Ingredientes brasileiros estudados na cozinha

Carimã, uma das incontáveis formas de preparar a mandioca


O nome varia conforme a região do País, mas a mandioca, mansa ou brava, fermentada e amolecida dá origem a diversos preparos

Por Neide Rigo
Atualização:

Por muito tempo, minha mãe acreditava que pão caseiro só ficava bom se fosse assado em forno de lenha, como se fazia no sítio dos meus avós, no Paraná. Os primeiros pães de que tenho lembrança eram de torresmo e a gente levava a massa para assar na padaria do bairro, no forno de lenha, claro.

Como nossa vizinhança aqui em São Paulo não tinha tradição de fazer pão, ela deve ter descoberto com alguma cliente de costura que poderia, sim, usar para isto seu forno doméstico e foi se arriscando na empreita para alegria da filharada que passou a comer pão quente com chá mate no chá da tarde.

Carimã. Mandioca mansa ou brava fermentada e amolecida consumida em diferentes formas Foto: Neide Rigo|Estadão
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Isto é só para comparar ao que acontece ainda hoje com nossas técnicas ancestrais que muitas vezes se perdem por continuarem restritas à forma, ao ritual, aos equipamentos e à dimensão, nem sempre compatíveis com a vida urbana. Gosto de adaptar estes preparos para as circunstâncias de nossas cozinhas. Trazê-los para a atualidade ajuda a manter viva a tradição que muitas vezes é substituída por alimentos ultra-processados.

A mandioca, que não canso de saudar e endeusar, é um caso emblemático, pois não conheço outra espécie vegetal que nos dê tanto subproduto. Só de tipo de farinha, são tantas as variações que certamente há um tipo para cada dia do ano, com dizem os franceses em relação aos queijos.

Durante séculos de evolução, os donos dessa terra tiveram tempo para aperfeiçoar técnicas que infelizmente vamos morrer sem conhecer ou vão desaparecer sem que antes pudéssemos ter o privilégio de saber – caso também da alta densidade linguística original que cai dia a dia, para preocupação de ativistas e antropólogos.

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Com um repertório indígena tão rico, é triste saber que a mandioca sobrevive entre nós basicamente como legume, farinha e o beiju de tapioca que se popularizou recentemente. É triste também saber que mesmo com a moda, o conhecimento tradicional não acompanha, por isto não é raro encontrarmos quem se espante ao descobrir que a tapioca úmida do mercado é o mesmo que polvilho molhado, que tapioca é o nome do amido da mandioca ou que o disco chamado de tapioca é um tipo de beiju e que beiju é o pão chato indígena e pode ser de tapioca, mas também de massa e ainda de tantos outros jeitos. E aí é que entram os equipamentos domésticos que podem nos incentivar a dar seguimento, se não à técnica original, ao menos à adaptação, sem nunca esquecer nossas referências.

É claro que ninguém vai ficar na cozinha do apartamento socando lascas de mandioca para fazer farinha de raspa, mas um liquidificador, para quantidades familiares, e se for um super liquidificador ou um Termomix, melhor ainda, resolve esta parte do processo. Não vamos ter um riacho de águas limpas na porta de casa para deixar uma cesta com mandioca para fermentar e amolecer, mas um pequeno pote com água na soleira da janela resolve.

Um processador pode adiantar o processo de amassar de forma bem uniforme a mandioca amolecida quando não se tem tempo para amassar com as mãos. Com aparelhos que costumamos ter em casa é possível incorporar à nossa dieta tradições que aprendemos com povos tradicionais e assim torná-la mais acessível, local, sustentável e nutritiva.

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Todas as vezes que viajo me surpreendo com as formas que a raiz e seus derivados adquirem conforme o sotaque e, a cada descoberta, uma nova paixão me acomete. Nos dois últimos meses viajei para a Amazônia e para o Nordeste e o produto recorrente foi a carimã, cujo nome pode variar se estamos no Norte ou Nordeste e que nada mais é que a mandioca, mansa ou brava, fermentada e amolecida dando origem a vários preparos.

