Eu só queria jantar

Ouça, coma, reflita, devore


O Paladar desta semana é temático e não traz a coluna (ela volta na semana que vem). Mas nem por isso deixamos de ter o restaurante das quintas-feiras ? desta vez, uma casa do Rio de Janeiro. Peço paciência com a mistura de temas e com as associações meio excêntricas: mantive o texto mais ou menos do jeito que ele me veio, na vertigem da viagem. O programa é dos melhores.

Por Luiz Américo Camargo

Tenho dificuldades com Schoenberg. Já tentei ouvir, não me prende, não há satisfação. Dodecafonismo, dizem músicos e pedagogos da área, exige treino, pede o estabelecimento de uma familiaridade. Se você se condiciona e aprende a decifrar a linguagem, gosta. Não alcancei esse estágio. Parei em Debussy e Stravinsky (entre outros), parei nos limites da tonalidade. Com eles, até consigo perceber essa história de que, captando a estrutura, vislumbrando a arquitetura (meu entendimento, que fique claro, é o do leigo com algum verniz), aproveita-se melhor a obra. Embora eu goste mesmo é das melodias e harmonias ? algo que vem antes de entendimentos mais cerebrais. O parágrafo de abertura deste texto me ocorreu no retorno de uma viagem bate-volta para o Rio, logo depois de um jantar no Lasai. Por que música? Porque a experiência tinha extrapolado a simples refeição: recordar seus passos evocava associações diversas, provocava outras conexões. E eu percebi que o restaurante do chef Rafa Costa e Silva tem aquela rara qualidade de permitir fruições em diversos níveis e camadas. Quem se interessa por técnicas, conceitos e filosofias, vai gostar muito ­? e isso não tem a ver com jantares verborrágicos e explicações intermináveis sobre receitas. Quem tem, vá lá, paladar mais treinado e percebe a elegância das composições, das tramas de sabores e notas, idem. Quem apenas quer comer bem, sem teorizar, também vai se esbaldar. O Lasai, assim sendo, se garante a partir do essencial: em seus pratos, platillos, snacks, sobremesas. O conjunto é delicioso. Mas também se afirma, astutamente, num discurso em segundo plano: permite que o comensal, junto com bocados de comida, mastigue o gosto de se sentir inteligente. Ao melhor estilo ?entendi a brincadeira, captei a proposta, recebi a mensagem?. A totalidade do programa, claro, ajuda muito. A casa, em Botafogo, é muito bonita, um imóvel antigo com intervenções surpreendentes; nada grita, nada se impõe pela opulência; a cozinha é um espetáculo à parte; o serviço tem aquela rara medida entre gentileza, altivez e eficiência; você é muito bem acolhido e fica à vontade. Mas sentemos à mesa. Pedi o menu festival (R$ 245), servido em cerca de duas horas, num ritmo bastante ponderado, sem atropelos nem grandes intervalos. Foram quatorze tempos, mais três pequenas sobremesas. Não vou mostrar a lista completa, correndo o risco de transformar o texto, ele próprio, num rosário interminável de ingredientes e preparações. Mas não tenho como deixar de me ater a alguns destaques. A degustação começa bem, chega ao ápice, termina bem. Tem momentos mais ligeiros e divertidos, passagens mais sérias. Alterna pianos e fortíssimos, mas mantém o nível alto. Rafa Costa e Silva, a