Música de restaurante incomoda você?


A trilha sonora interfere muito mais numa refeição do que se imagina. Altura e estilo de som alteram estado de espírito, apetite, percepção de sabores e determinam o tempo à mesa

Por Patrícia Ferraz

“Adoro sua comida e adoro o seu restaurante, mas odeio a música.” Ryuichi Sakamoto não aguentava mais a playlist de seu restaurante japonês favorito, o Kajitsu, um vegetariano de cozinha shojin (zen-budista) que fica na Rua 39, perto da Avenida Lexington, em Murray Hill, Nova York. O músico achava o som alto demais. E isso não era uma impressão ditada apenas pela sensibilidade do ouvido desse premiado compositor de trilhas de cinema, concertos e até música para videogames e ringtones: Sakamoto carrega em seu celular um decibelímetro para medir o barulho ao redor.

A história foi publicada pelo New York Times (leia aqui em português) e correu o mundo na semana passada. A seleção do Kajitsu, segundo Sakamoto, não tinha critério, era uma “mistura terrível” de música pop brasileira, velhas canções folk americanas e algum jazz. Depois de sua última visita ao restaurante, mandou um e-mail para o chef da casa. “Sua comida é bela como o Katsura Rikyu (um palacete de mil anos de Tóquio), mas a música está mais para Trump Tower”, escreveu. Como queria continuar frequentando o lugar, achou melhor mudar as coisas por ali e se ofereceu para fazer uma nova playlist para o restaurante. De graça. Sem nenhuma música de sua autoria. Ah, se essa moda pegasse...

+ Receitas para um jantar de amigos e uma seleção de músicas para harmonizar

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Salão do balaio, do chef Rodrigo Oliveira Foto: Nilton Fukuda|Estadão

Donos de restaurantes no mundo todo costumam investir no chef, na decoração, na louça, na iluminação, no uniforme da brigada – alguns estão até mudando o ambiente para favorecer postagens nas redes sociais. Mas poucos levam a música a sério. A maioria das casas deixa o som por conta de bartenders e sommeliers, algum amigo “entendido de música” ou até do proprietário. 

A questão é que a escolha da trilha sonora de um restaurante vai muito além de bom gosto. Tanto que a relação da música com a comida tem despertado o interesse de pesquisadores pelo mundo. A mais célebre universidade de música nos Estados Unidos, Berklee College of Music, recentemente ofereceu um curso sobre música e comida.

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Diferentes estudos mostram influência do estilo e da altura do som na experiência gastronômica e até, especificamente, no paladar, como explica a pesquisadora Janice Wang, pós-doutoranda na Oxford University. “A música interfere não só no humor de quem está no restaurante, mas no apetite, na velocidade da refeição e até em quanto alguém gosta ou não da comida”, disse em entrevista por e-mail ao Paladar (confira abaixo). 

Fazer a seleção musical de um restaurante, portanto, não é para qualquer um – na reportagem ao jornal americano, Ryuichi Sakamoto contou que pediu ajuda ao produtor musical nova-iorquino Ryu Takahashi e, ainda assim, eles fizeram cinco versões antes de acertar a playlist, que está em cartaz no restaurante.

Uma boa seleção deve respeitar o fluxo da refeição, o estilo da casa, o movimento do salão. “Música tem que ser controlada como o ar condicionado, conforme o movimento, o dia, o horário”, diz Maria Helena Guimarães, sócia do Ritz e do Spot, que tem uma trilha elogiada, que vai de Cole Porter a Billy Holiday, passando por Caetano e Gil. A seleção é feita pelo DJ Pedro Igor.

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Charlô Whately também deixa o som de suas casas aos cuidados de um DJ, Milton Chuquer. Na Carlos Pizza, quem manda no som é o produtor musical Fábio Góes.Gustavo Rozino, do Tonton já foi DJ e é ele quem faz a seleção musical de seu restaurante -- ele atualiza a trilha todo dia e também sempre que ouve alguma música que tenha o estilo de sua casa. Rodrigo Oliveira trata a música de cada restaurante de um jeito. “A música faz parte da ambientação”, diz. No Mocotó, é forró pé de serra escolhido por ele. No Esquina, a trilha foi feita por Evandro Fióti e Emicida. No Balaio, a playlist é da Rádio Batuta.