É uma forma tão genial de transformação que não resisto a comparação ao milho nixtamalizado dos mexicanos – o tratamento com cal e calor facilita a extração da película e torna o milho mais nutritivo e flexível para fazer tortilhas.

A mandioca brava, que não serve pra ser comida como legume, com a fermentação se torna mole e pode ser descascada com facilidade, perde a toxicidade, mantem quase todo o amido, pode ser esmigalhada em vez de ralada, e pode ser consumida na forma de farinhas, bolos, beijus. Ela pode ser descascada também, mas não precisa.

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Puba prensada Foto: Neide Rigo|Estadão

Conversando com um produtor do sul da Amazônia, ele me disse que costuma deixar a casca quando faz a pubagem em água de igarapés, pois a casca protege de manchar com terra. Se fermenta em caixas, já prefere descascar, pois ficará mais branquinha.

Enquanto no Norte a mandioca pubada costuma ser a brava e segue principalmente para fazer farinha d´água (nomeada assim porque a mandioca fica na água), no Nordeste a mansa também é usada, pode ser chamada de carimã e é comercializada fresca ou seca para se fazer bolos, mingaus e preparos como o grolado – a massa é levada ao fogo em frigideira de ferro com manteiga e mexida até formar pequenos grumos cozidos e é tão delicioso como um cuscuz.

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+ RECEITA:  Mingau de carimã

Em Fortaleza, no Mercado São Sebastião, há carimã fresca para comprar durante o ano. Quando chega a época das festas junina, o consumo é tão grande que vendem também a farinha que foi sendo produzida ao longo do ano, para atender a demanda para papas, bolos como o pé-de-moleque etc.

Ali a mandioca usada é a mansa, também chamada de aipim ou macaxeira (em São Paulo, chamamos simplesmente de mandioca porque não temos da brava - lembrando que ambas são da mesma espécie, Manihot esculenta, sendo que a brava tem uma quantidade maior, acima de 100 ppm, de glicosídeo cianogênico, a substância que lhe dá o caráter tóxico quando não fermentada).

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No Sul do Amazonas a massa fermentada, antes de virar farinha, se transforma também em arubé, juntando-a com pimentas socadas e isto será tema para outra coluna, de tão viciada que estou. Que tabasco, que nada, todo restaurante tinha que ter arubé!

Em São Paulo, no Mercado da Lapa, também tem puba para comprar, mas lembro de uma vez ter ligado para o produtor do Ceará e ele misturava puba e massa fresca. Eu prefiro usar carimã pura, que é lisinha, rica em amido, com a fibra toda desfeita.

Em Goiânia comprei uma vez bolinhas de carimã – é a massa transformada em bolas e secas ao sol.

Carimã secando Foto: Neida Rigo|Estadão

A maneira de fazer a farinha de carimã é a seguinte: a mandioca fermentada e mole é lavada, bem escorrida e passada em urupema para tirar o pavio e fiapos, que podem também ser tirados com as mãos. A massa é então espremida em pano ou saco de nylon e transformada em bolinhas que são secas ao sol.

Podem ser guardadas assim ou piladas ou trituradas pra virar farinha. A diferença desta para outras farinhas de mandioca é que ela é crua e integral, enquanto a que usamos como farinha de mesa é torrada. Esta e outras cruas como farinha de crueira e a de raspa – chamada internacionalmente de cassava flour, conservam o perfume da mandioca, são brancas, fininhas e ricas em amido, características que as fazem perfeitas para substituir o trigo em vários pratos.

O mingau de carimã costuma ser o preparo mais citado, conservando a ancestralidade das papas nem doces nem salgadas. Bolos antigos mais rústicos, assados na palha de bananeira, ganharam acréscimos de ingredientes exóticos de cozinheiras portuguesas, como manteiga, açúcar e leite.