despeito dos cinco anos trabalhando com Andoni Luis Aduriz no Mugaritz, tem uma visão muito particular da cozinha. Há muito de espanhol em suas concepções; há muito de Brasil na sua paleta de cores e sabores. Seu nível de sal não é dos mais altos, mas não por timidez. É que a personalidade de seus pratos se constrói na soma dos vetores: a acidez, a profundidade de sabor dos caldos, os constrastes. Há surpresas, mas não há lances aleatórios ? o que, aliás, me faz pensar de novo em música. Os acordes às vezes são perfeitos. Em outros momentos, dissonantes. Em certas ocasiões, quase ensaiam sair do centro tonal, para desmontar nossas certezas ? mas, no fim, se completam, fecham o tema. Só fingem o solavanco, só ameaçam desestabilizar o espectador/glutão, para devolvê-lo a um lugar seguro e reconfortante. O equilíbrio não se perde. A brandade de beijupirá, o blini de beterraba com ricota de ovelha, a carne de porco enrolada num charuto de alface romana, todos parecem pura diversão. Mas é bem mais. É um flerte com a transgressão de clássicos, um jogo de citações ? muito bom de comer, esteja você atento às referências ou não. O arroz de embutidos com língua, apresentado como um canapé, a tapioca de rabada, a vieira com tutano, tudo dá vontade de repetir. E há os pratos de resistência, notáveis: faisão com mandioquinha, peito de wagyu a baixa temperatura (de cortar com colher) com batata doce, e um admirável pargo com cebolas e caldo de porco ? um peixe de tamanho frescor, gelatinoso e delicado, talvez no nível dos que já comi no Japão. E é neste ponto que se consolida um dos pilares do Lasai. Para além da execução rigorosa, das cocções milimétricas, das apresentações instigantes, da técnica bem dosada (e a serviço do prazer), existe uma devoção à matéria-prima. O produto sempre toma a dianteira, dos legumes aos frutos do mar, em todas as carnes. Rafa Costa e Silva não é um chef de laboratório, um pesquisador de gabinete: é um cozinheiro de lavouras, da pesca, do mercado. Na hora da sobremesa, mais algumas sutis subversões. O melão ?gin tônica?, a abóbora com banana e coco queimado, o bolo de fubá com erva-doce recriado... Por fim, não há como negar que uma refeição desse porte se enriquece ainda mais com um trabalho como o do sommelier venezuelano Oliver Gonzalez (um dos vários estrangeiros da brigada multinacional do restaurante). Suas escolhas, especialmente exemplares naturais e biodinâmicos, foram sendo apresentadas aos poucos, com entusiasmo contido e precisão. Tintos e brancos do Loire, da Sardenha, do Jura, pinçados com objetividade, e não como mera demonstração de erudição. O resumo do concerto? O menu (que pode mudar, constantemente) é longo, a carga de informações é intensa, a quantidade de comida pode chegar ao limite da maioria dos comensais. E, certamente, foi um dos grandes repastos deste ano, num restaurante que cumpre sua temporada de estreia já no grupo de elite da primeira divisão. Para não fugir à linha daEu Só Queria Jantar, eu concluo, convictamente: vale. Lasai ?R. Conde de Irajá, 191, (21) 3449-1834, Rio de Janeiro (entre os dias 5 e 7, realiza jantares especiais, com presença do chef basco Andoni Luis Aduriz).