O músico e compositor Ryuichi Sakamoto no restaurante Kajitsu em Nova York Foto: Nathan Bajar|NYT

A preocupação com a trilha sonora tem aumentado nos últimos três ou quatro anos, como conta o diretor de criação da Rádio Ibiza, Zé Marcio Alemany, um dos pioneiros na área. Músico e baterista, ele entrou no ramo há 12 anos, quando acompanhava a mulher jornalista especializada em comida às visitas a restaurantes, no Rio. “Eu achava as trilhas muito ruins e tive a ideia de começar a trabalhar com isso.” 

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Com a autoridade de quem cuida da música de endereços celebrados como os paulistanos Maní, Nino Cucina, Pirajá e do carioca Oro, além das casas de Pedro Artagão e Claude Troisgros, entre tantas outras, Zé Márcio explica que antes de mais nada a trilha tem de refletir a vocação do lugar. “Na Bráz Elettrica, por exemplo, ninguém fica muito tempo, a música é ruidosa, moderna”, diz. No Pirajá, só toca samba, mas o samba do almoço é Cartola, mais tranquilo, e o do jantar é Clara Nunes, para cima. “Acabamos de entregar a trilha do Da Marino, em São Paulo, só tem música italiana debochada.” 

Segundo ele, o conceito musical tem de mudar conforme o horário. Além disso, ele afirma que a música altera até a quantidade de bebida consumida e ilustra a tese com uma história divertida, do Fasano, no Rio. O restaurateur Rogerio Fasano pediu uma trilha para a happy hour, eles capricharam, o lugar bombou e a venda de champanhe triplicou. Resultado? “O Rogerio Fasano mandou mudar a trilha, achou perigoso o pessoal beber tanto perto da piscina”, diverte-se.

Música boa atrai. Música ruim expulsa. O diretor da Rádio Eldorado, Emanuel Bonfim, conta que quando vê música ao vivo num restaurante vai embora. “Além de incomodar, acho constrangedor não prestar atenção no músico, mas é inevitável num restaurante.” 

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Ambiente da pizzaria Braz Elettrica em Pinheiros Foto: Bruno Geraldi

Seleção inadequada também é um grande problema. Quem é que quer ouvir ópera numa padaria, almoçar num japonês ao som de balada ou ainda ouvir a tarantella só porque está diante de um prato de espaguete? Pois isso acontece muito. E não por acaso tanta gente reclama. O especialista em criar conceitos para restaurantes André Rodrigues, da Loudtt, que desenvolveu o conceito do Evvai, entre outros, pensa na música desde o início do projeto e sugere o perfil, conforme o público que o restaurante quer atingir. “Comida é lifestyle, tem que saber qual é o público, qual é o consumidor.”

Música alta perturba, interfere na conversa, irrita e é a principal reclamação. Mas silêncio também incomoda, obriga a ouvir a conversa da mesa ao lado e torna constrangedora qualquer queda de garfo. 

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A diretora de hospitalidade do grupo Laureate, Rosa Moraes, nunca esqueceu a primeira visita ao (hoje extinto) Charlie Trotter, em Chicago. “As paredes eram brancas, sem quadros, não havia decoração e o salão não tinha som, tudo para não tirar a atenção da comida. Eu estava sozinha e achei o silêncio péssimo. Por sorte tinha uma senhora velhinha, também sozinha e louca para conversar. Foi o que salvou meu jantar.”

Cardápio musical

Já sabemos então que a trilha sonora interfere muito mais numa refeição do que se imagina. Pensando nisso, montamos um cardápio para um jantar em casa, com amigos, com sugestões de aperitivo, entrada, primeiro e segundo prato e sobremesa, e o pessoal da Rádio Eldorado fez a playlistAqui, comentamos cada escolha musical e damos as sugestões de receitas, todas fáceis e deliciosas. 

