Dois milhões de pessoas morrem, todo ano, contaminadas pela água. Falei disso em palestra numa faculdade, e no final uma jovem perguntou se seria prudente deixar de consumir água, optando por refrigerantes, energéticos e afins.
Somos obcecados por rotular o ingrediente do mal, cujo complemento é a busca ilusória do ingrediente do bem. Aquilo que - devido ao nosso uso inadequado, e não a propriedades intrínsecas - prejudica a saúde pessoal, ou aquela do ambiente, cai no ostracismo. Já outros itens tornam-se taumatúrgicos, uma panaceia reconfortante. A síndrome não poderia deixar de afetar o cozinheiro: até uns mais experientes acabam fingindo que acreditam, talvez para não deixar de surfar a onda.
Não existe ingrediente bom, nem mau. Seus impactos sobre a saúde da pessoas, ou da coletividade, dependem apenas de dois fatores: como e quanto. Como são produzidos, transportados, processados, cozinhados, consumidos, desperdiçados. E quanto. É o caso, como sabemos, também da água.
Os produtos de origem animal são alvo de bombardeio. A carne era símbolo de suposta opulência, ao mesmo tempo em que seu preço tornava-se mais acessível, ora pela escala da produção, ora pelo emprego de práticas degradantes do meio ambiente, da sanidade, do bem-estar animal. Tal combinação bombou o consumo além do que seria razoável para a saúde. Aí vem a solução esperta: em vez de produzir carne melhor, precisa eliminá-la e comer hortaliças, que vão salvar você e o mundo. Para logo fazer com as hortaliças exatamente o mesmo que já se fez com o porco, o frango e o boi?
Ou eliminar o leite de vaca e substituí-lo pelo de soja: não interessa se – como bem demonstrado em recente estudo do Sustainable Food Trust – a produção de leite de soja requer de quatro a dez vezes a quantidade do grão necessária a alimentar uma vaca que produza a mesma quantidade de leite.
Compare os óleos de palma (antigamente conhecido como dendezeiro) e de coco, oriundos de duas plantas da mesma família, a Aracacea. Por qual razão o primeiro ganhou fama de vilão global – seja do ponto de vista da saúde individual, seja daquela ambiental - enquanto o segundo virou o queridinho da dieta dos que abominam o primeiro? O azar da palma é ser mais produtiva em relação ao seu primo irmão, planta que demora mais no crescimento e rende menos por hectare. Por isso a palma foi escolhida pela grande indústria como gordura ideal, levando a uma expansão de seu cultivo que, em alguns países, gerou desmatamento e outros problemas ambientais. O fato de seu óleo acabar em quase todos os alimentos ultraprocessados associou-a também a problemas de saúde que nada têm a ver com ela. Se porventura substituíssemos o uso industrial do óleo de palma pelo do “saudável” coco, acabaríamos gerando problemas ambientais ainda mais sérios - pois precisaríamos de uma superfície cultivada maior - sem obviamente afetar o excesso no consumo de ultraprocessados, que está na raíz do problema.
Há duas maneiras de evitar que um ingrediente se torne vilão: a primeira é a escolhê-lo de acordo com a forma em que é produzido. Para tanto precisa de acesso a informação confiável, certificação independente, rastreabilidade. A segunda é evitar que – na dieta individual assim como na aldeia global – qualquer ingrediente passe a ser consumido excessivamente: isso implica valorizar a diversidade. E a capacidade de valorizar a diversidade dos ingredientes é o que se aprende na cozinha.