Tenho dificuldades com Schoenberg. Já tentei ouvir, não me prende, não há satisfação. Dodecafonismo, dizem músicos e pedagogos da área, exige treino, pede o estabelecimento de uma familiaridade. Se você se condiciona e aprende a decifrar a linguagem, gosta. Não alcancei esse estágio. Parei em Debussy e Stravinsky (entre outros), parei nos limites da tonalidade. Com eles, até consigo perceber essa história de que, captando a estrutura, vislumbrando a arquitetura (meu entendimento, que fique claro, é o do leigo com algum verniz), aproveita-se melhor a obra. Embora eu goste mesmo é das melodias e harmonias ? algo que vem antes de entendimentos mais cerebrais. O parágrafo de abertura deste texto me ocorreu no retorno de uma viagem bate-volta para o Rio, logo depois de um jantar no Lasai. Por que música? Porque a experiência tinha extrapolado a simples refeição: recordar seus passos evocava associações diversas, provocava outras conexões. E eu percebi que o restaurante do chef Rafa Costa e Silva tem aquela rara qualidade de permitir fruições em diversos níveis e camadas. Quem se interessa por técnicas, conceitos e filosofias, vai gostar muito ­? e isso não tem a ver com jantares verborrágicos e explicações intermináveis sobre receitas. Quem tem, vá lá, paladar mais treinado e percebe a elegância das composições, das tramas de sabores e notas, idem. Quem apenas quer comer bem, sem teorizar, também vai se esbaldar. O Lasai, assim sendo, se garante a partir do essencial: em seus pratos, platillos, snacks, sobremesas. O conjunto é delicioso. Mas também se afirma, astutamente, num discurso em segundo plano: permite que o comensal, junto com bocados de comida, mastigue o gosto de se sentir inteligente. Ao melhor estilo ?entendi a brincadeira, captei a proposta, recebi a mensagem?. A totalidade do programa, claro, ajuda muito. A casa, em Botafogo, é muito bonita, um imóvel antigo com intervenções surpreendentes; nada grita, nada se impõe pela opulência; a cozinha é um espetáculo à parte; o serviço tem aquela rara medida entre gentileza, altivez e eficiência; você é muito bem acolhido e fica à vontade. Mas sentemos à mesa. Pedi o menu festival (R$ 245), servido em cerca de duas horas, num ritmo bastante ponderado, sem atropelos nem grandes intervalos. Foram quatorze tempos, mais três pequenas sobremesas. Não vou mostrar a lista completa, correndo o risco de transformar o texto, ele próprio, num rosário interminável de ingredientes e preparações. Mas não tenho como deixar de me ater a alguns destaques. A degustação começa bem, chega ao ápice, termina bem. Tem momentos mais ligeiros e divertidos, passagens mais sérias. Alterna pianos e fortíssimos, mas mantém o nível alto. Rafa Costa e Silva, a despeito dos cinco anos trabalhando com Andoni Luis Aduriz no Mugaritz, tem uma visão muito particular da cozinha. Há muito de espanhol em suas concepções; há muito de Brasil na sua paleta de cores e sabores. Seu nível de sal não é dos mais altos, mas não por timidez. É que a personalidade de seus pratos se constrói na soma dos vetores: a acidez, a profundidade de sabor dos caldos, os constrastes. Há surpresas, mas não há lances aleatórios ? o que, aliás, me faz pensar de novo em música. Os acordes às vezes são perfeitos. Em outros momentos, dissonantes. Em certas ocasiões, quase ensaiam sair do centro tonal, para desmontar nossas certezas ? mas, no fim, se completam, fecham o tema. Só fingem o solavanco, só ameaçam desestabilizar o espectador/glutão, para devolvê-lo a um lugar seguro e reconfortante. O equilíbrio não se perde. A brandade de beijupirá, o blini de beterraba com ricota de ovelha, a carne de porco enrolada num charuto de alface romana, todos parecem pura diversão. Mas é bem mais. É um flerte com a transgressão de clássicos, um jogo de citações ? muito bom de comer, esteja você atento às referências ou não. O arroz de embutidos com língua, apresentado como um canapé, a tapioca de rabada, a vieira com tutano, tudo dá vontade de repetir. E há os pratos de resistência, notáveis: faisão com mandioquinha, peito de wagyu a baixa temperatura (de cortar com colher) com batata doce, e um admirável pargo com cebolas e caldo de porco ? um peixe de tamanho frescor, gelatinoso e delicado, talvez no nível dos que já comi no Japão. E é neste ponto que se consolida um dos pilares do Lasai. Para além da execução rigorosa, das cocções milimétricas, das apresentações instigantes, da técnica bem dosada (e a serviço do prazer), existe uma devoção à matéria-prima. O produto sempre toma a dianteira, dos legumes aos frutos do mar, em todas as carnes. Rafa Costa e Silva não é um chef de laboratório, um pesquisador de gabinete: é um cozinheiro de lavouras, da pesca, do mercado. Na hora da sobremesa, mais algumas sutis subversões. O melão ?gin tônica?, a abóbora com banana e coco queimado, o bolo de fubá com erva-doce recriado... Por fim, não há como negar que uma refeição desse porte se enriquece ainda mais com um trabalho como o do sommelier venezuelano Oliver Gonzalez (um dos vários estrangeiros da brigada multinacional do restaurante). Suas escolhas, especialmente exemplares naturais e biodinâmicos, foram sendo apresentadas aos poucos, com entusiasmo contido e precisão. Tintos e brancos do Loire, da Sardenha, do Jura, pinçados com objetividade, e não como mera demonstração de erudição. O resumo do concerto? O menu (que pode mudar, constantemente) é longo, a carga de informações é intensa, a quantidade de comida pode chegar ao limite da maioria dos comensais. E, certamente, foi um dos grandes repastos deste ano, num restaurante que cumpre sua temporada de estreia já no grupo de elite da primeira divisão. Para não fugir à linha daEu Só Queria Jantar, eu concluo, convictamente: vale. Lasai ?R. Conde de Irajá, 191, (21) 3449-1834, Rio de Janeiro (entre os dias 5 e 7, realiza jantares especiais, com presença do chef basco Andoni Luis Aduriz).

