É o começo de um novo capítulo para as cozinhas africanas – assim mesmo, no plural. Até pouco mais de um ano atrás, nenhuma pessoa negra esteve nas listas dos 100 melhores chefs do mundo desde que o The Best Chef Awards foi lançado, em 2017.
Selassie Atadika, à frente do restaurante nômade Midunu, em Acra, Gana, foi a primeira e única africana a aparecer no ranking, em 2020. Seu trabalho ao promover a Nova Cozinha Africana, que tem plantas nativas e grãos ancestrais como protagonistas de fine dining, tem chamado atenção de todos os olhos antes voltados para qualquer outro continente que não a África.
"Já passou tempo demais para que chefs e cozinhas incríveis da África fossem notados", disse Atadika em entrevista ao Paladar. "A culinária global precisa ir além quando se fala sobre diversidade, inclusão e visibilidade".
Neste ano, o cenário já parece diferente. Ao lado de Atadika, que continuou no ranking em 2021, o congolês Dieuveil Malonga, de 29 anos, entrou para a lista na 94 ̊ posição com seu Meza Malonga e sua Afro Fusion, em Kigali, Ruanda.
O malinês Mory Sacko, do jovem e já estrelado Mosuke, em Paris, também apareceu entre os 100 melhores pela primeira vez, em 84 ̊ lugar. E quem levou o título de 'estrela em ascensão' foi Fatmata Binta, de Serra Leoa. A chef é idealizadora do projeto Fulani Kitchen, que tem como objetivo valorizar as receitas tradicionais da maior tribo nômade da África Ocidental.
Uma mudança significativa parece tomar forma com todas essas conquistas. "Vamos desenterrar os impactos da escravidão, do colonialismo, da exclusão econômica e muito mais", pontua Atadika. Antes de adotar a cozinha como profissão e se consagrar como um dos rostos que têm elevado as tradições culinárias africanas, a ganense trabalhou durante uma década na ONU em missões humanitárias. Percorreu mais de 40 países dos 54 que compõem seu continente e percebeu que é possível mudar a forma como as pessoas enxergam um povo e uma história de séculos de dor ao reapresentar pratos tradicionais nos moldes da alta cozinha.
Se um dia você tiver a oportunidade de acordar em qualquer cidade de Gana, perceberá que o desjejum mais clássico por lá é o waakye (leia "waachai"). A base é feita geralmente com arroz basmati, feijão de corda e folhas de sorgo vermelho, tudo cozido junto – o que dá ao prato um tom avermelhado.
Nas feiras de rua, é servido às colheradas em uma folha de bananeira com ovo cozido, macarrão e shito, molho apimentado típico do país. Em seu restaurante, Selassie Atadika apresenta o waakye em pequenos cubos levemente polvilhados com farinha de mandioca ao lado de singelos ninhos de macarrão, shito e ovos de codorna cozidos. "Quero celebrar e preservar a herança culinária africana. Cada refeição conta a história dos lugares que visitei e dos povos que conheci", diz a chef.
A cozinha africana no Brasil
Por aqui, quem tem feito um trabalho semelhante de resgate cultural é Melanito Biyouha. Nascida em Camarões, na África Central, chegou ao Brasil em 2003 e, quatro anos depois, foi pioneira ao inaugurar o Biyou'z Gastronomia Africana, no centro de São Paulo, com 36 lugares. Hoje, conta com uma segunda unidade, maior, para receber até 100 pessoas, na Consolação.
Se no início oferecia apenas pratos típicos de seu país natal, aos poucos passou a incluir no cardápio preparos clássicos de outras nações africanas, como Angola e Congo. Embora não tenha uma versão do waakye, vale experimentar o koki camaronês: um bolo de feijão fradinho cozido a vapor na folha de bananeira com azeite de dendê e servido com mix de ervilhas refogadas e inhame cozido (R$ 38).
Da parte de Biyouha, não falta vontade de levar seu Biyou'z ao patamar de uma 'alta gastronomia'. "O problema é que no Brasil a cultura africana é pouco conhecida. Conhecemos muitos restaurantes de outros países, mas quase não vemos restaurantes africanos por aqui", diz a chef. Seu plano é que, em um futuro próximo, além de investir mais na casa, possa abrir em São Paulo uma escola de culinária com foco em técnicas e tradições de países da África.
Para isso, é preciso haver demanda. Mas é difícil existir vontade de conhecer algo quando não se fala de forma coletiva sobre esse algo. Para além dos pratos e ingredientes que se tornaram heranças africanas de uma época de escravidão, da feijoada à moqueca e ao acarajé, pouco se sabe sobre as cozinhas africanas contemporâneas.
Conhecemos o sabor do dendê, do purê de inhame e do frango ensopado com quiabo, mas sabemos que gosto tem a comida de países como Angola, Nigéria, Senegal, Benin? O problema começa quando tentamos encaixar a cultura de 54 países em uma só panela: a da cozinha africana, no singular.
"A gente tem uma perspectiva de homogeneidade, acha que tudo é uma coisa só. Restringimos algo que é super complexo e diverso, que são as histórias de todo um continente, e isso acaba refletindo na forma como o Brasil olha para a própria construção da sua cozinha", diz Lourence Alves, historiadora, gastrônoma e doutora em nutrição, alimentação e saúde.
