Produtores apostam em nova lei para ‘destravar’ regulação de queijos artesanais em SP


Uso de leite cru e menos burocracia para obtenção de registros são algumas das reivindicações para atualizar lei

Por Marina Mori
Atualização:

Deixemos a modéstia de lado. Se alguém tinha qualquer dúvida sobre o valor dos queijos artesanais brasileiros, o último Mondial du Fromage et des Produits Laitiers de Tours, realizado em meados de setembro, na França, colocou um ponto final na discussão. O Brasil levou 57 medalhas e só ficou atrás dos franceses no campeonato. Imaginemos então como seria se a maioria dos produtores artesanais do País saísse da clandestinidade e pudesse mostrar seus queijos a todo o território nacional e ao mundo. Para começar, o cenário das gôndolas dos mercados seria bem diferente, os queijos artesanais teriam vez ao lados dos industrializados, e os consumidores teriam acesso a maior variedade de produtos nacionais de qualidade.

Consumidor acha que só produto sem rótulo é artesanal, dizem especialistas. Foto: Fernando Sciarra/Estadão

A história vem sendo maturada há tempos e tem a legislação como ingrediente principal. Três anos depois que o Selo Arte foi sancionado pelo governo federal com a promessa de abrir caminho para o livre comércio de 175 mil produtores de queijos, embutidos, méis, peixes e ovos no Brasil, apenas 154 selos foram emitidos – 0,09% do total.

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Em São Paulo, a proporção é ainda menor: somente quatro queijarias e uma charcutaria conseguiram o feito, quando a estimativa era de que 10 mil produtores pudessem se beneficiar, segundo a Associação Paulista dos Queijos Artesanais (APQA). Uma legislação antiga e voltada à indústria e até o hábito dos consumidores são apontados como motivos que explicam esse baixo índice. Sem certificação, os todos os produtos de origem animal produzidos são considerados ilegais.

Muitos produtores paulistas dizem ter entraves para se encaixar nas exigências e obter seu registro – seja ele municipal (SIM), estadual (SISP ou SISP Artesanal) ou federal (Arte ou SIF). É por isso que, com o apoio de produtores, técnicos, fiscais e chefs como Bela Gil e Bel Coelho, deputados estaduais de São Paulo passaram a pedir mudanças na lei 10.507/2000, relacionada aos produtos de origem animal e considerada restrita demais aos produtores artesanais.

Em resposta à pressão, o governo paulista apresentou em 16 de setembro, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o projeto de lei 607/2021, propondo atualizações nas exigências da produção artesanal.

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O que muda com o projeto de lei 607/2021

Os principais pontos do PL têm a ver com a liberdade de criação que os queijeiros podem ter em suas receitas, com a forma como a fiscalização é feita e também com a equivalência entre os registros municipal e estadual (SIM e SISP Artesanal). Afinal, hoje quem tem o SIM só pode vender no próprio município e ainda não tem direito ao Selo Arte nem ao SIF. Já o SISP Artesanal permite a venda no Estado e a solicitação do Arte.

Queijos da Lano-Alto,queteve sua produçãodestruídapelafiscalização porfaltade registros. Foto: Lano Alto
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“Nossa proposta é que a nova lei ofereça possibilidade de convênio com municípios. Isso beneficiaria centenas de pequenos produtores”, defende a deputada estadual Marina Helou (Rede), coautora de cinco emendas propostas no PL. O projeto tramita em regime de urgência e está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A expectativa é de que o texto possa ir a plenário no máximo até novembro. Se a maioria dos deputados votar a favor, segue para sanção final do governador e, então, se torna lei.

Timing

A pressão ganhou força em setembro, pouco mais de dois meses após um incidente na fazenda Lano-Alto, de São Luiz de Paraitinga, na Serra do Mar, que ganhou repercussão nacional: 120 kg de queijo, 45 kg de iogurte e 9 kg de requeijão do casal de produtores Yentl Dalanhesi e Paulo Lemos, o Peele, foram destruídos pela fiscalização da regional da Defesa Agropecuária do Estado após denúncia anônima sobre falta de registros. Ao Paladar, Peele afirmou que tentava há três anos obter o SIM, mas não conseguiu. “Quando o processo começou a andar, veio a pandemia e ficamos no limbo.”

