Suzana Barelli

O toque cítrico do champanhe


Julie Cavil, a primeira mulher como chefe de cave da Maison Krug, visita ao Brasil para explorar o limão e aproveita para divulgar o champanhe

Por Suzana Barelli

No começo de 2020, a francesa Julie Cavil assumiu como primeira mulher a ser chefe de cave da Krug, uma das mais cobiçadas marcas de champanhe. Esta é a função mais importante nas maisons – cabe ao chefe de cave fazer a mistura de vinhos de uvas e safras diferentes para criar um novo champanhe e obter, em cada blend, o mesmo estilo da safra anterior. Não é uma missão fácil, que requer muito conhecimento dos vinhos que formam o champanhe, tanto que na história da vinícola, fundada em 1843, Julie é a sétima pessoa a assumir o posto.

Agora, com três anos na função, Julie se sente confortável com o desafio. Diz que a colheita é seu maior desafio. “É o ponto crucial e está cada vez mais difícil colher a uva no tempo certo”, conta ela, em rápida passagem pelo Brasil. Ela veio ao país para participar de uma imersão em uma fazenda de limão, junto com chef de 12 das Embaixadas Krug, como são chamados os restaurantes que representam a maison mundo afora – na América Latina, o único representante é o paulistano Kinoshita. Todos os anos, explica ela, a Krug promove esta viagem para conhecer mais de um ingrediente chave na criação de receitas para harmonizar com a bebida. A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu ao Paladar, entre o intervalo na visita à fazenda e o jantar de encerramento deste tour, no próprio Kinoshita.

O chefe de cave é quase um cargo vitalício, pelo tempo que o profissional fica na função. Quantos chefs de cave a Krug já teve?

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Preciso contar (risos). Provavelmente sete. Cada geração da família teve um chefe de cave. Agora, com Remi Krug teve o Eric Lebel, que ficou no cargo por 21 anos, e eu, que assumi em 2020.

Você é uma enóloga de vocação tardia. Como você chegou à Krug?

Eu vivia em Paris e minha família não tem nenhum negócio com vinho. Se você me falasse, 20 anos atrás, que eu seria uma enóloga, eu não acreditaria, ainda mais na Krug. Eu comecei a gostar de vinho já adulta, quando trabalhava em uma agência de publicidade. Lembro quando comprei minha primeira enciclopédia, a Hachette des Vins, depois vieram os livros, os cursos, as masterclasses. Em 2002, me mudei para Champanhe, com a ideia de ter uma vida mais balanceada, um projeto de vida mais perto da natureza. Eu vinha do mercado publicitário, onde as coisas acontecem com muita intensidade e velocidade. Na Krug, a primeira coisa que você aprende é a ter paciência.

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Qual foi a primeira vez que você provou um Krug?

Eu estava na minha sétima entrevista para este emprego e era uma conversa em inglês com o Remi Krug, sobre a minha capacidade de treinar pessoas. Ele se levantou, saiu da sala e voltou com o Krug Grande Cuvée e duas taças. Pensei que iríamos celebrar. Ele me serviu e me pediu para explicar o vinho fazendo-o sonhar com ele. Usei minha experiência do mercado de publicidade e comecei a falar de música e do champanhe. Aí ele pegou a taça e disse que a bebida estava bouchonée [fungo que ataca a rolha e estraga o vinho]. Só então eu provei o champanhe e disse que não estava, e ele insistia que estava. Depois, ele disse que realmente não estava bouchonée, mas que eu tinha de provar sempre antes de servir. Foi o meu primeiro Krug.

Julie Cavil, a primeira mulher a assumir como chefe de cave da Krug, tradicional casa de champanhe Foto: Michael Ferire
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Quais as suas ideias como chefe de cave?

Meu desafio é preservar a herança dos meus antecessores, mas liderar um movimento de ir para a frente. É garantir que a próxima geração tenha continuidade. Me preocupo muito com as condições de trabalho na vinícola, para que seja confortável para todos. Um dos nossos focos é a sustentabilidade, também com os nossos produtores, porque cada safra são centenas de produtores e procuramos trabalhar muito perto deles.