O primeiro passo para mudar essa ideia é reformular a visão que se tem sobre a África. "Você vai achar que cozinha africana é algo pobre por toda a referência de pobreza que acaba impregnando o imaginário em relação ao continente, que de é pobreza, conflito, doença. Mas essas não são características inerentes à África, são consequências dos processos de colonização que todo o território sofreu", aponta a historiadora.
O segundo passo é comer. Se aproximar de sabores e combinações que se entrelaçam com o que chamamos de comida brasileira, que tem muito da ancestralidade africana.
"A gente percebe uma similitude de ingredientes. Você pode provar um prato diferente [africano] e vai perceber que ele agrada muito o paladar, porque na verdade os sabores principais são de ingredientes que vieram séculos atrás e que incorporamos aqui", diz Aline Araújo, mais conhecida pelo sobrenome artístico-culinário Chermoula, que divide seu tempo como pesquisadora da cozinha ancestral afrodiaspórica pelas Américas há mais de 15 anos, chef no Chermoula Culinária e professora no Gastromotiva.
A diferença entre as cozinhas africanas e as brasileiras é o espaço que a proteína animal ocupa na mesa. "A gente organiza o nosso prato tendo a carne como referência, mas lá a carne não aparece dessa forma tão protagonista", explica Alves. Em geral, um molho refogado principalmente com vegetais e folhas (que pode ou não ter carne) é que dá nome ao prato.
"Esse molho tem bastante sabor e vai ter como acompanhamento uma base de água enriquecida com algum tipo de farinha ou amido e vai se transformar numa massa, que vai dar liga e funcionar como acompanhamento", complementa a historiadora. Um exemplo é a muamba de galinha, da Angola, em que o ensopado é servido com pirão de milho ou mandioca.
Representatividade
Do outro lado do oceano, em Londres, Nokuthula Majozi, mais conhecida como Nokx, lidera a produção de tortas clássicas ao lado do chef britânico Calum Franklin no hotel 5 estrelas Rosewood London. Em 2021, a sous chef foi reconhecida como uma das 100 mulheres mais influentes em Hospitalidade no Reino Unido.
Nos próximos cinco anos, sua meta é voltar para a África do Sul, seu país de origem, e impulsionar a carreira de cozinheiras que vivem nos bastidores. "Nunca me inspirei em um chef negro porque não havia nenhum há 15 anos, quando comecei a trabalhar com gastronomia. Mas as coisas estão mudando e estou em uma missão para contribuir com esse processo", disse Majozi ao Paladar.
Dieuveil Malonga, o congolês que apareceu como um dos 100 melhores chefs de 2021, também retornou à África em 2016 depois de um longo período fora – passou a juventude na Alemanha (foi lá que começou a carreira de cozinheiro) e aperfeiçoou as habilidades culinárias na França. Escolheu Ruanda, país vizinho à República Democrática do Congo, para estabelecer sua cozinha, que tem chamado de Afro Fusion.
"É uma ponte entre a cozinha tradicional africana e a contemporânea, com influências alemãs e francesas", explica o chef. Mas, além do Meza Malonga, um outro projeto foi responsável por colocá-lo entre os 50 Next, uma lista de pessoas que estão moldando o futuro da gastronomia, do The 50 Best Restaurants neste ano: o Chefs in Africa. Malonga criou a plataforma em 2016 para reunir cozinheiros de todos os países do continente africano, ganhou apoio da Unesco e já impulsionou a carreira de mais de quatro mil profissionais.
Para Aline Chermoula, movimentos como esse são essenciais para resgatar a identidade de povos negros e honrar sua história. "É um caminho novo para todos que estão distantes desses conhecimentos ancestrais africanos. Por isso, colocar essas cozinhas dentro de um padrão de alta gastronomia também significa reconhecer o valor delas.”
Diáspora africana O termo se refere à imigração forçada de cerca de 11 milhões de pessoas do continente africano para as Américas entre os séculos 16 e 18 para tráfico escravagista.
Para saber mais - Kitutu: histórias e receitas da África na formação das cozinhas do Brasil, Raul Lody. 184 p., 2019, Editora Senac São Paulo. - Alimentar a Cidade, Richard Graham. 464 p., 2013, Companhia das Letras.
Serviço
Onde provar as cozinhas africanas em São Paulo
Biyou'z Gastronomia Africana
Alameda Barão de Limeira, 19, Campos Elíseos. 3221-6806. 12h/23h. Fernando de Albuquerque, 95, Consolação. 12h/22h.O que provar: Ndolé, prato de Camarões feito com pasta de amendoim cozido com folha de boldo, camarão moído, banana-da-terra cozida e carne bovina refogada.
Chermoula Gastronomia
Almoços e jantares em domicílio. (11) 97242-3169. www.chermoula.com.br O que provar: Muamba de Galinha, tradicional da Angola. O ensopado é feito com quiabo, abóbora, alho, cebola e gindungo (pimenta malagueta) e servido com funge, pirão de milho ou mandioca.
Mamma Africa La Bonne Bouffe
Rua Cantagalo, 230, Tatuapé. 3582-7438. 12h/22h (sáb., 12h/17h30, 19h/22h30; dom. e feriados, 12h/16h).O que provar: Injera, um tipo de crepe feito com o grão Teff, típico da Etiópia. A massa é fermentada por dois a três dias em água e depois assada na chapa e servida com acompanhamentos em pasta, leguminosas, verduras e carnes.