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Longa espera: de 175 mil produtores artesanais, só 154 obtiveram os selo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Entre os produtos perdidos na Lano-Alto estava o queijo Causo, feito com leite de vacas jersey criadas a pasto, com massa semicozida e mofo espontâneo, envelhecido em câmara fria por 10 semanas – pense num brie meia-cura. “O caso foi a faísca que precisava para o motor pegar”, diz Christophe Faraud, fundador da APQA e produtor no Vale do Paraíba Paulista.

“Estamos articulando mudanças desde 2017, quando a APQA foi criada. Esse projeto estava engavetado desde o fim de 2020 e finalmente saiu quando o caso da Lano-Alto veio a público”, conta o francês, radicado no Brasil desde 1988 e um dos responsáveis por erguer a voz em nome dos produtores paulistas que pedem ajustes na legislação do queijo artesanal.

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Leite cru

Até agora, apenas queijos com mais de 60 dias de maturação podem ser feitos com leite cru; do contrário, é obrigatório pasteurizar a matéria-prima. Os produtores querem que esse limite seja reduzido. Para isso, é necessário apresentar pesquisa científica para comprovar se existe segurança microbiológica. “Produtos assim podem ser considerados queijos de inovação, uma característica dos queijos artesanais paulistas”, diz a médica veterinária Andrea Rosenfeld, que trabalha há 20 anos prestando assessoria para produtores obterem os registros SISP e SISP Artesanal. Ela foi responsável pela obtenção dos três primeiros Selos Arte de São Paulo.

Embora seja possível criar bons queijos com leite pasteurizado, o uso de leite cru abre um leque maior quando o assunto é terroir. “O leite cru reúne todos os micro-organismos que estão presentes naturalmente no leite e que ajudam no aroma, na textura e até na formação de olhaduras”, explica Vanessa Alcolea, mestre queijeira e gerente técnica da premiada Pardinho Artesanal. Outra novidade é a possibilidade de comprar leite de outras fazendas, o que permitiria que pessoas que não tenham animais possam produzir queijos. Por enquanto, a lei só permite o uso de matéria-prima própria.

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Fiscalização

Modernizar a legislação significa mudar a forma como a inspeção e a fiscalização são feitas em pequenas propriedades artesanais. Segundo Marco Aurélio Braga, doutor em Direito pela USP e especialista em regulação de alimentos, essa estrutura tem raízes nas primeiras leis brasileiras sobre produtos de origem artesanal, entre as décadas de 1950 e 1970, e no modelo norte-americano em que foram espelhadas. “A gente tem uma estrutura industrial e sanitarista. O fiscal olha só a forma como você faz o queijo, como se isso bastasse para garantir a sanidade e inocuidade do produto. Mundo afora, as melhores práticas de fiscalização indicam que a gente precisa controlar o produto final e os insumos usados para ele ser feito, como a qualidade da água, do leite e da saúde do rebanho, e não saber se a queijaria é azulejada”, defende.

Esse é o protocolo na França. Há duas semanas, o produtor Pierre Coulon, da Laiterie de Paris, recebeu uma visita da fiscalização depois de três anos na ativa. “Ele mostrou o dossiê de todos os exames: de cada lote de queijo, das superfícies da queijaria, até da lavagem de mão das funcionárias. A fiscal deu o retorno de très satisfasin, muito satisfeita”, conta Débora Pereira, especialista em queijos e blogueira do Paladar. “A avaliação deve ser instrutiva, não punitiva. Esse é o maior problema do Brasil”, aponta.

Sem rótulo vende mais

“Tem produtor que tira o rótulo do queijo para vender no restaurante, porque os consumidores acham que só assim o produto é artesanal. E as vendas diminuem mesmo”, conta Andrea Rosenfeld. Segundo a médica veterinária, muitos produtores nem tentam obter o registro por isso, mas a prática é ilegal.

Fábio Pimentel, do Laticínio Artesanal Montezuma, o primeiro de leite de búfala de São Paulo, já passou por algo do tipo. “Foi em uma padaria. O proprietário me pediu para colocar os queijos no plástico porque os clientes não gostavam da embalagem. Parei de vender para ele”, relembra. Pimentel é um dos 28 produtores de laticínios com SISP Artesanal no Estado e está há um ano no processo para solicitar o Selo Arte.