Na sustentabilidade, o que a Krug faz exatamente?

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Adaptamos a maneira de conduzir as nossas vinhas e a maneira de decidir o momento da colheita, que é uma das minhas obsessões. Como trabalhamos com baixa intervenção, não usamos nenhum produto de síntese para corrigir o vinho, temos de estar muitos atentos ao ponto de maturação das uvas. Nossos champanhes têm um longo amadurecimento, por isso, decido colher quando as uvas já não têm as notas vegetais, mas antes de ter notas de frutas mais maduras.

Está mudando a data de colheita?

É que antes era mais fácil colher no tempo certo, pelo nível de acidez e açúcar. Esta janela em que a uva tinha o ponto certo de colheita era maior. Eu desenvolvo muito a degustação, a habilidade de estar na vinha certa na hora certa, porque temos pouco tempo para isso. Este é um dos grandes desafios em champanhe. Tem anos que temos menos de 24 horas para colher. Por isso, invisto muito na prova das uvas. Acredito que conseguimos ter a habilidade de colher no tempo certo, que é o grande desafio de champanhe.

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São vinhedos orgânicos?

Nossos vinhedos próprios são biológicos, somos certificados, mas não fazemos publicidade disso. Não estou satisfeita com o certificado orgânico, que nem sempre é verdadeiro. Não queremos o orgânico como argumento para que as pessoas comprem as nossas garrafas. Pedimos que os nossos parceiros sigam o programa orgânico, mas não queremos que eles assumam a certificação. Acredito que o orgânico nos faz prestar mais atenção ao vinhedo e este cuidado faz a diferença.

No portfolio da Krug, há espaço para mais um produto, uma edição especial?

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Antes de vir para o Brasil, estávamos no processo de criação do novo blend. É um grande desafio fazer o mesmo nível de champanhe a cada ano. Sempre provamos às cegas, nunca sabemos de onde vem as uvas. Este ano, uma das nossas melhores amostras era de um vinho que nunca poderíamos apostar de onde tinha vindo. Era um pinot meunier, não era pinot noir ou chardonnay [os champanhes, em geral, são elaborados com três uvas, a chardonnay, branca, e a pinot noir e a pinot meunier, tintas]. Estamos mantendo este lote em separado para avaliar sua evolução.

Um pinot meunier?

Sim, normalmente o pinot meunier é uma uva para o blend. Eu adoro a chardonnay, sua delicadeza e seu aroma cítrico. Eu realmente preciso dela pela sua estrutura, pelo seu frescor, pela sua vivacidade. Mas, às vezes, como aconteceu no ano passado, que foi muito quente, os seus aromas cítricos não apareceram. Nos anos em que a chardonnay não vai bem, normalmente a pinot noir surpreendente, inclusive para o vinho para o champanhe rosé. Não é possível ter um Clos du Mesnil ou um Clos d’Ambonnay [vinhedos premium da Krug] com pinot meunier, mas é uma uva importante no Grande Cuvée. Mas precisamos lembrar sempre que são pinot meunier de diferentes lugares, e que temos de estar atentos as estas individualidades de cada vinhedo. Ou seja, na Krug você aprende duas coisas, a ter paciência e a esquecer tudo que aprendeu nos livros, como o caráter da pinot meunier.

O que é ser a primeira mulher a assumir a chefia de cave de uma marca tradicional, como a Krug?