Em compensação, o famoso bolo pernambucano Souza Leão nasceu do processo inverso, incluindo a massa de carimã no lugar da farinha de trigo. E o pé-de-moleque é outro que ninguém deixa de lembrar quando se fala de puba. Leva especiarias, castanhas e o preparo pode variar conforme a região.

O fato é que podemos fazer carimã em casa com a mandioca mansa que compramos na feira ou no supermercado, como fazemos kefir, kombucha ou coalhada, de modo muito simples que pode se adaptar a qualquer estrutura de cozinha. Até mesmo com aquela que já vem descascada.

Mingau de carimã Foto: Neide Rigo|Estadão

E por falar nisso, uma vez esqueci na geladeira por uns três meses um saco com mandioca, desses que vêm com água, e quando abri ela estava totalmente derretendo, com cheiro agradável. Passei tudo pelo processador, usei a massa para fazer bolo e ele ficou divino.

Depois pensei que nem precisava ter passado antes pelo processador. Bastava bater as próprias raízes moles pelo liquidificador junto com os ovos, leite de coco e manteiga derretida. Às vezes faço mingau assim também. Bato um pedaço de mandioca puba junto com o leite e levo ao fogo para espessar.

Uma prática comum em relação à massa de carimã é enxaguar as raízes várias vezes depois de escorrer a água fermentada que costuma ter uma nata branca de fungo por cima. Se a água, que não é trocada durante o processo, está muito fermentada, o cheiro será forte e esta operação é fundamental. Para isto, usa-se um saco de pano. Lava-se e deixa escorrer o excesso de água, como se escorre uma coalhada. Nem sempre há necessidade. Se as raízes estão bem limpas e se são retiradas da água assim que ficam mole, basta um enxague em água limpa.

+ RECEITA: como fazer carimã em casa

Ainda que esta técnica indígena seja mais amplamente difundida no Norte e Nordeste, podemos encontrá-la mesmo em São Paulo. No Vale do Ribeira, comunidades quilombolas e população rural também a aplica para no feitio do bolo em forma de cilindro embalado em folha de bananeira, chamado coruyá ou coruja. É salgado, massudo, ligeiramente ácido e tem a cara de um provolone.

Atualmente quase não usam mais a folha de bananeira, que lhe dava tanto sabor quanto graça no invólucro. Para fora do país, a técnica de pubagem também parece não ter viajado muito. Nas vezes em que estive no Senegal quase não vi mandioca senão como legume, mas na beira da estrada vendiam um grande cilindro embalado em folha de bananeira, à semelhança da coruja e me contaram que era feito de mandioca fermentada, fato que não pude comprovar - pelo sabor ácido esperado daria para saber.

Mas em uma loja de produtos africanos em Paris comprei um rolo parecido e este sim era feito com mandioca fermentada. Não consegui descobrir se era o mesmo do Senegal.

Mas vejamos como fazer a sua própria carimã em casa e assim agradecer sempre esta grande herança indígena que não podemos deixar morrer.

Por muito tempo, minha mãe acreditava que pão caseiro só ficava bom se fosse assado em forno de lenha, como se fazia no sítio dos meus avós, no Paraná. Os primeiros pães de que tenho lembrança eram de torresmo e a gente levava a massa para assar na padaria do bairro, no forno de lenha, claro.

Como nossa vizinhança aqui em São Paulo não tinha tradição de fazer pão, ela deve ter descoberto com alguma cliente de costura que poderia, sim, usar para isto seu forno doméstico e foi se arriscando na empreita para alegria da filharada que passou a comer pão quente com chá mate no chá da tarde.

Carimã. Mandioca mansa ou brava fermentada e amolecida consumida em diferentes formas Foto: Neide Rigo|Estadão

Isto é só para comparar ao que acontece ainda hoje com nossas técnicas ancestrais que muitas vezes se perdem por continuarem restritas à forma, ao ritual, aos equipamentos e à dimensão, nem sempre compatíveis com a vida urbana. Gosto de adaptar estes preparos para as circunstâncias de nossas cozinhas. Trazê-los para a atualidade ajuda a manter viva a tradição que muitas vezes é substituída por alimentos ultra-processados.