Ele não vê a hora de apresentar seus queijos artesanais – com rótulo – ao Brasil. “Não é justo que só os paulistas comam os queijos deliciosos produzidos por tantos produtores daqui. Porque tem muita coisa boa, viu”, garante.

Entenda os selos

SIM

O Serviço de Inspeção Municipal surgiu em 1989 e vale somente para comércio dentro do município em que os produtos de origem animal foram produzidos, o que limita as vendas de pequenos produtores. Com ele, ainda não é possível ao produtor pedir o Selo Arte ou SIF.

Sisp Artesanal

Entra em cena por meio da lei n.º 10.507/2000 e é o registro que vale para todo o Estado. Ele difere do Serviço de Inspeção Estadual (Sisp), feito nas indústrias desde 1992, pela isenção de taxas e menos exigências em relação aos equipamentos e área de produção. A venda dos produtos também é limitada ao Estado de São Paulo. Com ele, é possível pedir o Selo Arte.

SIF

Criado em 1915 e antes chamado de Serviço de Inspeção Pastoril, em 1933 o SIF se tornou o que conhecemos até hoje como Serviço de Inspeção Federal. É o registro mais antigo do Brasil para produtos de origem animal. Com ele, é possível vender em território nacional e, com autorização, até no exterior. Em São Paulo, a Pardinho Artesanal (localizada na cidade homônima, no interior do Estado) é uma das poucas queijarias com SIF.

Selo Arte

Surgiu em 2018 com a promessa de “desburocratizar” o SIF e, dessa forma, facilitar a vida dos produtores artesanais, que poderiam vender os seus produtos de origem animal, como queijos, embutidos, pescados, méis e ovos, em todo o País. Para consegui-lo em São Paulo, é preciso ter antes o Sisp Artesanal. Porém, até o momento, apenas cinco produtores do Estado conseguiram obtê-lo: quatro de queijo e um de charcutaria.

Onde comprar

A Casa do Queijo  R. Martim Francisco, 719, Vila Buarque. 2539-0252. 9h/17h30 (domingo, 10h/14h; fecha na 2.ª). A Queijaria  R. Aspicuelta, 35, Vila Madalena. 3812-6449. 10h/20h (2.ª a 4.ª até as 18h; fecha no domingo).

Armazém do Mineiro  R. Azevedo Soares, 1.773, Tatuapé. 2309-4847. 10h/19h (sáb., 10h/17h; fecha no domingo). Galeria do Queijo Av. Prof. Abraão de Morais, 1.500, box 6, Saúde. 2639-9206. 7h/20h (domingo, 8h/13h). Mestre Queijeiro  R. Simão Álvares, 112, Pinheiros. 2369-1087. 10h/28h (2.ª até as 17h; fecha domingo). Queijuz Edifício Copan. Av. Ipiranga, 200, loja 28. 3231-4988, na República. 9h30/19h (sáb. até 18h; fecha domingo).

Deixemos a modéstia de lado. Se alguém tinha qualquer dúvida sobre o valor dos queijos artesanais brasileiros, o último Mondial du Fromage et des Produits Laitiers de Tours, realizado em meados de setembro, na França, colocou um ponto final na discussão. O Brasil levou 57 medalhas e só ficou atrás dos franceses no campeonato. Imaginemos então como seria se a maioria dos produtores artesanais do País saísse da clandestinidade e pudesse mostrar seus queijos a todo o território nacional e ao mundo. Para começar, o cenário das gôndolas dos mercados seria bem diferente, os queijos artesanais teriam vez ao lados dos industrializados, e os consumidores teriam acesso a maior variedade de produtos nacionais de qualidade.

Consumidor acha que só produto sem rótulo é artesanal, dizem especialistas. Foto: Fernando Sciarra/Estadão

A história vem sendo maturada há tempos e tem a legislação como ingrediente principal. Três anos depois que o Selo Arte foi sancionado pelo governo federal com a promessa de abrir caminho para o livre comércio de 175 mil produtores de queijos, embutidos, méis, peixes e ovos no Brasil, apenas 154 selos foram emitidos – 0,09% do total.