Quando eu comecei esta transição, não tinha a questão de gênero. Foi uma transição natural. No passado, por exemplo, já tivemos uma CEO mulher, a Margareth Henriquez. Ser mulher nunca foi uma questão na minha carreira. Eu nascei em uma família de três irmãos, estava direto com homens, muitos dos meus amigos são homens. O ambiente masculino nunca foi um lugar onde eu me sentisse mal. Quando eu vim para Champanhe, talvez tivesse comentários, o que me fez querer fazer o melhor, ser a melhor da classe. Mas depois, não. Não senti muitas dificuldades. Acho que é mais o diferencial de ser mulher. Atualmente eu mando em vários homens e acredito que a minha empatia e a maneira de resolver os conflitos ajuda. Se você perguntar ao Eric Lebel, ele vai sempre dizer que é importante ter uma mulher na sala de degustação. Mas não é porque degustamos melhor, mas para mostrar também a nossa opinião. Isso é uma diferença importante na sala de degustação. No comitê de degustação da Krug, damos espaço para os mais jovens, os mais velhos, com histórias diferentes. Isso traz a complexidade. Atualmente, além de Eric, no comitê de provas temos quatro mulheres e dois homens. Eu não gosto do opor homens e mulheres, mas gosto de trabalhar com mulheres. Mas primeiro tem uma questão de talento e eu sempre acredito na diversidade no ambiente de trabalho.

Você tem a oportunidade de provar o vinho brasileiro?

Conheço bem o Chandon, e gosto.

Como você compara Krug com os demais champanhes do grupo LVMH?

Sempre lembro de um ensinamento de Remi Krug: nunca compare o seu vinho com o de outro produtor, mas compare com as suas próprias criações anteriores. Eu sempre faço isso.

E você acha que está melhorando?

Não diria isso. Temos muitos bons champanhes no passado, mas é uma história diferente, posso preferir uma safra anterior. Mas fazemos champanhe em situação mais desafiantes do que antes.

No começo de 2020, a francesa Julie Cavil assumiu como primeira mulher a ser chefe de cave da Krug, uma das mais cobiçadas marcas de champanhe. Esta é a função mais importante nas maisons – cabe ao chefe de cave fazer a mistura de vinhos de uvas e safras diferentes para criar um novo champanhe e obter, em cada blend, o mesmo estilo da safra anterior. Não é uma missão fácil, que requer muito conhecimento dos vinhos que formam o champanhe, tanto que na história da vinícola, fundada em 1843, Julie é a sétima pessoa a assumir o posto.

Agora, com três anos na função, Julie se sente confortável com o desafio. Diz que a colheita é seu maior desafio. “É o ponto crucial e está cada vez mais difícil colher a uva no tempo certo”, conta ela, em rápida passagem pelo Brasil. Ela veio ao país para participar de uma imersão em uma fazenda de limão, junto com chef de 12 das Embaixadas Krug, como são chamados os restaurantes que representam a maison mundo afora – na América Latina, o único representante é o paulistano Kinoshita. Todos os anos, explica ela, a Krug promove esta viagem para conhecer mais de um ingrediente chave na criação de receitas para harmonizar com a bebida. A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu ao Paladar, entre o intervalo na visita à fazenda e o jantar de encerramento deste tour, no próprio Kinoshita.

O chefe de cave é quase um cargo vitalício, pelo tempo que o profissional fica na função. Quantos chefs de cave a Krug já teve?

Preciso contar (risos). Provavelmente sete. Cada geração da família teve um chefe de cave. Agora, com Remi Krug teve o Eric Lebel, que ficou no cargo por 21 anos, e eu, que assumi em 2020.

Você é uma enóloga de vocação tardia. Como você chegou à Krug?

Eu vivia em Paris e minha família não tem nenhum negócio com vinho. Se você me falasse, 20 anos atrás, que eu seria uma enóloga, eu não acreditaria, ainda mais na Krug. Eu comecei a gostar de vinho já adulta, quando trabalhava em uma agência de publicidade. Lembro quando comprei minha primeira enciclopédia, a Hachette des Vins, depois vieram os livros, os cursos, as masterclasses. Em 2002, me mudei para Champanhe, com a ideia de ter uma vida mais balanceada, um projeto de vida mais perto da natureza. Eu vinha do mercado publicitário, onde as coisas acontecem com muita intensidade e velocidade. Na Krug, a primeira coisa que você aprende é a ter paciência.

Qual foi a primeira vez que você provou um Krug?