A mandioca, que não canso de saudar e endeusar, é um caso emblemático, pois não conheço outra espécie vegetal que nos dê tanto subproduto. Só de tipo de farinha, são tantas as variações que certamente há um tipo para cada dia do ano, com dizem os franceses em relação aos queijos.

Durante séculos de evolução, os donos dessa terra tiveram tempo para aperfeiçoar técnicas que infelizmente vamos morrer sem conhecer ou vão desaparecer sem que antes pudéssemos ter o privilégio de saber – caso também da alta densidade linguística original que cai dia a dia, para preocupação de ativistas e antropólogos.

Com um repertório indígena tão rico, é triste saber que a mandioca sobrevive entre nós basicamente como legume, farinha e o beiju de tapioca que se popularizou recentemente. É triste também saber que mesmo com a moda, o conhecimento tradicional não acompanha, por isto não é raro encontrarmos quem se espante ao descobrir que a tapioca úmida do mercado é o mesmo que polvilho molhado, que tapioca é o nome do amido da mandioca ou que o disco chamado de tapioca é um tipo de beiju e que beiju é o pão chato indígena e pode ser de tapioca, mas também de massa e ainda de tantos outros jeitos. E aí é que entram os equipamentos domésticos que podem nos incentivar a dar seguimento, se não à técnica original, ao menos à adaptação, sem nunca esquecer nossas referências.

É claro que ninguém vai ficar na cozinha do apartamento socando lascas de mandioca para fazer farinha de raspa, mas um liquidificador, para quantidades familiares, e se for um super liquidificador ou um Termomix, melhor ainda, resolve esta parte do processo. Não vamos ter um riacho de águas limpas na porta de casa para deixar uma cesta com mandioca para fermentar e amolecer, mas um pequeno pote com água na soleira da janela resolve.

Um processador pode adiantar o processo de amassar de forma bem uniforme a mandioca amolecida quando não se tem tempo para amassar com as mãos. Com aparelhos que costumamos ter em casa é possível incorporar à nossa dieta tradições que aprendemos com povos tradicionais e assim torná-la mais acessível, local, sustentável e nutritiva.

Todas as vezes que viajo me surpreendo com as formas que a raiz e seus derivados adquirem conforme o sotaque e, a cada descoberta, uma nova paixão me acomete. Nos dois últimos meses viajei para a Amazônia e para o Nordeste e o produto recorrente foi a carimã, cujo nome pode variar se estamos no Norte ou Nordeste e que nada mais é que a mandioca, mansa ou brava, fermentada e amolecida dando origem a vários preparos.

É uma forma tão genial de transformação que não resisto a comparação ao milho nixtamalizado dos mexicanos – o tratamento com cal e calor facilita a extração da película e torna o milho mais nutritivo e flexível para fazer tortilhas.

A mandioca brava, que não serve pra ser comida como legume, com a fermentação se torna mole e pode ser descascada com facilidade, perde a toxicidade, mantem quase todo o amido, pode ser esmigalhada em vez de ralada, e pode ser consumida na forma de farinhas, bolos, beijus. Ela pode ser descascada também, mas não precisa.

Puba prensada Foto: Neide Rigo|Estadão

Conversando com um produtor do sul da Amazônia, ele me disse que costuma deixar a casca quando faz a pubagem em água de igarapés, pois a casca protege de manchar com terra. Se fermenta em caixas, já prefere descascar, pois ficará mais branquinha.

Enquanto no Norte a mandioca pubada costuma ser a brava e segue principalmente para fazer farinha d´água (nomeada assim porque a mandioca fica na água), no Nordeste a mansa também é usada, pode ser chamada de carimã e é comercializada fresca ou seca para se fazer bolos, mingaus e preparos como o grolado – a massa é levada ao fogo em frigideira de ferro com manteiga e mexida até formar pequenos grumos cozidos e é tão delicioso como um cuscuz.