Em São Paulo, a proporção é ainda menor: somente quatro queijarias e uma charcutaria conseguiram o feito, quando a estimativa era de que 10 mil produtores pudessem se beneficiar, segundo a Associação Paulista dos Queijos Artesanais (APQA). Uma legislação antiga e voltada à indústria e até o hábito dos consumidores são apontados como motivos que explicam esse baixo índice. Sem certificação, os todos os produtos de origem animal produzidos são considerados ilegais.

Muitos produtores paulistas dizem ter entraves para se encaixar nas exigências e obter seu registro – seja ele municipal (SIM), estadual (SISP ou SISP Artesanal) ou federal (Arte ou SIF). É por isso que, com o apoio de produtores, técnicos, fiscais e chefs como Bela Gil e Bel Coelho, deputados estaduais de São Paulo passaram a pedir mudanças na lei 10.507/2000, relacionada aos produtos de origem animal e considerada restrita demais aos produtores artesanais.

Em resposta à pressão, o governo paulista apresentou em 16 de setembro, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o projeto de lei 607/2021, propondo atualizações nas exigências da produção artesanal.

O que muda com o projeto de lei 607/2021

Os principais pontos do PL têm a ver com a liberdade de criação que os queijeiros podem ter em suas receitas, com a forma como a fiscalização é feita e também com a equivalência entre os registros municipal e estadual (SIM e SISP Artesanal). Afinal, hoje quem tem o SIM só pode vender no próprio município e ainda não tem direito ao Selo Arte nem ao SIF. Já o SISP Artesanal permite a venda no Estado e a solicitação do Arte.

Queijos da Lano-Alto,queteve sua produçãodestruídapelafiscalização porfaltade registros. Foto: Lano Alto

“Nossa proposta é que a nova lei ofereça possibilidade de convênio com municípios. Isso beneficiaria centenas de pequenos produtores”, defende a deputada estadual Marina Helou (Rede), coautora de cinco emendas propostas no PL. O projeto tramita em regime de urgência e está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A expectativa é de que o texto possa ir a plenário no máximo até novembro. Se a maioria dos deputados votar a favor, segue para sanção final do governador e, então, se torna lei.

Timing

A pressão ganhou força em setembro, pouco mais de dois meses após um incidente na fazenda Lano-Alto, de São Luiz de Paraitinga, na Serra do Mar, que ganhou repercussão nacional: 120 kg de queijo, 45 kg de iogurte e 9 kg de requeijão do casal de produtores Yentl Dalanhesi e Paulo Lemos, o Peele, foram destruídos pela fiscalização da regional da Defesa Agropecuária do Estado após denúncia anônima sobre falta de registros. Ao Paladar, Peele afirmou que tentava há três anos obter o SIM, mas não conseguiu. “Quando o processo começou a andar, veio a pandemia e ficamos no limbo.”

Longa espera: de 175 mil produtores artesanais, só 154 obtiveram os selo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Entre os produtos perdidos na Lano-Alto estava o queijo Causo, feito com leite de vacas jersey criadas a pasto, com massa semicozida e mofo espontâneo, envelhecido em câmara fria por 10 semanas – pense num brie meia-cura. “O caso foi a faísca que precisava para o motor pegar”, diz Christophe Faraud, fundador da APQA e produtor no Vale do Paraíba Paulista.

“Estamos articulando mudanças desde 2017, quando a APQA foi criada. Esse projeto estava engavetado desde o fim de 2020 e finalmente saiu quando o caso da Lano-Alto veio a público”, conta o francês, radicado no Brasil desde 1988 e um dos responsáveis por erguer a voz em nome dos produtores paulistas que pedem ajustes na legislação do queijo artesanal.

Leite cru

Até agora, apenas queijos com mais de 60 dias de maturação podem ser feitos com leite cru; do contrário, é obrigatório pasteurizar a matéria-prima. Os produtores querem que esse limite seja reduzido. Para isso, é necessário apresentar pesquisa científica para comprovar se existe segurança microbiológica. “Produtos assim podem ser considerados queijos de inovação, uma característica dos queijos artesanais paulistas”, diz a médica veterinária Andrea Rosenfeld, que trabalha há 20 anos prestando assessoria para produtores obterem os registros SISP e SISP Artesanal. Ela foi responsável pela obtenção dos três primeiros Selos Arte de São Paulo.

