioca quentinho, manteiga de garrafa, carne-seca, tapioca, cuscuz... Será o café da manhã sertanejo feito à base de técnica apurada e ingredientes de qualidade - com receitas apresentadas pelo chef em primeira mão numa aula durante o Paladar - Cozinha do Brasil de 2011.

O café vai funcionar o dia todo, do café da manhã ao jantar. Será sertanejo, mas sem qualquer exagero ou caricatura. “A decoração virá da mesma fonte que a do Mocotó, com elementos do sertão, mas o ambiente vai ser um pouco mais moderno”, adianta o chef.

A melhor notícia é que a família deve crescer ainda mais. O Café Mocotó é só o primogênito, afirma Rodrigo. “Tenho outras ideias, sim, mas é cedo para falar delas.”

Nação Nordestina

R. Kaneda, 894, tel: 2989-4129

Começou pequeno, acanhado, há 5 anos e já está na segunda ampliação. Mantém o ar familiar, a simplicidade do ambiente, com textos de cordel pendurados num varal e artesanato sertanejo.

O Nação Nordestina pertence a Gilvan, tio e padrinho de Rodrigo, e seu filho Luciano, sobrinho e afilhado de seu Zé, pai de Rodrigo. Luciano trabalhou durante muitos anos no Mocotó - foi lavador de pratos, comprador, garçom e cozinheiro - enquanto ia matutando a ideia de abrir o próprio restaurante. 

Quem cozinha ali é a mãe dele, a dona Inês (aquela que preparava sarapatel e baião de dois para mandar para a Casa do Norte dos irmãos Almeida). 

Mas Luciano é quem trata de aproximar a cozinha à do primo famoso. E se aventura a criar pratos, como o cupim atolado, que vai concorrer na edição deste ano do festival Comida di Buteco. É uma versão da vaca atolada. “Em vez de usar a costela, usamos cupim e mandioca e fervemos bastante para apurar o caldo, mas o segredo é cozinhar os dois separadamente, para dar leveza”, revela. Para completar o prato, cebolinha perola, azeitona e pimenta biquinho. 

A carne de sol também faz sucesso ali. “A base da cozinha é muito parecida com a do Mocotó, Rodrigo aprimorou as receitas nordestinas e acabei seguindo o que ele faz”, diz o primo. “Mas dei pequenos toques, por exemplo, a carne-seca dele é desfiada, a minha em cubinhos, a carne de sol é contrafilé”, conta.

No cardápio da Nação Nordestina tem até o caldo à moda do Barnabé. É tudo em família. “Não tem jeito e não tem como não fazer, o pessoal chega aqui pedindo, quero o alho assado do Mocotó, ou então, traz o caldo à moda do Barnabé...”. Uma especialidade local são as cachaças com sabor, que eles fazem ali mesmo para servir geladinha ou vender engarrafada. Tem a cachaça de rapadura, de mel e de maracujá.

Acarajé da Inês

É outro bom lanche, um passeio até a costa antes ou depois da refeição sertaneja. O acarajé (R$ 7) é fresco, bem recheado e delicado, nos limites de delicadeza que a receita impõe. Só cuidado se for enganar a fome na fila com ele, pelo risco de ficar com a barriga cheia (Av. Nossa Senhora do Loreto, 1.144, tel. 2982-1243)

O Dono da Noite

Laércio Silva Filho, o proprietário, tem clientela assídua na madrugada. Serve dobradinha e mocofava (R$ 15) do almoço às 6h. Entre as refeições noturnas, joelho de porco (Av. Gustavo Adolfo, 1.006, tel. 2951-9812).

Bar do Giba

O bar abriga a coleção de antiguidades do proprietário simpático e

brincalhão. Orgulhoso, ele exibe detalhadamente alguns dos 110 rádiosantigos e em pleno funcionamento que garimpou em casas de família.

Recanto do Mocotó

Pratos de cerâmica, mesas disputadas, mais de 70 tipos de cachaça. João Elias da Costa “nasceu na terra do Lula”, em Pernambuco, e teve seu primeiro bar aos 13 anos, já em São Paulo. Com ajuda de duas cozinheiras, serve feijão de corda e outras especialidades até as 3 da madrugada (Av. Conceição, 3.232, tel. 2951-6555).