+ RECEITA:  Mingau de carimã

Em Fortaleza, no Mercado São Sebastião, há carimã fresca para comprar durante o ano. Quando chega a época das festas junina, o consumo é tão grande que vendem também a farinha que foi sendo produzida ao longo do ano, para atender a demanda para papas, bolos como o pé-de-moleque etc.

Ali a mandioca usada é a mansa, também chamada de aipim ou macaxeira (em São Paulo, chamamos simplesmente de mandioca porque não temos da brava - lembrando que ambas são da mesma espécie, Manihot esculenta, sendo que a brava tem uma quantidade maior, acima de 100 ppm, de glicosídeo cianogênico, a substância que lhe dá o caráter tóxico quando não fermentada).

No Sul do Amazonas a massa fermentada, antes de virar farinha, se transforma também em arubé, juntando-a com pimentas socadas e isto será tema para outra coluna, de tão viciada que estou. Que tabasco, que nada, todo restaurante tinha que ter arubé!

Em São Paulo, no Mercado da Lapa, também tem puba para comprar, mas lembro de uma vez ter ligado para o produtor do Ceará e ele misturava puba e massa fresca. Eu prefiro usar carimã pura, que é lisinha, rica em amido, com a fibra toda desfeita.

Em Goiânia comprei uma vez bolinhas de carimã – é a massa transformada em bolas e secas ao sol.

Carimã secando Foto: Neida Rigo|Estadão

A maneira de fazer a farinha de carimã é a seguinte: a mandioca fermentada e mole é lavada, bem escorrida e passada em urupema para tirar o pavio e fiapos, que podem também ser tirados com as mãos. A massa é então espremida em pano ou saco de nylon e transformada em bolinhas que são secas ao sol.

Podem ser guardadas assim ou piladas ou trituradas pra virar farinha. A diferença desta para outras farinhas de mandioca é que ela é crua e integral, enquanto a que usamos como farinha de mesa é torrada. Esta e outras cruas como farinha de crueira e a de raspa – chamada internacionalmente de cassava flour, conservam o perfume da mandioca, são brancas, fininhas e ricas em amido, características que as fazem perfeitas para substituir o trigo em vários pratos.

O mingau de carimã costuma ser o preparo mais citado, conservando a ancestralidade das papas nem doces nem salgadas. Bolos antigos mais rústicos, assados na palha de bananeira, ganharam acréscimos de ingredientes exóticos de cozinheiras portuguesas, como manteiga, açúcar e leite.

Em compensação, o famoso bolo pernambucano Souza Leão nasceu do processo inverso, incluindo a massa de carimã no lugar da farinha de trigo. E o pé-de-moleque é outro que ninguém deixa de lembrar quando se fala de puba. Leva especiarias, castanhas e o preparo pode variar conforme a região.

O fato é que podemos fazer carimã em casa com a mandioca mansa que compramos na feira ou no supermercado, como fazemos kefir, kombucha ou coalhada, de modo muito simples que pode se adaptar a qualquer estrutura de cozinha. Até mesmo com aquela que já vem descascada.

Mingau de carimã Foto: Neide Rigo|Estadão

E por falar nisso, uma vez esqueci na geladeira por uns três meses um saco com mandioca, desses que vêm com água, e quando abri ela estava totalmente derretendo, com cheiro agradável. Passei tudo pelo processador, usei a massa para fazer bolo e ele ficou divino.

Depois pensei que nem precisava ter passado antes pelo processador. Bastava bater as próprias raízes moles pelo liquidificador junto com os ovos, leite de coco e manteiga derretida. Às vezes faço mingau assim também. Bato um pedaço de mandioca puba junto com o leite e levo ao fogo para espessar.

Uma prática comum em relação à massa de carimã é enxaguar as raízes várias vezes depois de escorrer a água fermentada que costuma ter uma nata branca de fungo por cima. Se a água, que não é trocada durante o processo, está muito fermentada, o cheiro será forte e esta operação é fundamental. Para isto, usa-se um saco de pano. Lava-se e deixa escorrer o excesso de água, como se escorre uma coalhada. Nem sempre há necessidade. Se as raízes estão bem limpas e se são retiradas da água assim que ficam mole, basta um enxague em água limpa.