Entrevista com Janice Qian Wang, pesquisadora da Oxford University

Como exatamente a música interfere no paladar?  Ela pode mudar os sabores que você percebe na comida, por exemplo, criando uma expectativa de quanto do doce, apimentado, salgado ou azedo você vai sentir num prato. Isso acontece da mesma forma que ouvir o bife crispando na panela ou o champanhe borbulhando “antecipa” um sabor. O som também pode direcionar sua atenção a determinados sabores – diante de um vinho, por exemplo, levar você a focar no tanino ou na fruta. Como se chegou a essa conclusão? Houve muitos estudos em Oxford e pelo mundo. A técnica mais comum é medir a intensidade da percepção de sabores em escalas e calcular como esses índices mudam conforme a música, durante os testes, com trilhas feitas sob medida. Num estudo recente, as pessoas tinham que segurar vinho na boca por 30 segundos e ir registrando a intensidade do sabor sentido. Tocamos dois tipos de música diferentes, nos primeiros 15 segundos, a música estimulava a percepção do doce, e nos 15 segundos seguintes, estimulavam o azedo. Comprovamos que conforme a música mudava as pessoas mudavam a nota de doçura que sentiam. 

Poderia dar exemplos de como os sons estimulam sabores? Pesquiso principalmente como as pessoas associam diferentes atributos sonoros a diferentes sabores. Por exemplo, constatamos que a picância é associada à alta batida, tempo rápido e alta distorção (guitarra elétrica). Então, criamos uma trilha com esses atributos e tocamos enquanto as pessoas comiam. O resultado foi que isso o aumentou não apenas a expectativa mas também a percepção da picância nos pratos. Durante outro estudo conseguimos associar a doçura à batida alta e às harmonias consoantes, e o amargor às batidas baixas e mais lentas da música. 

Qual o maior pecado de trilha sonora em um restaurante? Barulho alto que impede de ouvir a música e de conversar. 

“Adoro sua comida e adoro o seu restaurante, mas odeio a música.” Ryuichi Sakamoto não aguentava mais a playlist de seu restaurante japonês favorito, o Kajitsu, um vegetariano de cozinha shojin (zen-budista) que fica na Rua 39, perto da Avenida Lexington, em Murray Hill, Nova York. O músico achava o som alto demais. E isso não era uma impressão ditada apenas pela sensibilidade do ouvido desse premiado compositor de trilhas de cinema, concertos e até música para videogames e ringtones: Sakamoto carrega em seu celular um decibelímetro para medir o barulho ao redor.

A história foi publicada pelo New York Times (leia aqui em português) e correu o mundo na semana passada. A seleção do Kajitsu, segundo Sakamoto, não tinha critério, era uma “mistura terrível” de música pop brasileira, velhas canções folk americanas e algum jazz. Depois de sua última visita ao restaurante, mandou um e-mail para o chef da casa. “Sua comida é bela como o Katsura Rikyu (um palacete de mil anos de Tóquio), mas a música está mais para Trump Tower”, escreveu. Como queria continuar frequentando o lugar, achou melhor mudar as coisas por ali e se ofereceu para fazer uma nova playlist para o restaurante. De graça. Sem nenhuma música de sua autoria. Ah, se essa moda pegasse...

+ Receitas para um jantar de amigos e uma seleção de músicas para harmonizar

Salão do balaio, do chef Rodrigo Oliveira Foto: Nilton Fukuda|Estadão

Donos de restaurantes no mundo todo costumam investir no chef, na decoração, na louça, na iluminação, no uniforme da brigada – alguns estão até mudando o ambiente para favorecer postagens nas redes sociais. Mas poucos levam a música a sério. A maioria das casas deixa o som por conta de bartenders e sommeliers, algum amigo “entendido de música” ou até do proprietário. 

A questão é que a escolha da trilha sonora de um restaurante vai muito além de bom gosto. Tanto que a relação da música com a comida tem despertado o interesse de pesquisadores pelo mundo. A mais célebre universidade de música nos Estados Unidos, Berklee College of Music, recentemente ofereceu um curso sobre música e comida.

Diferentes estudos mostram influência do estilo e da altura do som na experiência gastronômica e até, especificamente, no paladar, como explica a pesquisadora Janice Wang, pós-doutoranda na Oxford University. “A música interfere não só no humor de quem está no restaurante, mas no apetite, na velocidade da refeição e até em quanto alguém gosta ou não da comida”, disse em entrevista por e-mail ao Paladar (confira abaixo). 