Eu estava na minha sétima entrevista para este emprego e era uma conversa em inglês com o Remi Krug, sobre a minha capacidade de treinar pessoas. Ele se levantou, saiu da sala e voltou com o Krug Grande Cuvée e duas taças. Pensei que iríamos celebrar. Ele me serviu e me pediu para explicar o vinho fazendo-o sonhar com ele. Usei minha experiência do mercado de publicidade e comecei a falar de música e do champanhe. Aí ele pegou a taça e disse que a bebida estava bouchonée [fungo que ataca a rolha e estraga o vinho]. Só então eu provei o champanhe e disse que não estava, e ele insistia que estava. Depois, ele disse que realmente não estava bouchonée, mas que eu tinha de provar sempre antes de servir. Foi o meu primeiro Krug.

Julie Cavil, a primeira mulher a assumir como chefe de cave da Krug, tradicional casa de champanhe Foto: Michael Ferire

Quais as suas ideias como chefe de cave?

Meu desafio é preservar a herança dos meus antecessores, mas liderar um movimento de ir para a frente. É garantir que a próxima geração tenha continuidade. Me preocupo muito com as condições de trabalho na vinícola, para que seja confortável para todos. Um dos nossos focos é a sustentabilidade, também com os nossos produtores, porque cada safra são centenas de produtores e procuramos trabalhar muito perto deles.

Na sustentabilidade, o que a Krug faz exatamente?

Adaptamos a maneira de conduzir as nossas vinhas e a maneira de decidir o momento da colheita, que é uma das minhas obsessões. Como trabalhamos com baixa intervenção, não usamos nenhum produto de síntese para corrigir o vinho, temos de estar muitos atentos ao ponto de maturação das uvas. Nossos champanhes têm um longo amadurecimento, por isso, decido colher quando as uvas já não têm as notas vegetais, mas antes de ter notas de frutas mais maduras.

Está mudando a data de colheita?

É que antes era mais fácil colher no tempo certo, pelo nível de acidez e açúcar. Esta janela em que a uva tinha o ponto certo de colheita era maior. Eu desenvolvo muito a degustação, a habilidade de estar na vinha certa na hora certa, porque temos pouco tempo para isso. Este é um dos grandes desafios em champanhe. Tem anos que temos menos de 24 horas para colher. Por isso, invisto muito na prova das uvas. Acredito que conseguimos ter a habilidade de colher no tempo certo, que é o grande desafio de champanhe.

São vinhedos orgânicos?

Nossos vinhedos próprios são biológicos, somos certificados, mas não fazemos publicidade disso. Não estou satisfeita com o certificado orgânico, que nem sempre é verdadeiro. Não queremos o orgânico como argumento para que as pessoas comprem as nossas garrafas. Pedimos que os nossos parceiros sigam o programa orgânico, mas não queremos que eles assumam a certificação. Acredito que o orgânico nos faz prestar mais atenção ao vinhedo e este cuidado faz a diferença.

No portfolio da Krug, há espaço para mais um produto, uma edição especial?

Antes de vir para o Brasil, estávamos no processo de criação do novo blend. É um grande desafio fazer o mesmo nível de champanhe a cada ano. Sempre provamos às cegas, nunca sabemos de onde vem as uvas. Este ano, uma das nossas melhores amostras era de um vinho que nunca poderíamos apostar de onde tinha vindo. Era um pinot meunier, não era pinot noir ou chardonnay [os champanhes, em geral, são elaborados com três uvas, a chardonnay, branca, e a pinot noir e a pinot meunier, tintas]. Estamos mantendo este lote em separado para avaliar sua evolução.

Um pinot meunier?