Embora seja possível criar bons queijos com leite pasteurizado, o uso de leite cru abre um leque maior quando o assunto é terroir. “O leite cru reúne todos os micro-organismos que estão presentes naturalmente no leite e que ajudam no aroma, na textura e até na formação de olhaduras”, explica Vanessa Alcolea, mestre queijeira e gerente técnica da premiada Pardinho Artesanal. Outra novidade é a possibilidade de comprar leite de outras fazendas, o que permitiria que pessoas que não tenham animais possam produzir queijos. Por enquanto, a lei só permite o uso de matéria-prima própria.

Fiscalização

Modernizar a legislação significa mudar a forma como a inspeção e a fiscalização são feitas em pequenas propriedades artesanais. Segundo Marco Aurélio Braga, doutor em Direito pela USP e especialista em regulação de alimentos, essa estrutura tem raízes nas primeiras leis brasileiras sobre produtos de origem artesanal, entre as décadas de 1950 e 1970, e no modelo norte-americano em que foram espelhadas. “A gente tem uma estrutura industrial e sanitarista. O fiscal olha só a forma como você faz o queijo, como se isso bastasse para garantir a sanidade e inocuidade do produto. Mundo afora, as melhores práticas de fiscalização indicam que a gente precisa controlar o produto final e os insumos usados para ele ser feito, como a qualidade da água, do leite e da saúde do rebanho, e não saber se a queijaria é azulejada”, defende.

Esse é o protocolo na França. Há duas semanas, o produtor Pierre Coulon, da Laiterie de Paris, recebeu uma visita da fiscalização depois de três anos na ativa. “Ele mostrou o dossiê de todos os exames: de cada lote de queijo, das superfícies da queijaria, até da lavagem de mão das funcionárias. A fiscal deu o retorno de très satisfasin, muito satisfeita”, conta Débora Pereira, especialista em queijos e blogueira do Paladar. “A avaliação deve ser instrutiva, não punitiva. Esse é o maior problema do Brasil”, aponta.

Sem rótulo vende mais

“Tem produtor que tira o rótulo do queijo para vender no restaurante, porque os consumidores acham que só assim o produto é artesanal. E as vendas diminuem mesmo”, conta Andrea Rosenfeld. Segundo a médica veterinária, muitos produtores nem tentam obter o registro por isso, mas a prática é ilegal.

Fábio Pimentel, do Laticínio Artesanal Montezuma, o primeiro de leite de búfala de São Paulo, já passou por algo do tipo. “Foi em uma padaria. O proprietário me pediu para colocar os queijos no plástico porque os clientes não gostavam da embalagem. Parei de vender para ele”, relembra. Pimentel é um dos 28 produtores de laticínios com SISP Artesanal no Estado e está há um ano no processo para solicitar o Selo Arte.

Ele não vê a hora de apresentar seus queijos artesanais – com rótulo – ao Brasil. “Não é justo que só os paulistas comam os queijos deliciosos produzidos por tantos produtores daqui. Porque tem muita coisa boa, viu”, garante.

Entenda os selos

SIM

O Serviço de Inspeção Municipal surgiu em 1989 e vale somente para comércio dentro do município em que os produtos de origem animal foram produzidos, o que limita as vendas de pequenos produtores. Com ele, ainda não é possível ao produtor pedir o Selo Arte ou SIF.

Sisp Artesanal

Entra em cena por meio da lei n.º 10.507/2000 e é o registro que vale para todo o Estado. Ele difere do Serviço de Inspeção Estadual (Sisp), feito nas indústrias desde 1992, pela isenção de taxas e menos exigências em relação aos equipamentos e área de produção. A venda dos produtos também é limitada ao Estado de São Paulo. Com ele, é possível pedir o Selo Arte.

SIF

Criado em 1915 e antes chamado de Serviço de Inspeção Pastoril, em 1933 o SIF se tornou o que conhecemos até hoje como Serviço de Inspeção Federal. É o registro mais antigo do Brasil para produtos de origem animal. Com ele, é possível vender em território nacional e, com autorização, até no exterior. Em São Paulo, a Pardinho Artesanal (localizada na cidade homônima, no interior do Estado) é uma das poucas queijarias com SIF.