Fazer a seleção musical de um restaurante, portanto, não é para qualquer um – na reportagem ao jornal americano, Ryuichi Sakamoto contou que pediu ajuda ao produtor musical nova-iorquino Ryu Takahashi e, ainda assim, eles fizeram cinco versões antes de acertar a playlist, que está em cartaz no restaurante.

Uma boa seleção deve respeitar o fluxo da refeição, o estilo da casa, o movimento do salão. “Música tem que ser controlada como o ar condicionado, conforme o movimento, o dia, o horário”, diz Maria Helena Guimarães, sócia do Ritz e do Spot, que tem uma trilha elogiada, que vai de Cole Porter a Billy Holiday, passando por Caetano e Gil. A seleção é feita pelo DJ Pedro Igor.

Charlô Whately também deixa o som de suas casas aos cuidados de um DJ, Milton Chuquer. Na Carlos Pizza, quem manda no som é o produtor musical Fábio Góes.Gustavo Rozino, do Tonton já foi DJ e é ele quem faz a seleção musical de seu restaurante -- ele atualiza a trilha todo dia e também sempre que ouve alguma música que tenha o estilo de sua casa. Rodrigo Oliveira trata a música de cada restaurante de um jeito. “A música faz parte da ambientação”, diz. No Mocotó, é forró pé de serra escolhido por ele. No Esquina, a trilha foi feita por Evandro Fióti e Emicida. No Balaio, a playlist é da Rádio Batuta.

O músico e compositor Ryuichi Sakamoto no restaurante Kajitsu em Nova York Foto: Nathan Bajar|NYT

A preocupação com a trilha sonora tem aumentado nos últimos três ou quatro anos, como conta o diretor de criação da Rádio Ibiza, Zé Marcio Alemany, um dos pioneiros na área. Músico e baterista, ele entrou no ramo há 12 anos, quando acompanhava a mulher jornalista especializada em comida às visitas a restaurantes, no Rio. “Eu achava as trilhas muito ruins e tive a ideia de começar a trabalhar com isso.” 

Com a autoridade de quem cuida da música de endereços celebrados como os paulistanos Maní, Nino Cucina, Pirajá e do carioca Oro, além das casas de Pedro Artagão e Claude Troisgros, entre tantas outras, Zé Márcio explica que antes de mais nada a trilha tem de refletir a vocação do lugar. “Na Bráz Elettrica, por exemplo, ninguém fica muito tempo, a música é ruidosa, moderna”, diz. No Pirajá, só toca samba, mas o samba do almoço é Cartola, mais tranquilo, e o do jantar é Clara Nunes, para cima. “Acabamos de entregar a trilha do Da Marino, em São Paulo, só tem música italiana debochada.” 

Segundo ele, o conceito musical tem de mudar conforme o horário. Além disso, ele afirma que a música altera até a quantidade de bebida consumida e ilustra a tese com uma história divertida, do Fasano, no Rio. O restaurateur Rogerio Fasano pediu uma trilha para a happy hour, eles capricharam, o lugar bombou e a venda de champanhe triplicou. Resultado? “O Rogerio Fasano mandou mudar a trilha, achou perigoso o pessoal beber tanto perto da piscina”, diverte-se.

Música boa atrai. Música ruim expulsa. O diretor da Rádio Eldorado, Emanuel Bonfim, conta que quando vê música ao vivo num restaurante vai embora. “Além de incomodar, acho constrangedor não prestar atenção no músico, mas é inevitável num restaurante.” 

Ambiente da pizzaria Braz Elettrica em Pinheiros Foto: Bruno Geraldi

Seleção inadequada também é um grande problema. Quem é que quer ouvir ópera numa padaria, almoçar num japonês ao som de balada ou ainda ouvir a tarantella só porque está diante de um prato de espaguete? Pois isso acontece muito. E não por acaso tanta gente reclama. O especialista em criar conceitos para restaurantes André Rodrigues, da Loudtt, que desenvolveu o conceito do Evvai, entre outros, pensa na música desde o início do projeto e sugere o perfil, conforme o público que o restaurante quer atingir. “Comida é lifestyle, tem que saber qual é o público, qual é o consumidor.”

Música alta perturba, interfere na conversa, irrita e é a principal reclamação. Mas silêncio também incomoda, obriga a ouvir a conversa da mesa ao lado e torna constrangedora qualquer queda de garfo. 