Sim, normalmente o pinot meunier é uma uva para o blend. Eu adoro a chardonnay, sua delicadeza e seu aroma cítrico. Eu realmente preciso dela pela sua estrutura, pelo seu frescor, pela sua vivacidade. Mas, às vezes, como aconteceu no ano passado, que foi muito quente, os seus aromas cítricos não apareceram. Nos anos em que a chardonnay não vai bem, normalmente a pinot noir surpreendente, inclusive para o vinho para o champanhe rosé. Não é possível ter um Clos du Mesnil ou um Clos d’Ambonnay [vinhedos premium da Krug] com pinot meunier, mas é uma uva importante no Grande Cuvée. Mas precisamos lembrar sempre que são pinot meunier de diferentes lugares, e que temos de estar atentos as estas individualidades de cada vinhedo. Ou seja, na Krug você aprende duas coisas, a ter paciência e a esquecer tudo que aprendeu nos livros, como o caráter da pinot meunier.

O que é ser a primeira mulher a assumir a chefia de cave de uma marca tradicional, como a Krug?

Quando eu comecei esta transição, não tinha a questão de gênero. Foi uma transição natural. No passado, por exemplo, já tivemos uma CEO mulher, a Margareth Henriquez. Ser mulher nunca foi uma questão na minha carreira. Eu nascei em uma família de três irmãos, estava direto com homens, muitos dos meus amigos são homens. O ambiente masculino nunca foi um lugar onde eu me sentisse mal. Quando eu vim para Champanhe, talvez tivesse comentários, o que me fez querer fazer o melhor, ser a melhor da classe. Mas depois, não. Não senti muitas dificuldades. Acho que é mais o diferencial de ser mulher. Atualmente eu mando em vários homens e acredito que a minha empatia e a maneira de resolver os conflitos ajuda. Se você perguntar ao Eric Lebel, ele vai sempre dizer que é importante ter uma mulher na sala de degustação. Mas não é porque degustamos melhor, mas para mostrar também a nossa opinião. Isso é uma diferença importante na sala de degustação. No comitê de degustação da Krug, damos espaço para os mais jovens, os mais velhos, com histórias diferentes. Isso traz a complexidade. Atualmente, além de Eric, no comitê de provas temos quatro mulheres e dois homens. Eu não gosto do opor homens e mulheres, mas gosto de trabalhar com mulheres. Mas primeiro tem uma questão de talento e eu sempre acredito na diversidade no ambiente de trabalho.

Você tem a oportunidade de provar o vinho brasileiro?

Conheço bem o Chandon, e gosto.

Como você compara Krug com os demais champanhes do grupo LVMH?

Sempre lembro de um ensinamento de Remi Krug: nunca compare o seu vinho com o de outro produtor, mas compare com as suas próprias criações anteriores. Eu sempre faço isso.

E você acha que está melhorando?

Não diria isso. Temos muitos bons champanhes no passado, mas é uma história diferente, posso preferir uma safra anterior. Mas fazemos champanhe em situação mais desafiantes do que antes.

No começo de 2020, a francesa Julie Cavil assumiu como primeira mulher a ser chefe de cave da Krug, uma das mais cobiçadas marcas de champanhe. Esta é a função mais importante nas maisons – cabe ao chefe de cave fazer a mistura de vinhos de uvas e safras diferentes para criar um novo champanhe e obter, em cada blend, o mesmo estilo da safra anterior. Não é uma missão fácil, que requer muito conhecimento dos vinhos que formam o champanhe, tanto que na história da vinícola, fundada em 1843, Julie é a sétima pessoa a assumir o posto.

Agora, com três anos na função, Julie se sente confortável com o desafio. Diz que a colheita é seu maior desafio. “É o ponto crucial e está cada vez mais difícil colher a uva no tempo certo”, conta ela, em rápida passagem pelo Brasil. Ela veio ao país para participar de uma imersão em uma fazenda de limão, junto com chef de 12 das Embaixadas Krug, como são chamados os restaurantes que representam a maison mundo afora – na América Latina, o único representante é o paulistano Kinoshita. Todos os anos, explica ela, a Krug promove esta viagem para conhecer mais de um ingrediente chave na criação de receitas para harmonizar com a bebida. A seguir, trechos da entrevista que ela concedeu ao Paladar, entre o intervalo na visita à fazenda e o jantar de encerramento deste tour, no próprio Kinoshita.