Selo Arte

Surgiu em 2018 com a promessa de “desburocratizar” o SIF e, dessa forma, facilitar a vida dos produtores artesanais, que poderiam vender os seus produtos de origem animal, como queijos, embutidos, pescados, méis e ovos, em todo o País. Para consegui-lo em São Paulo, é preciso ter antes o Sisp Artesanal. Porém, até o momento, apenas cinco produtores do Estado conseguiram obtê-lo: quatro de queijo e um de charcutaria.

Onde comprar

A Casa do Queijo  R. Martim Francisco, 719, Vila Buarque. 2539-0252. 9h/17h30 (domingo, 10h/14h; fecha na 2.ª). A Queijaria  R. Aspicuelta, 35, Vila Madalena. 3812-6449. 10h/20h (2.ª a 4.ª até as 18h; fecha no domingo).

Armazém do Mineiro  R. Azevedo Soares, 1.773, Tatuapé. 2309-4847. 10h/19h (sáb., 10h/17h; fecha no domingo). Galeria do Queijo Av. Prof. Abraão de Morais, 1.500, box 6, Saúde. 2639-9206. 7h/20h (domingo, 8h/13h). Mestre Queijeiro  R. Simão Álvares, 112, Pinheiros. 2369-1087. 10h/28h (2.ª até as 17h; fecha domingo). Queijuz Edifício Copan. Av. Ipiranga, 200, loja 28. 3231-4988, na República. 9h30/19h (sáb. até 18h; fecha domingo).

Deixemos a modéstia de lado. Se alguém tinha qualquer dúvida sobre o valor dos queijos artesanais brasileiros, o último Mondial du Fromage et des Produits Laitiers de Tours, realizado em meados de setembro, na França, colocou um ponto final na discussão. O Brasil levou 57 medalhas e só ficou atrás dos franceses no campeonato. Imaginemos então como seria se a maioria dos produtores artesanais do País saísse da clandestinidade e pudesse mostrar seus queijos a todo o território nacional e ao mundo. Para começar, o cenário das gôndolas dos mercados seria bem diferente, os queijos artesanais teriam vez ao lados dos industrializados, e os consumidores teriam acesso a maior variedade de produtos nacionais de qualidade.

Consumidor acha que só produto sem rótulo é artesanal, dizem especialistas. Foto: Fernando Sciarra/Estadão

A história vem sendo maturada há tempos e tem a legislação como ingrediente principal. Três anos depois que o Selo Arte foi sancionado pelo governo federal com a promessa de abrir caminho para o livre comércio de 175 mil produtores de queijos, embutidos, méis, peixes e ovos no Brasil, apenas 154 selos foram emitidos – 0,09% do total.

Em São Paulo, a proporção é ainda menor: somente quatro queijarias e uma charcutaria conseguiram o feito, quando a estimativa era de que 10 mil produtores pudessem se beneficiar, segundo a Associação Paulista dos Queijos Artesanais (APQA). Uma legislação antiga e voltada à indústria e até o hábito dos consumidores são apontados como motivos que explicam esse baixo índice. Sem certificação, os todos os produtos de origem animal produzidos são considerados ilegais.

Muitos produtores paulistas dizem ter entraves para se encaixar nas exigências e obter seu registro – seja ele municipal (SIM), estadual (SISP ou SISP Artesanal) ou federal (Arte ou SIF). É por isso que, com o apoio de produtores, técnicos, fiscais e chefs como Bela Gil e Bel Coelho, deputados estaduais de São Paulo passaram a pedir mudanças na lei 10.507/2000, relacionada aos produtos de origem animal e considerada restrita demais aos produtores artesanais.

Em resposta à pressão, o governo paulista apresentou em 16 de setembro, na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o projeto de lei 607/2021, propondo atualizações nas exigências da produção artesanal.

O que muda com o projeto de lei 607/2021

Os principais pontos do PL têm a ver com a liberdade de criação que os queijeiros podem ter em suas receitas, com a forma como a fiscalização é feita e também com a equivalência entre os registros municipal e estadual (SIM e SISP Artesanal). Afinal, hoje quem tem o SIM só pode vender no próprio município e ainda não tem direito ao Selo Arte nem ao SIF. Já o SISP Artesanal permite a venda no Estado e a solicitação do Arte.