A diretora de hospitalidade do grupo Laureate, Rosa Moraes, nunca esqueceu a primeira visita ao (hoje extinto) Charlie Trotter, em Chicago. “As paredes eram brancas, sem quadros, não havia decoração e o salão não tinha som, tudo para não tirar a atenção da comida. Eu estava sozinha e achei o silêncio péssimo. Por sorte tinha uma senhora velhinha, também sozinha e louca para conversar. Foi o que salvou meu jantar.”

Cardápio musical

Já sabemos então que a trilha sonora interfere muito mais numa refeição do que se imagina. Pensando nisso, montamos um cardápio para um jantar em casa, com amigos, com sugestões de aperitivo, entrada, primeiro e segundo prato e sobremesa, e o pessoal da Rádio Eldorado fez a playlistAqui, comentamos cada escolha musical e damos as sugestões de receitas, todas fáceis e deliciosas. 

Entrevista com Janice Qian Wang, pesquisadora da Oxford University

Como exatamente a música interfere no paladar?  Ela pode mudar os sabores que você percebe na comida, por exemplo, criando uma expectativa de quanto do doce, apimentado, salgado ou azedo você vai sentir num prato. Isso acontece da mesma forma que ouvir o bife crispando na panela ou o champanhe borbulhando “antecipa” um sabor. O som também pode direcionar sua atenção a determinados sabores – diante de um vinho, por exemplo, levar você a focar no tanino ou na fruta. Como se chegou a essa conclusão? Houve muitos estudos em Oxford e pelo mundo. A técnica mais comum é medir a intensidade da percepção de sabores em escalas e calcular como esses índices mudam conforme a música, durante os testes, com trilhas feitas sob medida. Num estudo recente, as pessoas tinham que segurar vinho na boca por 30 segundos e ir registrando a intensidade do sabor sentido. Tocamos dois tipos de música diferentes, nos primeiros 15 segundos, a música estimulava a percepção do doce, e nos 15 segundos seguintes, estimulavam o azedo. Comprovamos que conforme a música mudava as pessoas mudavam a nota de doçura que sentiam. 

Poderia dar exemplos de como os sons estimulam sabores? Pesquiso principalmente como as pessoas associam diferentes atributos sonoros a diferentes sabores. Por exemplo, constatamos que a picância é associada à alta batida, tempo rápido e alta distorção (guitarra elétrica). Então, criamos uma trilha com esses atributos e tocamos enquanto as pessoas comiam. O resultado foi que isso o aumentou não apenas a expectativa mas também a percepção da picância nos pratos. Durante outro estudo conseguimos associar a doçura à batida alta e às harmonias consoantes, e o amargor às batidas baixas e mais lentas da música. 

Qual o maior pecado de trilha sonora em um restaurante? Barulho alto que impede de ouvir a música e de conversar. 

“Adoro sua comida e adoro o seu restaurante, mas odeio a música.” Ryuichi Sakamoto não aguentava mais a playlist de seu restaurante japonês favorito, o Kajitsu, um vegetariano de cozinha shojin (zen-budista) que fica na Rua 39, perto da Avenida Lexington, em Murray Hill, Nova York. O músico achava o som alto demais. E isso não era uma impressão ditada apenas pela sensibilidade do ouvido desse premiado compositor de trilhas de cinema, concertos e até música para videogames e ringtones: Sakamoto carrega em seu celular um decibelímetro para medir o barulho ao redor.

A história foi publicada pelo New York Times (leia aqui em português) e correu o mundo na semana passada. A seleção do Kajitsu, segundo Sakamoto, não tinha critério, era uma “mistura terrível” de música pop brasileira, velhas canções folk americanas e algum jazz. Depois de sua última visita ao restaurante, mandou um e-mail para o chef da casa. “Sua comida é bela como o Katsura Rikyu (um palacete de mil anos de Tóquio), mas a música está mais para Trump Tower”, escreveu. Como queria continuar frequentando o lugar, achou melhor mudar as coisas por ali e se ofereceu para fazer uma nova playlist para o restaurante. De graça. Sem nenhuma música de sua autoria. Ah, se essa moda pegasse...