+ RECEITA: como fazer carimã em casa

Ainda que esta técnica indígena seja mais amplamente difundida no Norte e Nordeste, podemos encontrá-la mesmo em São Paulo. No Vale do Ribeira, comunidades quilombolas e população rural também a aplica para no feitio do bolo em forma de cilindro embalado em folha de bananeira, chamado coruyá ou coruja. É salgado, massudo, ligeiramente ácido e tem a cara de um provolone.

Atualmente quase não usam mais a folha de bananeira, que lhe dava tanto sabor quanto graça no invólucro. Para fora do país, a técnica de pubagem também parece não ter viajado muito. Nas vezes em que estive no Senegal quase não vi mandioca senão como legume, mas na beira da estrada vendiam um grande cilindro embalado em folha de bananeira, à semelhança da coruja e me contaram que era feito de mandioca fermentada, fato que não pude comprovar - pelo sabor ácido esperado daria para saber.

Mas em uma loja de produtos africanos em Paris comprei um rolo parecido e este sim era feito com mandioca fermentada. Não consegui descobrir se era o mesmo do Senegal.

Mas vejamos como fazer a sua própria carimã em casa e assim agradecer sempre esta grande herança indígena que não podemos deixar morrer.

Por muito tempo, minha mãe acreditava que pão caseiro só ficava bom se fosse assado em forno de lenha, como se fazia no sítio dos meus avós, no Paraná. Os primeiros pães de que tenho lembrança eram de torresmo e a gente levava a massa para assar na padaria do bairro, no forno de lenha, claro.

Como nossa vizinhança aqui em São Paulo não tinha tradição de fazer pão, ela deve ter descoberto com alguma cliente de costura que poderia, sim, usar para isto seu forno doméstico e foi se arriscando na empreita para alegria da filharada que passou a comer pão quente com chá mate no chá da tarde.

Carimã. Mandioca mansa ou brava fermentada e amolecida consumida em diferentes formas Foto: Neide Rigo|Estadão

Isto é só para comparar ao que acontece ainda hoje com nossas técnicas ancestrais que muitas vezes se perdem por continuarem restritas à forma, ao ritual, aos equipamentos e à dimensão, nem sempre compatíveis com a vida urbana. Gosto de adaptar estes preparos para as circunstâncias de nossas cozinhas. Trazê-los para a atualidade ajuda a manter viva a tradição que muitas vezes é substituída por alimentos ultra-processados.

A mandioca, que não canso de saudar e endeusar, é um caso emblemático, pois não conheço outra espécie vegetal que nos dê tanto subproduto. Só de tipo de farinha, são tantas as variações que certamente há um tipo para cada dia do ano, com dizem os franceses em relação aos queijos.

Durante séculos de evolução, os donos dessa terra tiveram tempo para aperfeiçoar técnicas que infelizmente vamos morrer sem conhecer ou vão desaparecer sem que antes pudéssemos ter o privilégio de saber – caso também da alta densidade linguística original que cai dia a dia, para preocupação de ativistas e antropólogos.

Com um repertório indígena tão rico, é triste saber que a mandioca sobrevive entre nós basicamente como legume, farinha e o beiju de tapioca que se popularizou recentemente. É triste também saber que mesmo com a moda, o conhecimento tradicional não acompanha, por isto não é raro encontrarmos quem se espante ao descobrir que a tapioca úmida do mercado é o mesmo que polvilho molhado, que tapioca é o nome do amido da mandioca ou que o disco chamado de tapioca é um tipo de beiju e que beiju é o pão chato indígena e pode ser de tapioca, mas também de massa e ainda de tantos outros jeitos. E aí é que entram os equipamentos domésticos que podem nos incentivar a dar seguimento, se não à técnica original, ao menos à adaptação, sem nunca esquecer nossas referências.