Queijos da Lano-Alto,queteve sua produçãodestruídapelafiscalização porfaltade registros. Foto: Lano Alto

“Nossa proposta é que a nova lei ofereça possibilidade de convênio com municípios. Isso beneficiaria centenas de pequenos produtores”, defende a deputada estadual Marina Helou (Rede), coautora de cinco emendas propostas no PL. O projeto tramita em regime de urgência e está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A expectativa é de que o texto possa ir a plenário no máximo até novembro. Se a maioria dos deputados votar a favor, segue para sanção final do governador e, então, se torna lei.

Timing

A pressão ganhou força em setembro, pouco mais de dois meses após um incidente na fazenda Lano-Alto, de São Luiz de Paraitinga, na Serra do Mar, que ganhou repercussão nacional: 120 kg de queijo, 45 kg de iogurte e 9 kg de requeijão do casal de produtores Yentl Dalanhesi e Paulo Lemos, o Peele, foram destruídos pela fiscalização da regional da Defesa Agropecuária do Estado após denúncia anônima sobre falta de registros. Ao Paladar, Peele afirmou que tentava há três anos obter o SIM, mas não conseguiu. “Quando o processo começou a andar, veio a pandemia e ficamos no limbo.”

Longa espera: de 175 mil produtores artesanais, só 154 obtiveram os selo. Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Entre os produtos perdidos na Lano-Alto estava o queijo Causo, feito com leite de vacas jersey criadas a pasto, com massa semicozida e mofo espontâneo, envelhecido em câmara fria por 10 semanas – pense num brie meia-cura. “O caso foi a faísca que precisava para o motor pegar”, diz Christophe Faraud, fundador da APQA e produtor no Vale do Paraíba Paulista.

“Estamos articulando mudanças desde 2017, quando a APQA foi criada. Esse projeto estava engavetado desde o fim de 2020 e finalmente saiu quando o caso da Lano-Alto veio a público”, conta o francês, radicado no Brasil desde 1988 e um dos responsáveis por erguer a voz em nome dos produtores paulistas que pedem ajustes na legislação do queijo artesanal.

Leite cru

Até agora, apenas queijos com mais de 60 dias de maturação podem ser feitos com leite cru; do contrário, é obrigatório pasteurizar a matéria-prima. Os produtores querem que esse limite seja reduzido. Para isso, é necessário apresentar pesquisa científica para comprovar se existe segurança microbiológica. “Produtos assim podem ser considerados queijos de inovação, uma característica dos queijos artesanais paulistas”, diz a médica veterinária Andrea Rosenfeld, que trabalha há 20 anos prestando assessoria para produtores obterem os registros SISP e SISP Artesanal. Ela foi responsável pela obtenção dos três primeiros Selos Arte de São Paulo.

Embora seja possível criar bons queijos com leite pasteurizado, o uso de leite cru abre um leque maior quando o assunto é terroir. “O leite cru reúne todos os micro-organismos que estão presentes naturalmente no leite e que ajudam no aroma, na textura e até na formação de olhaduras”, explica Vanessa Alcolea, mestre queijeira e gerente técnica da premiada Pardinho Artesanal. Outra novidade é a possibilidade de comprar leite de outras fazendas, o que permitiria que pessoas que não tenham animais possam produzir queijos. Por enquanto, a lei só permite o uso de matéria-prima própria.

Fiscalização

Modernizar a legislação significa mudar a forma como a inspeção e a fiscalização são feitas em pequenas propriedades artesanais. Segundo Marco Aurélio Braga, doutor em Direito pela USP e especialista em regulação de alimentos, essa estrutura tem raízes nas primeiras leis brasileiras sobre produtos de origem artesanal, entre as décadas de 1950 e 1970, e no modelo norte-americano em que foram espelhadas. “A gente tem uma estrutura industrial e sanitarista. O fiscal olha só a forma como você faz o queijo, como se isso bastasse para garantir a sanidade e inocuidade do produto. Mundo afora, as melhores práticas de fiscalização indicam que a gente precisa controlar o produto final e os insumos usados para ele ser feito, como a qualidade da água, do leite e da saúde do rebanho, e não saber se a queijaria é azulejada”, defende.