+ Receitas para um jantar de amigos e uma seleção de músicas para harmonizar

Salão do balaio, do chef Rodrigo Oliveira Foto: Nilton Fukuda|Estadão

Donos de restaurantes no mundo todo costumam investir no chef, na decoração, na louça, na iluminação, no uniforme da brigada – alguns estão até mudando o ambiente para favorecer postagens nas redes sociais. Mas poucos levam a música a sério. A maioria das casas deixa o som por conta de bartenders e sommeliers, algum amigo “entendido de música” ou até do proprietário. 

A questão é que a escolha da trilha sonora de um restaurante vai muito além de bom gosto. Tanto que a relação da música com a comida tem despertado o interesse de pesquisadores pelo mundo. A mais célebre universidade de música nos Estados Unidos, Berklee College of Music, recentemente ofereceu um curso sobre música e comida.

Diferentes estudos mostram influência do estilo e da altura do som na experiência gastronômica e até, especificamente, no paladar, como explica a pesquisadora Janice Wang, pós-doutoranda na Oxford University. “A música interfere não só no humor de quem está no restaurante, mas no apetite, na velocidade da refeição e até em quanto alguém gosta ou não da comida”, disse em entrevista por e-mail ao Paladar (confira abaixo). 

Fazer a seleção musical de um restaurante, portanto, não é para qualquer um – na reportagem ao jornal americano, Ryuichi Sakamoto contou que pediu ajuda ao produtor musical nova-iorquino Ryu Takahashi e, ainda assim, eles fizeram cinco versões antes de acertar a playlist, que está em cartaz no restaurante.

Uma boa seleção deve respeitar o fluxo da refeição, o estilo da casa, o movimento do salão. “Música tem que ser controlada como o ar condicionado, conforme o movimento, o dia, o horário”, diz Maria Helena Guimarães, sócia do Ritz e do Spot, que tem uma trilha elogiada, que vai de Cole Porter a Billy Holiday, passando por Caetano e Gil. A seleção é feita pelo DJ Pedro Igor.

Charlô Whately também deixa o som de suas casas aos cuidados de um DJ, Milton Chuquer. Na Carlos Pizza, quem manda no som é o produtor musical Fábio Góes.Gustavo Rozino, do Tonton já foi DJ e é ele quem faz a seleção musical de seu restaurante -- ele atualiza a trilha todo dia e também sempre que ouve alguma música que tenha o estilo de sua casa. Rodrigo Oliveira trata a música de cada restaurante de um jeito. “A música faz parte da ambientação”, diz. No Mocotó, é forró pé de serra escolhido por ele. No Esquina, a trilha foi feita por Evandro Fióti e Emicida. No Balaio, a playlist é da Rádio Batuta.

O músico e compositor Ryuichi Sakamoto no restaurante Kajitsu em Nova York Foto: Nathan Bajar|NYT

A preocupação com a trilha sonora tem aumentado nos últimos três ou quatro anos, como conta o diretor de criação da Rádio Ibiza, Zé Marcio Alemany, um dos pioneiros na área. Músico e baterista, ele entrou no ramo há 12 anos, quando acompanhava a mulher jornalista especializada em comida às visitas a restaurantes, no Rio. “Eu achava as trilhas muito ruins e tive a ideia de começar a trabalhar com isso.” 

Com a autoridade de quem cuida da música de endereços celebrados como os paulistanos Maní, Nino Cucina, Pirajá e do carioca Oro, além das casas de Pedro Artagão e Claude Troisgros, entre tantas outras, Zé Márcio explica que antes de mais nada a trilha tem de refletir a vocação do lugar. “Na Bráz Elettrica, por exemplo, ninguém fica muito tempo, a música é ruidosa, moderna”, diz. No Pirajá, só toca samba, mas o samba do almoço é Cartola, mais tranquilo, e o do jantar é Clara Nunes, para cima. “Acabamos de entregar a trilha do Da Marino, em São Paulo, só tem música italiana debochada.” 

Segundo ele, o conceito musical tem de mudar conforme o horário. Além disso, ele afirma que a música altera até a quantidade de bebida consumida e ilustra a tese com uma história divertida, do Fasano, no Rio. O restaurateur Rogerio Fasano pediu uma trilha para a happy hour, eles capricharam, o lugar bombou e a venda de champanhe triplicou. Resultado? “O Rogerio Fasano mandou mudar a trilha, achou perigoso o pessoal beber tanto perto da piscina”, diverte-se.

