Dias atrás participei do Festival Cozinha Tapajós, em Santarém, no Pará, a convite do organizador, chef Saulo Jennings, e não podia contar com melhor companhia: Bela Gil, Bel Coelho, Gustavo Blanco, Helena Rizzo, Mara Salles, Pedro Schiaffino e Roberto Smeraldi, todos empenhados em mostrar suas técnicas e talentos usando ingredientes regionais.
Durante os dias fizemos expedições para conhecer projetos, mercados, produções, cultivos, coletas, pesca e pessoas envolvidas nas cadeias produtivas. O resultado desta imersão, assim como o trabalho de chefes locais, foi mostrado depois em apresentação na praça pública de Alter do Chão. Na receita que fiz, a que chamei de pamonha tapajônica, usei a castanha de sapucaia, de riqueza comparável à castanha-amazônica que conhecemos como castanha-do-pará ou à macadâmia, sendo mais leitosa, adocicada e crocante.
No Mercado Municipal de Santarém, a vendedora, com uma faca numa mão e a sapucaia em outra, tirava a casca dura da castanha com destreza e rapidez, como quem descasca cana. Qualquer pessoa sem experiência no lugar dela já tinha cortado fora os cinco dedos. E foram estas, super frescas, que usei na praça, incluindo ainda outros ingredientes da feira como pedaços do coquinho pupunha cozido e castanhas de caju, ambos fartos na região, imersos numa massa feita com partes iguais de banana-da-terra, coco ralado fresco e macaxeira ralada e espremida, antes de ser torrada na casa de farinha do Seu Benedito Castro, o Seu Bené, na Comunidade São Francisco do Carapanari.
E a receita foi sendo construída na medida em que o barco avançava. A banana-da-terra, encontrei aos montes no Mercado, assim como o coco fresco retirado na hora pela vendedora, descascado no facão. Em menos de um minuto, a vendedora descascou dois cocos. A ideia de usar as castanhas foi reforçada quando encostamos o barco na porta da casa de Dona Rosângela de Siqueira, no Furo do Jari, que liga os rios Tapajós e Amazonas. A casa bem arrumada e toda em palafita tinha a escada ladeada por duas trepadeiras panc (plantas alimentícias não convencionas). De um lado, um pé de feijão borboleta com flores azuis e do outro uma flor-de-cardeal, com flores vermelhas, ambas inteiramente comestíveis. Esqueci de perguntar se comiam ou era só pra enfeitar. Ouriços de sapucaia serviam de vasos pendurados nas colunas da área para conter plantas ornamentais e outro estava apoiado numa mesa de centro contendo os brotos de folhas cor de rosa da sapucaieira e suas flores perfumadas em tons de branco e lilás.
Na mesa maior, sapucaias eram descascadas na faca; no chão, descansavam os ouriços vazios e suas tampas e ao fundo, com o pé mergulhado nas águas, uma grande sapucaieira suportava lá no alto os frutos lenhosos do tamanho de cabeça de gente. O grande problema é que nesta época do ano, segundo dona Rosângela, os frutos amadurecem, soltam a tampa e as castanhas despencam da cumbuca que pode ficar dependurada na árvore ainda por vários meses. As castanhas têm que ser recolhidas quando estão boiando na água. O pior é que às vezes só encontram mesmo a cabaça vazia pois macacos, jacarés e outros bichos estão na disputa. Ela diz que antigamente conseguiam coletar mais, porém agora os macacos quase não deixam sobrar, talvez pelo aumento das injúrias sofridas pela floresta nos últimos anos e a diminuição das opções de alimento. Por isto, mesmo no mercado local, a sapucaia amazônica é uma iguaria não muito fácil de encontrar. Sorte que, apesar de ser originária da mata quente e úmida amazônica e especialmente das várzeas, árvores frondosas e produtivas podem ser encontradas do Norte até na região Sudeste.
RECEITA: + Pamonha tapajônica
A primeira vez que comi a castanha foi de uma sapucaieira gigantesca no Instituto Agrícola de Campinas, há quase 30 anos. Meu primeiro pilão foi feito com uma dessas cumbucas que colhi sob a copa da árvore. Na Esalq, a escola de agronomia da USP, em Piracicaba, há várias. E em Minas tem uma cidade com o nome de Sapucaia de Guanhães com muitos exemplares.
De nome Lecythis pisonis, a planta é da mesma família da castanha-amazônica e os frutos têm o mesmo design, com as sementes protegidas por um fruto duro como madeira, porém, diferente daquela cujos ouriços têm que ser quebrados ou serrados, a sapucaia se abre naturalmente quando amadurece. Elas podem ser colhidas antes, mas as árvores são muito altas e ainda corre-se o risco de colher antes do tempo e as sementes mofarem dentro do fruto.
A amêndoa é crocante, oleosa, leitosa e macia como a castanha-amazônica, porém, tem sabor mais delicado, adocicado, com algo de coco. E pode ser comida crua ou assada e usada em substituição a qualquer tipo de castanha oleosa e crocante, em bolos, biscoitos e pratos salgados. Seu leite, preparado como o leite de coco, é tão bom quanto o da outra castanha e pode ser usado em moquecas ou para cozinhar peixes.
Finalmente, saiba que são um ótimo alimento com riqueza de boas gorduras e proteínas – em média 62% e 22% respectivamente. Juntei todo o repertório que tinha sobre bolinhos asiáticos feitos com arroz e coco embrulhados em folhas de bananeira e cozidos no vapor e ainda o pé de moleque amazônico, a pamonha de carimã, as poquecas de peixe e os yomenicos peruanos para criar estes bolinhos de massa de mandioca, coco, banana-da-terra e recheio de castanhas de caju e de sapucaia. E que para não chamar de rolinhos, chamemos de pamonha tapajônica, numa justa homenagem àquele lindo pedaço no Brasil profundo.