Não deve ser fácil ser cozinheira em Madri. Não que seja fácil ser cozinheira em algum lugar. Jornadas longas, fisicamente exigentes e um ambiente violentamente quente e pontiagudo nunca foram sinônimo de calmaria.
Porém, na capital espanhola, as avós são respeitadas. Seguem tanto nos discursos de grandes chefs quanto excluídas das páginas de jornais e revistas de gastronomia. A Tapas, a mais famosa delas, a cada final de ano publica as personalidades mais relevantes. Dentre as 50 de 2023, duas, du-as, eram cozinheiras.
Nada que preocupe Marina Lis Ra, chef argentina, filha de coreanos. Desde 2020 em Chacarita, bairro efervescente da gastronomia portenha, ela coloca em prática “a arte de compartilhar” – ou nanum, em coreano. Nome de seu restaurante na capital da Argentina e, agora, da Espanha também.
Em ambas as casas, ela alia insanidade às tradições familiares: faz kimchi com os vegetais da estação; junta maçã, kennip (a maionese japonesa do bebê) e quinua ao yukhoe (tartar típico da Coreia); serve tteokbokki (massinha de arroz) com molho de choonjang (o missô coreano), camarões, pepino e coentro.
Sem temer a potência de aromas, cores e sabores, Lis cria uma delicada culinária coreana, de sotaque próprio, que transita entre a Ásia e o Ocidente sem regras nem limites fixos. Uma culinária que há poucos dias dialoga com os “incríveis” produtos espanhóis no bairro boêmio e GLBT de Chueca.
Nesse sentido, vieiras substituem os mexilhões argentinos no ceviche de leite de tigre de kimchi (€ 20) e são salpicadas com romã e algas crocantíssimas, e o bacalhau, vem no lugar de peixes como a lisa, o que lhe permite ser laqueado com pimenta banana-gochujang e desmanchar na boca (€ 28). Já as gambas, “camarões gigantes”, são lambuzados em manteiga de pimentão (€ 26).
“Eu não conhecia Madri, mas tinha certeza que queria ter meu restaurante aqui”, confessa Lis. E tem. Aos 34, a história da mulher com sorriso de menininha, é dessas de contos de fada dos tempos modernos.
“Durante a infância, vivi nos Estados Unidos, mudando de estado em estado: Pensilvânia, Nova Jersey, Nova York, Texas e Virgínia. Em 2001, voltei a Buenos Aires, onde estive até há uns meses. Não foi uma infância e nem uma adolescência tranquila, eu achava que eu não era boa em nada, achava difícil ter amigos”, conta Lis.
A docilidade com que fala esconde uma anorexia nervosa por causa disso, agravada por um casamento abusivo com um coreano “machista e conservador”. A cozinha, com toda a sua natural magia, acabou como “um escape e também um desafio”, confessa.
O dia em que conseguiu terminar uma maçã lhe pareceu uma vitória. E foi. Assim como o dia em que fez seu primeiro kimchi elogiado. Superações que a levaram à sub-chefia no Niño Gordo, a um projeto solo às segundas-feiras e, hoje, ao segundo Na Num.
Como em Buenos Aires, o menu foge do esquema clássico de entradas e principais, “porque é mais divertido provar e compartilhar tudo do centro da mesa” e está em cartaz há apenas quatro serviços. Entre cozinha e sala, a chef não esconde apreensão: “Estou me adaptando. O salão ainda não tem a acústica, o som vem do meu telefone e o letreiro ainda não foi entregue, mas estou feliz”.
Deveria mesmo. Perrengues de abertura à parte, a comida parece que sempre foi feita ali. Entra numa seara ainda inexplorada em sua nova cidade e deixa um aviso: Madri, Lis Ra chegou chegando.
Na Num
Calle de la Libertad 8, à direita, Chueca, Madri. Ter. a sáb., das 19h às 23h.