Música boa atrai. Música ruim expulsa. O diretor da Rádio Eldorado, Emanuel Bonfim, conta que quando vê música ao vivo num restaurante vai embora. “Além de incomodar, acho constrangedor não prestar atenção no músico, mas é inevitável num restaurante.” 

Ambiente da pizzaria Braz Elettrica em Pinheiros Foto: Bruno Geraldi

Seleção inadequada também é um grande problema. Quem é que quer ouvir ópera numa padaria, almoçar num japonês ao som de balada ou ainda ouvir a tarantella só porque está diante de um prato de espaguete? Pois isso acontece muito. E não por acaso tanta gente reclama. O especialista em criar conceitos para restaurantes André Rodrigues, da Loudtt, que desenvolveu o conceito do Evvai, entre outros, pensa na música desde o início do projeto e sugere o perfil, conforme o público que o restaurante quer atingir. “Comida é lifestyle, tem que saber qual é o público, qual é o consumidor.”

Música alta perturba, interfere na conversa, irrita e é a principal reclamação. Mas silêncio também incomoda, obriga a ouvir a conversa da mesa ao lado e torna constrangedora qualquer queda de garfo. 

A diretora de hospitalidade do grupo Laureate, Rosa Moraes, nunca esqueceu a primeira visita ao (hoje extinto) Charlie Trotter, em Chicago. “As paredes eram brancas, sem quadros, não havia decoração e o salão não tinha som, tudo para não tirar a atenção da comida. Eu estava sozinha e achei o silêncio péssimo. Por sorte tinha uma senhora velhinha, também sozinha e louca para conversar. Foi o que salvou meu jantar.”

Cardápio musical

Já sabemos então que a trilha sonora interfere muito mais numa refeição do que se imagina. Pensando nisso, montamos um cardápio para um jantar em casa, com amigos, com sugestões de aperitivo, entrada, primeiro e segundo prato e sobremesa, e o pessoal da Rádio Eldorado fez a playlistAqui, comentamos cada escolha musical e damos as sugestões de receitas, todas fáceis e deliciosas. 

Entrevista com Janice Qian Wang, pesquisadora da Oxford University

Como exatamente a música interfere no paladar?  Ela pode mudar os sabores que você percebe na comida, por exemplo, criando uma expectativa de quanto do doce, apimentado, salgado ou azedo você vai sentir num prato. Isso acontece da mesma forma que ouvir o bife crispando na panela ou o champanhe borbulhando “antecipa” um sabor. O som também pode direcionar sua atenção a determinados sabores – diante de um vinho, por exemplo, levar você a focar no tanino ou na fruta. Como se chegou a essa conclusão? Houve muitos estudos em Oxford e pelo mundo. A técnica mais comum é medir a intensidade da percepção de sabores em escalas e calcular como esses índices mudam conforme a música, durante os testes, com trilhas feitas sob medida. Num estudo recente, as pessoas tinham que segurar vinho na boca por 30 segundos e ir registrando a intensidade do sabor sentido. Tocamos dois tipos de música diferentes, nos primeiros 15 segundos, a música estimulava a percepção do doce, e nos 15 segundos seguintes, estimulavam o azedo. Comprovamos que conforme a música mudava as pessoas mudavam a nota de doçura que sentiam. 

Poderia dar exemplos de como os sons estimulam sabores? Pesquiso principalmente como as pessoas associam diferentes atributos sonoros a diferentes sabores. Por exemplo, constatamos que a picância é associada à alta batida, tempo rápido e alta distorção (guitarra elétrica). Então, criamos uma trilha com esses atributos e tocamos enquanto as pessoas comiam. O resultado foi que isso o aumentou não apenas a expectativa mas também a percepção da picância nos pratos. Durante outro estudo conseguimos associar a doçura à batida alta e às harmonias consoantes, e o amargor às batidas baixas e mais lentas da música. 

Qual o maior pecado de trilha sonora em um restaurante? Barulho alto que impede de ouvir a música e de conversar. 

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