O chefe de cave é quase um cargo vitalício, pelo tempo que o profissional fica na função. Quantos chefs de cave a Krug já teve?

Preciso contar (risos). Provavelmente sete. Cada geração da família teve um chefe de cave. Agora, com Remi Krug teve o Eric Lebel, que ficou no cargo por 21 anos, e eu, que assumi em 2020.

Você é uma enóloga de vocação tardia. Como você chegou à Krug?

Eu vivia em Paris e minha família não tem nenhum negócio com vinho. Se você me falasse, 20 anos atrás, que eu seria uma enóloga, eu não acreditaria, ainda mais na Krug. Eu comecei a gostar de vinho já adulta, quando trabalhava em uma agência de publicidade. Lembro quando comprei minha primeira enciclopédia, a Hachette des Vins, depois vieram os livros, os cursos, as masterclasses. Em 2002, me mudei para Champanhe, com a ideia de ter uma vida mais balanceada, um projeto de vida mais perto da natureza. Eu vinha do mercado publicitário, onde as coisas acontecem com muita intensidade e velocidade. Na Krug, a primeira coisa que você aprende é a ter paciência.

Qual foi a primeira vez que você provou um Krug?

Eu estava na minha sétima entrevista para este emprego e era uma conversa em inglês com o Remi Krug, sobre a minha capacidade de treinar pessoas. Ele se levantou, saiu da sala e voltou com o Krug Grande Cuvée e duas taças. Pensei que iríamos celebrar. Ele me serviu e me pediu para explicar o vinho fazendo-o sonhar com ele. Usei minha experiência do mercado de publicidade e comecei a falar de música e do champanhe. Aí ele pegou a taça e disse que a bebida estava bouchonée [fungo que ataca a rolha e estraga o vinho]. Só então eu provei o champanhe e disse que não estava, e ele insistia que estava. Depois, ele disse que realmente não estava bouchonée, mas que eu tinha de provar sempre antes de servir. Foi o meu primeiro Krug.

Julie Cavil, a primeira mulher a assumir como chefe de cave da Krug, tradicional casa de champanhe Foto: Michael Ferire

Quais as suas ideias como chefe de cave?

Meu desafio é preservar a herança dos meus antecessores, mas liderar um movimento de ir para a frente. É garantir que a próxima geração tenha continuidade. Me preocupo muito com as condições de trabalho na vinícola, para que seja confortável para todos. Um dos nossos focos é a sustentabilidade, também com os nossos produtores, porque cada safra são centenas de produtores e procuramos trabalhar muito perto deles.

Na sustentabilidade, o que a Krug faz exatamente?

Adaptamos a maneira de conduzir as nossas vinhas e a maneira de decidir o momento da colheita, que é uma das minhas obsessões. Como trabalhamos com baixa intervenção, não usamos nenhum produto de síntese para corrigir o vinho, temos de estar muitos atentos ao ponto de maturação das uvas. Nossos champanhes têm um longo amadurecimento, por isso, decido colher quando as uvas já não têm as notas vegetais, mas antes de ter notas de frutas mais maduras.

Está mudando a data de colheita?

É que antes era mais fácil colher no tempo certo, pelo nível de acidez e açúcar. Esta janela em que a uva tinha o ponto certo de colheita era maior. Eu desenvolvo muito a degustação, a habilidade de estar na vinha certa na hora certa, porque temos pouco tempo para isso. Este é um dos grandes desafios em champanhe. Tem anos que temos menos de 24 horas para colher. Por isso, invisto muito na prova das uvas. Acredito que conseguimos ter a habilidade de colher no tempo certo, que é o grande desafio de champanhe.

São vinhedos orgânicos?