Esse é o protocolo na França. Há duas semanas, o produtor Pierre Coulon, da Laiterie de Paris, recebeu uma visita da fiscalização depois de três anos na ativa. “Ele mostrou o dossiê de todos os exames: de cada lote de queijo, das superfícies da queijaria, até da lavagem de mão das funcionárias. A fiscal deu o retorno de très satisfasin, muito satisfeita”, conta Débora Pereira, especialista em queijos e blogueira do Paladar. “A avaliação deve ser instrutiva, não punitiva. Esse é o maior problema do Brasil”, aponta.

Sem rótulo vende mais

“Tem produtor que tira o rótulo do queijo para vender no restaurante, porque os consumidores acham que só assim o produto é artesanal. E as vendas diminuem mesmo”, conta Andrea Rosenfeld. Segundo a médica veterinária, muitos produtores nem tentam obter o registro por isso, mas a prática é ilegal.

Fábio Pimentel, do Laticínio Artesanal Montezuma, o primeiro de leite de búfala de São Paulo, já passou por algo do tipo. “Foi em uma padaria. O proprietário me pediu para colocar os queijos no plástico porque os clientes não gostavam da embalagem. Parei de vender para ele”, relembra. Pimentel é um dos 28 produtores de laticínios com SISP Artesanal no Estado e está há um ano no processo para solicitar o Selo Arte.

Ele não vê a hora de apresentar seus queijos artesanais – com rótulo – ao Brasil. “Não é justo que só os paulistas comam os queijos deliciosos produzidos por tantos produtores daqui. Porque tem muita coisa boa, viu”, garante.

Entenda os selos

SIM

O Serviço de Inspeção Municipal surgiu em 1989 e vale somente para comércio dentro do município em que os produtos de origem animal foram produzidos, o que limita as vendas de pequenos produtores. Com ele, ainda não é possível ao produtor pedir o Selo Arte ou SIF.

Sisp Artesanal

Entra em cena por meio da lei n.º 10.507/2000 e é o registro que vale para todo o Estado. Ele difere do Serviço de Inspeção Estadual (Sisp), feito nas indústrias desde 1992, pela isenção de taxas e menos exigências em relação aos equipamentos e área de produção. A venda dos produtos também é limitada ao Estado de São Paulo. Com ele, é possível pedir o Selo Arte.

SIF

Criado em 1915 e antes chamado de Serviço de Inspeção Pastoril, em 1933 o SIF se tornou o que conhecemos até hoje como Serviço de Inspeção Federal. É o registro mais antigo do Brasil para produtos de origem animal. Com ele, é possível vender em território nacional e, com autorização, até no exterior. Em São Paulo, a Pardinho Artesanal (localizada na cidade homônima, no interior do Estado) é uma das poucas queijarias com SIF.

Selo Arte

Surgiu em 2018 com a promessa de “desburocratizar” o SIF e, dessa forma, facilitar a vida dos produtores artesanais, que poderiam vender os seus produtos de origem animal, como queijos, embutidos, pescados, méis e ovos, em todo o País. Para consegui-lo em São Paulo, é preciso ter antes o Sisp Artesanal. Porém, até o momento, apenas cinco produtores do Estado conseguiram obtê-lo: quatro de queijo e um de charcutaria.

Onde comprar

A Casa do Queijo  R. Martim Francisco, 719, Vila Buarque. 2539-0252. 9h/17h30 (domingo, 10h/14h; fecha na 2.ª). A Queijaria  R. Aspicuelta, 35, Vila Madalena. 3812-6449. 10h/20h (2.ª a 4.ª até as 18h; fecha no domingo).

Armazém do Mineiro  R. Azevedo Soares, 1.773, Tatuapé. 2309-4847. 10h/19h (sáb., 10h/17h; fecha no domingo). Galeria do Queijo Av. Prof. Abraão de Morais, 1.500, box 6, Saúde. 2639-9206. 7h/20h (domingo, 8h/13h). Mestre Queijeiro  R. Simão Álvares, 112, Pinheiros. 2369-1087. 10h/28h (2.ª até as 17h; fecha domingo). Queijuz Edifício Copan. Av. Ipiranga, 200, loja 28. 3231-4988, na República. 9h30/19h (sáb. até 18h; fecha domingo).

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