É claro que ninguém vai ficar na cozinha do apartamento socando lascas de mandioca para fazer farinha de raspa, mas um liquidificador, para quantidades familiares, e se for um super liquidificador ou um Termomix, melhor ainda, resolve esta parte do processo. Não vamos ter um riacho de águas limpas na porta de casa para deixar uma cesta com mandioca para fermentar e amolecer, mas um pequeno pote com água na soleira da janela resolve.

Um processador pode adiantar o processo de amassar de forma bem uniforme a mandioca amolecida quando não se tem tempo para amassar com as mãos. Com aparelhos que costumamos ter em casa é possível incorporar à nossa dieta tradições que aprendemos com povos tradicionais e assim torná-la mais acessível, local, sustentável e nutritiva.

Todas as vezes que viajo me surpreendo com as formas que a raiz e seus derivados adquirem conforme o sotaque e, a cada descoberta, uma nova paixão me acomete. Nos dois últimos meses viajei para a Amazônia e para o Nordeste e o produto recorrente foi a carimã, cujo nome pode variar se estamos no Norte ou Nordeste e que nada mais é que a mandioca, mansa ou brava, fermentada e amolecida dando origem a vários preparos.

É uma forma tão genial de transformação que não resisto a comparação ao milho nixtamalizado dos mexicanos – o tratamento com cal e calor facilita a extração da película e torna o milho mais nutritivo e flexível para fazer tortilhas.

A mandioca brava, que não serve pra ser comida como legume, com a fermentação se torna mole e pode ser descascada com facilidade, perde a toxicidade, mantem quase todo o amido, pode ser esmigalhada em vez de ralada, e pode ser consumida na forma de farinhas, bolos, beijus. Ela pode ser descascada também, mas não precisa.

Puba prensada Foto: Neide Rigo|Estadão

Conversando com um produtor do sul da Amazônia, ele me disse que costuma deixar a casca quando faz a pubagem em água de igarapés, pois a casca protege de manchar com terra. Se fermenta em caixas, já prefere descascar, pois ficará mais branquinha.

Enquanto no Norte a mandioca pubada costuma ser a brava e segue principalmente para fazer farinha d´água (nomeada assim porque a mandioca fica na água), no Nordeste a mansa também é usada, pode ser chamada de carimã e é comercializada fresca ou seca para se fazer bolos, mingaus e preparos como o grolado – a massa é levada ao fogo em frigideira de ferro com manteiga e mexida até formar pequenos grumos cozidos e é tão delicioso como um cuscuz.

+ RECEITA:  Mingau de carimã

Em Fortaleza, no Mercado São Sebastião, há carimã fresca para comprar durante o ano. Quando chega a época das festas junina, o consumo é tão grande que vendem também a farinha que foi sendo produzida ao longo do ano, para atender a demanda para papas, bolos como o pé-de-moleque etc.

Ali a mandioca usada é a mansa, também chamada de aipim ou macaxeira (em São Paulo, chamamos simplesmente de mandioca porque não temos da brava - lembrando que ambas são da mesma espécie, Manihot esculenta, sendo que a brava tem uma quantidade maior, acima de 100 ppm, de glicosídeo cianogênico, a substância que lhe dá o caráter tóxico quando não fermentada).

No Sul do Amazonas a massa fermentada, antes de virar farinha, se transforma também em arubé, juntando-a com pimentas socadas e isto será tema para outra coluna, de tão viciada que estou. Que tabasco, que nada, todo restaurante tinha que ter arubé!

Em São Paulo, no Mercado da Lapa, também tem puba para comprar, mas lembro de uma vez ter ligado para o produtor do Ceará e ele misturava puba e massa fresca. Eu prefiro usar carimã pura, que é lisinha, rica em amido, com a fibra toda desfeita.

Em Goiânia comprei uma vez bolinhas de carimã – é a massa transformada em bolas e secas ao sol.