Ele conhece tudo da Mocotrilha

Por Olívia Fraga

O taxista Anderson da Silva Fernandes, de 28 anos, foi nosso guia pelas ruas da Vila Medeiros e do Tucuruvi. Por uma dessas coincidências felizes, ele fez uma corrida de táxi com a equipe do Paladar entre um restaurante dos Jardins e o bairro de Santa Cecília. Quando a equipe mencionou o Mocotó, ficou entusiasmado. “Moro por ali. Meu pai me levava lá desde criança”, contou. E fez a propaganda: “se quiserem ver a pequena revolução do Mocotó ali onde moro, me liguem. Há muito por conhecer.”

Mais tarde, por telefone, Anderson cantou pelo menos quatro endereços de parada obrigatória no bairro, sem mencionar o Mocotó, com pinta de quem entende. Falou também de suas preferências em cada um deles: “no Dono da Noite vocês não podem deixar de comer a mocofava, é muito boa. No Nação Nordestina, sempre peço o cupim atolado, já provaram? O Recanto do Mocotó serve feijão de corda com um caldo delicioso...”, foi lembrando de cabeça. Sobra espaço para o Mocotó? “Nunca comi um baião de dois como o de lá... Volto toda semana com minha turma de amigos.” 

Anderson trabalha de madrugada, depois de sair da faculdade - está no 2º ano de Direito. Quis voltar a estudar depois de passar seis anos trabalhando como ex-agente de segurança na Febem. “Aquilo mexe demais com a gente. Não era um salário ruim. Ruim é a função de ‘cuidar de menor’...”, conta ele. 

Taxista há 3 anos, Anderson já sabe o que o passageiro quer quando pede para ir à Vila Medeiros nas manhãs de sábado e domingo. “Fico muito feliz com a mudança pela qual o bairro está passando. As pessoas descobriram o bairro por causa da comida nordestina. É bem legal.” 

Se os clientes estiverem com muita fome (e a espera no Mocotó assustar), Anderson recomenda uma “esticada” a algum restaurante vizinho. De vez em quando, convence. “A viagem é muito curta, não passa de R$ 10 entre o Mocotó e algum desses endereços.” 

Taxista, torcedor do São Paulo, ex-agente de segurança, morador da Vila Medeiros... e gourmet, vale lembrar. Anderson fala de comida com gosto. “Ultimamente tenho ido muito a um restaurante japonês aqui no Tucuruvi. Conheci também alguns mexicanos, mas não gosto da comida dessas redes. Preciso conhecer lugares autênticos”, diz ele. 

Tour pelo Medeirão facilita a digestão

Por Heloísa Lupinacci

A história do Mocotó, e da Vila Medeiros, vai virar livro. Para resgatar a trajetória do bairro, Élcio Fonseca, autor de O Pai, o Filho, o Restaurante, a parte do livro que reconta a trajetória do Mocotó, conversou com os vizinhos, pesquisou em livros e consultou sua própria memória. 

Nascido na região, cresceu no “Medeirão”, de onde saiu no começo da vida adulta. Há dois anos, voltou para lá. Segundo ele, a história, que termina quando Rodrigo Oliveira assume o restaurante, já está escrita. Agora falta o teste das receitas. “O Rodrigo quer testar, uma por uma, com equipamentos domésticos”, conta Fonseca, sogro do chef. Ele guiou parte deste passeio - a outra foi conduzida pelo taxista Anderson da Silva Fernandes.

Para seduzir visitantes a esticar a estada no bairro, usou termo gastronômico: “A Vila Medeiros tem terroir”, que mistura a herança portuguesa, no empório Olmos, à de migrantes do Nordeste, que prevalece entre acarajés e tapiocas, além da vida de bairro que lembra cidade do interior. Então, para abrir o apetite ou fazer a digestão, a próxima vez que for ao bairro da zona norte de São Paulo, faça como em Roma (não como os romanos, mas como os turistas mesmo).

Reserve o fim da tarde para conhecer o bairro onde fica a única igreja dedicada a Nossa Senhora do Loreto, santa portuguesa padroeira dos pilotos de avião - para um passeio com efeitos especiais, no dia 12 de dezembro, pilotos sobrevoam a igreja e jogam pétalas de rosas sobre ela, que foi construída porque o Edu Chaves, do bairro ali ao lado, sofreu um acidente de avião na região, sobreviveu e decretou a homenagem à santa.

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