Tenho dificuldades com Schoenberg. Já tentei ouvir, não me prende, não há satisfação. Dodecafonismo, dizem músicos e pedagogos da área, exige treino, pede o estabelecimento de uma familiaridade. Se você se condiciona e aprende a decifrar a linguagem, gosta. Não alcancei esse estágio. Parei em Debussy e Stravinsky (entre outros), parei nos limites da tonalidade. Com eles, até consigo perceber essa história de que, captando a estrutura, vislumbrando a arquitetura (meu entendimento, que fique claro, é o do leigo com algum verniz), aproveita-se melhor a obra. Embora eu goste mesmo é das melodias e harmonias ? algo que vem antes de entendimentos mais cerebrais. O parágrafo de abertura deste texto me ocorreu no retorno de uma viagem bate-volta para o Rio, logo depois de um jantar no Lasai. Por que música? Porque a experiência tinha extrapolado a simples refeição: recordar seus passos evocava associações diversas, provocava outras conexões. E eu percebi que o restaurante do chef Rafa Costa e Silva tem aquela rara qualidade de permitir fruições em diversos níveis e camadas. Quem se interessa por técnicas, conceitos e filosofias, vai gostar muito ­? e isso não tem a ver com jantares verborrágicos e explicações intermináveis sobre receitas. Quem tem, vá lá, paladar mais treinado e percebe a elegância das composições, das tramas de sabores e notas, idem. Quem apenas quer comer bem, sem teorizar, também vai se esbaldar. O Lasai, assim sendo, se garante a partir do essencial: em seus pratos, platillos, snacks, sobremesas. O conjunto é delicioso. Mas também se afirma, astutamente, num discurso em segundo plano: permite que o comensal, junto com bocados de comida, mastigue o gosto de se sentir inteligente. Ao melhor estilo ?entendi a brincadeira, captei a proposta, recebi a mensagem?. A totalidade do programa, claro, ajuda muito. A casa, em Botafogo, é muito bonita, um imóvel antigo com intervenções surpreendentes; nada grita, nada se impõe pela opulência; a cozinha é um espetáculo à parte; o serviço tem aquela rara medida entre gentileza, altivez e eficiência; você é muito bem acolhido e fica à vontade. Mas sentemos à mesa. Pedi o menu festival (R$ 245), servido em cerca de duas horas, num ritmo bastante ponderado, sem atropelos nem grandes intervalos. Foram quatorze tempos, mais três pequenas sobremesas. Não vou mostrar a lista completa, correndo o risco de transformar o texto, ele próprio, num rosário interminável de ingredientes e preparações. Mas não tenho como deixar de me ater a alguns destaques. A degustação começa bem, chega ao ápice, termina bem. Tem momentos mais ligeiros e divertidos, passagens mais sérias. Alterna pianos e fortíssimos, mas mantém o nível alto. Rafa Costa e Silva, a despeito dos cinco anos trabalhando com Andoni Luis Aduriz no Mugaritz, tem uma visão muito particular da cozinha. Há muito de espanhol em suas concepções; há muito de Brasil na sua paleta de cores e sabores. Seu nível de sal não é dos mais altos, mas não por timidez. É que a personalidade de seus pratos se constrói na soma dos vetores: a acidez, a profundidade de sabor dos caldos, os constrastes. Há surpresas, mas não há lances aleatórios ? o que, aliás, me faz pensar de novo em música. Os acordes às vezes são perfeitos. Em outros momentos, dissonantes. Em certas ocasiões, quase ensaiam sair do centro tonal, para desmontar nossas certezas ? mas, no fim, se completam, fecham o tema. Só fingem o solavanco, só ameaçam desestabilizar o espectador/glutão, para devolvê-lo a um lugar seguro e reconfortante. O equilíbrio não se perde. A brandade de beijupirá, o blini de beterraba com ricota de ovelha, a carne de porco enrolada num charuto de alface romana, todos parecem pura diversão. Mas é bem mais. É um flerte com a transgressão de clássicos, um jogo de citações ? muito bom de comer, esteja você atento às referências ou não. O arroz de embutidos com língua, apresentado como um canapé, a tapioca de rabada, a vieira com tutano, tudo dá vontade de repetir. E há os pratos de resistência, notáveis: faisão com mandioquinha, peito de wagyu a baixa temperatura (de cortar com colher) com batata doce, e um admirável pargo com cebolas e caldo de porco ? um peixe de tamanho frescor, gelatinoso e delicado, talvez no nível dos que já comi no Japão. E é neste ponto que se consolida um dos pilares do Lasai. Para além da execução rigorosa, das cocções milimétricas, das apresentações instigantes, da técnica bem dosada (e a serviço do prazer), existe uma devoção à matéria-prima. O produto sempre toma a dianteira, dos legumes aos frutos do mar, em todas as carnes. Rafa Costa e Silva não é um chef de laboratório, um pesquisador de gabinete: é um cozinheiro de lavouras, da pesca, do mercado. Na hora da sobremesa, mais algumas sutis subversões. O melão ?gin tônica?, a abóbora com banana e coco queimado, o bolo de fubá com erva-doce recriado... Por fim, não há como negar que uma refeição desse porte se enriquece ainda mais com um trabalho como o do sommelier venezuelano Oliver Gonzalez (um dos vários estrangeiros da brigada multinacional do restaurante). Suas escolhas, especialmente exemplares naturais e biodinâmicos, foram sendo apresentadas aos poucos, com entusiasmo contido e precisão. Tintos e brancos do Loire, da Sardenha, do Jura, pinçados com objetividade, e não como mera demonstração de erudição. O resumo do concerto? O menu (que pode mudar, constantemente) é longo, a carga de informações é intensa, a quantidade de comida pode chegar ao limite da maioria dos comensais. E, certamente, foi um dos grandes repastos deste ano, num restaurante que cumpre sua temporada de estreia já no grupo de elite da primeira divisão. Para não fugir à linha daEu Só Queria Jantar, eu concluo, convictamente: vale. Lasai ?R. Conde de Irajá, 191, (21) 3449-1834, Rio de Janeiro (entre os dias 5 e 7, realiza jantares especiais, com presença do chef basco Andoni Luis Aduriz).

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