O ampelógrafo francês Jean-Michel Boursiquot lembra com detalhes de um dia nublado no final de novembro de 1994. Profissional especialista em estudar as variedades de uvas (a função de um ampelógrafo), ele participava de um seminário sobre enologia e viticultura no Chile e foi convidado a conhecer um vinhedo recém-plantado com a merlot na Viña Carmen. Era uma vinha em Alto Jahuel, nos pés da cordilheira dos Andes, no vale de Maipo, não muito distante de Santiago.
“Ao ver a planta, imediatamente eu soube que não era a merlot. Era totalmente diferente”, contou ele nesta última quinta-feira, em seu discurso nas comemorações de 30 anos da redescoberta da carménère. “A folha da carménère é completamente diferente”, acrescentou o ampelógrafo.
Organizada pela Viña Carmen, a celebração contou com a presença do ampelógrafo e também com o lançamento de um novo carménère da vinícola. Com um perfil aromático mais fresco e não tão potente como muitos dos carménères, é elaborado pela enóloga Ana Maria Cumsille. No evento, ainda, foi apresentado o trailer do documentário “A variedade perdida”, da produtora norte-americana Sunn Stream, com lançamento previsto para o início de 2025.
A REDESCOBERTA
Sem nem imaginar, com a sua descoberta Boursiquot estava solucionando um mistério e começava a escrever um novo e importante capítulo na história do vinho chileno.
Ao identificar a planta como sendo a carménère, ele primeiro descobriu que a variedade não havia desaparecido, como se pensava, após o ataque da filoxera, aquele pequeno inseto que havia destruído os vinhedos no século 19.
Originária de Bordeaux, assim como a merlot, a carménère sobreviveu porque, antes da chegada da filoxera, algumas de suas mudas foram identificadas erroneamente como sendo merlot e foram exportadas para o Chile. E no país andino foram apelidadas de “merlot chilena” ou da “merlot tardia”.
A MERLOT TARDIA
Sebastián Labbé, principal enólogo da vinícola Santa Rita e um apaixonado pela carménère, conta a história: “claro que sabíamos que era outra variedade, ou um clone, ou uma mutação, porque era uma merlot muito diferente da original”.
A “merlot tardia” amadurece mais tarde (precisa de um mês a mais no vinhedo), gosta mais de água do que a merlot, é mais vigorosa e suas folhas ganham um tom avermelhado único (e belo) no outono.
GRANDE VIDURE
Mesmo com a importância da descoberta, no início muito enólogos queriam esconder a uva, com medo que afetasse o desempenho da merlot. A própria Viña Carmen lançou o seu primeiro carménère com o nome de Grande Vidure, que é um dos nomes da variedade, mesclada com cabernet sauvignon.
Mas isso foi só no início. Atualmente são quase 10 mil hectares cultivados com a carménère, o que representa 8% do total de vinhedos do país. A variedade é a terceira mais cultivada, atrás apenas da cabernet sauvignon e da sauvignon blanc.
Nesta terceira década de carménère, a variedade também vive um novo desafio. Labbé conta que não foi fácil aprender sobre ela. Um aprendizado que partiu quase do zero, desde entender a melhor época para a colheita, as melhores localizações para os vinhedos – a aposta atualmente é nos vales de Colchagua (principalmente em Apalta) e Cachapoal. E nas maneiras de elaborar o vinho.
NOVA ETAPA
“Acho que a safra de 2018 é um marco para a carménère”, afirma o sommelier chileno Hector Riquelme. Profundo conhecedor das variedades chilenas, ele acompanha a história da variedade desde o seu início, quando a lógica era deixar a uva amadurecer o máximo de tempo no vinhedo, antes de colhê-la. O resultado eram vinhos muito frutados, com notas que até remetiam a compotas de frutas vermelhas.
Com o passar das safras, a carménère vem ganhando novas interpretações. Há muito trabalho no vinhedo, para reduzir o seu rendimento, há estudos sobre a melhor época para colher a uva, assim como os melhores recipientes para a vinificação, dos tanques de inox, dos de concreto e até daqueles em formato do ovo. E o resultado vem se revelando na taça. Como deve ser!