Nossos vinhedos próprios são biológicos, somos certificados, mas não fazemos publicidade disso. Não estou satisfeita com o certificado orgânico, que nem sempre é verdadeiro. Não queremos o orgânico como argumento para que as pessoas comprem as nossas garrafas. Pedimos que os nossos parceiros sigam o programa orgânico, mas não queremos que eles assumam a certificação. Acredito que o orgânico nos faz prestar mais atenção ao vinhedo e este cuidado faz a diferença.

No portfolio da Krug, há espaço para mais um produto, uma edição especial?

Antes de vir para o Brasil, estávamos no processo de criação do novo blend. É um grande desafio fazer o mesmo nível de champanhe a cada ano. Sempre provamos às cegas, nunca sabemos de onde vem as uvas. Este ano, uma das nossas melhores amostras era de um vinho que nunca poderíamos apostar de onde tinha vindo. Era um pinot meunier, não era pinot noir ou chardonnay [os champanhes, em geral, são elaborados com três uvas, a chardonnay, branca, e a pinot noir e a pinot meunier, tintas]. Estamos mantendo este lote em separado para avaliar sua evolução.

Um pinot meunier?

Sim, normalmente o pinot meunier é uma uva para o blend. Eu adoro a chardonnay, sua delicadeza e seu aroma cítrico. Eu realmente preciso dela pela sua estrutura, pelo seu frescor, pela sua vivacidade. Mas, às vezes, como aconteceu no ano passado, que foi muito quente, os seus aromas cítricos não apareceram. Nos anos em que a chardonnay não vai bem, normalmente a pinot noir surpreendente, inclusive para o vinho para o champanhe rosé. Não é possível ter um Clos du Mesnil ou um Clos d’Ambonnay [vinhedos premium da Krug] com pinot meunier, mas é uma uva importante no Grande Cuvée. Mas precisamos lembrar sempre que são pinot meunier de diferentes lugares, e que temos de estar atentos as estas individualidades de cada vinhedo. Ou seja, na Krug você aprende duas coisas, a ter paciência e a esquecer tudo que aprendeu nos livros, como o caráter da pinot meunier.

O que é ser a primeira mulher a assumir a chefia de cave de uma marca tradicional, como a Krug?

Quando eu comecei esta transição, não tinha a questão de gênero. Foi uma transição natural. No passado, por exemplo, já tivemos uma CEO mulher, a Margareth Henriquez. Ser mulher nunca foi uma questão na minha carreira. Eu nascei em uma família de três irmãos, estava direto com homens, muitos dos meus amigos são homens. O ambiente masculino nunca foi um lugar onde eu me sentisse mal. Quando eu vim para Champanhe, talvez tivesse comentários, o que me fez querer fazer o melhor, ser a melhor da classe. Mas depois, não. Não senti muitas dificuldades. Acho que é mais o diferencial de ser mulher. Atualmente eu mando em vários homens e acredito que a minha empatia e a maneira de resolver os conflitos ajuda. Se você perguntar ao Eric Lebel, ele vai sempre dizer que é importante ter uma mulher na sala de degustação. Mas não é porque degustamos melhor, mas para mostrar também a nossa opinião. Isso é uma diferença importante na sala de degustação. No comitê de degustação da Krug, damos espaço para os mais jovens, os mais velhos, com histórias diferentes. Isso traz a complexidade. Atualmente, além de Eric, no comitê de provas temos quatro mulheres e dois homens. Eu não gosto do opor homens e mulheres, mas gosto de trabalhar com mulheres. Mas primeiro tem uma questão de talento e eu sempre acredito na diversidade no ambiente de trabalho.

Você tem a oportunidade de provar o vinho brasileiro?

Conheço bem o Chandon, e gosto.

Como você compara Krug com os demais champanhes do grupo LVMH?

Sempre lembro de um ensinamento de Remi Krug: nunca compare o seu vinho com o de outro produtor, mas compare com as suas próprias criações anteriores. Eu sempre faço isso.

E você acha que está melhorando?

Não diria isso. Temos muitos bons champanhes no passado, mas é uma história diferente, posso preferir uma safra anterior. Mas fazemos champanhe em situação mais desafiantes do que antes.

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