Carimã secando Foto: Neida Rigo|Estadão

A maneira de fazer a farinha de carimã é a seguinte: a mandioca fermentada e mole é lavada, bem escorrida e passada em urupema para tirar o pavio e fiapos, que podem também ser tirados com as mãos. A massa é então espremida em pano ou saco de nylon e transformada em bolinhas que são secas ao sol.

Podem ser guardadas assim ou piladas ou trituradas pra virar farinha. A diferença desta para outras farinhas de mandioca é que ela é crua e integral, enquanto a que usamos como farinha de mesa é torrada. Esta e outras cruas como farinha de crueira e a de raspa – chamada internacionalmente de cassava flour, conservam o perfume da mandioca, são brancas, fininhas e ricas em amido, características que as fazem perfeitas para substituir o trigo em vários pratos.

O mingau de carimã costuma ser o preparo mais citado, conservando a ancestralidade das papas nem doces nem salgadas. Bolos antigos mais rústicos, assados na palha de bananeira, ganharam acréscimos de ingredientes exóticos de cozinheiras portuguesas, como manteiga, açúcar e leite.

Em compensação, o famoso bolo pernambucano Souza Leão nasceu do processo inverso, incluindo a massa de carimã no lugar da farinha de trigo. E o pé-de-moleque é outro que ninguém deixa de lembrar quando se fala de puba. Leva especiarias, castanhas e o preparo pode variar conforme a região.

O fato é que podemos fazer carimã em casa com a mandioca mansa que compramos na feira ou no supermercado, como fazemos kefir, kombucha ou coalhada, de modo muito simples que pode se adaptar a qualquer estrutura de cozinha. Até mesmo com aquela que já vem descascada.

Mingau de carimã Foto: Neide Rigo|Estadão

E por falar nisso, uma vez esqueci na geladeira por uns três meses um saco com mandioca, desses que vêm com água, e quando abri ela estava totalmente derretendo, com cheiro agradável. Passei tudo pelo processador, usei a massa para fazer bolo e ele ficou divino.

Depois pensei que nem precisava ter passado antes pelo processador. Bastava bater as próprias raízes moles pelo liquidificador junto com os ovos, leite de coco e manteiga derretida. Às vezes faço mingau assim também. Bato um pedaço de mandioca puba junto com o leite e levo ao fogo para espessar.

Uma prática comum em relação à massa de carimã é enxaguar as raízes várias vezes depois de escorrer a água fermentada que costuma ter uma nata branca de fungo por cima. Se a água, que não é trocada durante o processo, está muito fermentada, o cheiro será forte e esta operação é fundamental. Para isto, usa-se um saco de pano. Lava-se e deixa escorrer o excesso de água, como se escorre uma coalhada. Nem sempre há necessidade. Se as raízes estão bem limpas e se são retiradas da água assim que ficam mole, basta um enxague em água limpa.

+ RECEITA: como fazer carimã em casa

Ainda que esta técnica indígena seja mais amplamente difundida no Norte e Nordeste, podemos encontrá-la mesmo em São Paulo. No Vale do Ribeira, comunidades quilombolas e população rural também a aplica para no feitio do bolo em forma de cilindro embalado em folha de bananeira, chamado coruyá ou coruja. É salgado, massudo, ligeiramente ácido e tem a cara de um provolone.

Atualmente quase não usam mais a folha de bananeira, que lhe dava tanto sabor quanto graça no invólucro. Para fora do país, a técnica de pubagem também parece não ter viajado muito. Nas vezes em que estive no Senegal quase não vi mandioca senão como legume, mas na beira da estrada vendiam um grande cilindro embalado em folha de bananeira, à semelhança da coruja e me contaram que era feito de mandioca fermentada, fato que não pude comprovar - pelo sabor ácido esperado daria para saber.

Mas em uma loja de produtos africanos em Paris comprei um rolo parecido e este sim era feito com mandioca fermentada. Não consegui descobrir se era o mesmo do Senegal.

Mas vejamos como fazer a sua própria carimã em casa e assim agradecer sempre esta grande herança indígena que não podemos deixar morrer.

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