O Rio de Janeiro nunca foi tão gastronômico. Os botequins e a culinária de raízes portuguesas continuam ótimos, mas o momento carioca é da alta cozinha. Coisa que não se via com tanta intensidade desde a reviravolta provocada pela chegada à cidade de Claude Troisgros e Laurent Suaudeau – os franceses que, há 35 anos, começaram a combinar técnicas clássicas e produtos locais e acabaram mudando para sempre a gastronomia brasileira.
A cena atual é dominada por quatro jovens chefs cariocas, que praticam cozinha de autor e de produto, apoiados em sólidas bases técnicas: Rafael Costa e Silva, do recém-inaugurado Lasai; Pedro de Artagão, do Irajá; Thomas Troisgros, do Olympe; e Felipe Bronze, do Oro.
Rafael Costa e Silva. FOTOS: Leonardo Wen/Estadão
São todos formados: Rafael, Thomas e Felipe cursaram o Culinary Institute of America, nos Estados Unidos, e trabalharam em restaurantes premiados no exterior; Pedro estudou hotelaria no Rio, e como chef é autodidata. Compartilham fornecedores, dividem produtos, defendem as práticas sustentáveis (cultivos orgânicos, pesca de arpão e linha).
São amigos, almoçam juntos com frequência – para ontem mesmo estava marcado encontro no restaurante de Roberta Sudbrack. O local não foi escolhido por acaso: Roberta, assim como Claude Troisgros, tem papel inspirador na formação desse grupo. Ele, com a mistura de criatividade e técnica, ela com a capacidade de extrair o máximo dos ingredientes simples.
Thomas Troisgros
Rafael é o locavore da turma, chega a cultivar os próprios ingredientes. Pedro prepara pratos contemporâneos com tempero caseiro. Thomas, que vive a dor e a delícia de ser integrante de um célebre clã de chefs da França, está fazendo uma cozinha cada vez mais carioca a partir das bases francesas; e Felipe, que apareceu primeiro abusando das técnicas de vanguarda, amadureceu mantendo a essência: faz cozinha contemporânea com ingredientes nacionais. E ganhou vários prêmios.
“Quem vem ao Rio tem de conhecer o trabalho do Pedro, no Irajá, o do Rafael, ver o que o Thomas está fazendo no Olympe”, diz Roberta Sudbrack.
Roberta Sudbrack
“O Rio sempre teve sinergia criativa, isso não é novidade, a diferença agora é que a fase de buscar a nova cozinha brasileira já passou, esse grupo de jovens chefs está preocupado é com a técnica, com fornecedores e, principalmente, com a ênfase nos produtos brasileiros”, resume Claude Troisgros.
Na trilha de cozinheiros que vieram de fora, Troisgros e Laurent, seguidos por Roberta Sudbrack e Rolland Villard alguns anos mais tarde, essa terceira geração de chefs – nativos – mostra-se cada vez mais consistente. E o público retribui, ocupando as mesas com apetite e vontade de ser surpreendido. Quem tem mania de dizer que a alta gastronomia não vinga no Rio que trate de repensar.
Conheça abaixo os restaurantes e os chefs que compõem a onda gastronômica carioca:
LASAI
Aberto há pouco mais de dois meses, depois de uma reforma que deixou no lugar só parte do telhado e a fachada tombada do imóvel de 1920 em Botafogo, o Lasai é o mais novo restaurante gastronômico do Rio e ao mesmo tempo o mais ousado.
A valentia do chef não está em invencionices ou nas técnicas que dão origem aos pratos, embora a diminuta cozinha com parede de vidro esteja equipada com tudo a que tem direito uma casa de vanguarda. Está na proposta: 70% dos pratos são vegetais, boa parte deles cultivados em hortas próprias.
A paixão por legumes e verduras, o cultivo de ingredientes e o manuseio mínimo dos produtos são lições que o chef trouxe do Mugaritz, o restaurante de Andoni Aduriz, no País Basco espanhol, 6º lugar no ranking da Restaurant. Ele entrou ali como estagiário e deixou a casa depois de cinco anos, já como o chef executivo.
As heranças do Mugaritz no Lasai são fartas – da parede de acrílico que traz o menu do dia à proporção entre cozinheiros e comensais (são 17 na cozinha para 44 clientes), incluindo a calma do ambiente (lasai significa tranquilidade em basco). Mas Rafael teve tempo de voltar a ser brasileiro durante o ano que reformou o imóvel. Redescobriu o cará, o inhame e construiu uma rede de fornecedores – as vieiras e o beijupirá são do Kazuo, em Angra; atum e pargo chegam de Santa Catarina; porco, javali e faisão, do Cerrado Carnes, em São Paulo.
Você não precisa prestar atenção em nada disso (e eis aí uma vantagem em relação ao Mugaritz). É só pedir o menu Não me Conte Histórias – entrada, prato e sobremesa a sua escolha, que sai por R$ 155. Mas se estiver com mais apetite, vale também optar pela degustação completa, com 14 serviços. É uma sucessão fantástica de pratos nada óbvios, impecáveis nos pontos de cocção e sabores. Custa R$ 215, e vem à mesa em porções menores.
Rafael Costa e Silva. Formado no Culinary Institute of America, em 2004 (onde conheceu a mulher, Malena, hostess do Lasai), Rafael trabalhou nos Estados Unidos até 2007. Passou pelo extinto Vong, de Jean Georges Vongerichten, e pelo Bistrô René Pujol. Dali foi para o Mugaritz, na Espanha, onde entrou como estagiário e saiu chef executivo, cinco anos depois. O Lasai, aberto há dois meses e meio, é seu primeiro restaurante.
Onde. R. Conde de Irajá, 191, Botafogo, RJ, (21) 3449-1834
IRAJÁ
Quase vizinho do Lasai, o Irajá também está instalado numa casa tombada e tem ambiente simpaticíssimo. O chef Pedro de Artagão oferece um cardápio à la carte fixo, feito com criatividade e toques gastronômicos. Mas o que interessa mesmo ali são os menus que variam.
Tartar de wagyu com folha de capuchinha e calda de vôngole
Há duas opções. O menu Momento+Produtos=Experiência Irajá é composto de sugestões que mudam conforme os produtos frescos do dia e podem incluir releitura de picadinho ou um hambúrguer (com queijo minas padrão e compota de bacon) que faz você salivar mesmo depois de já ter provado oito pratos. E o omakasê, o menu-degustação, uma sucessão de pequenas porções que também mudam frequentemente.
As criações são instigantes e de sabores complexos, como a vieira fresca servida com uvas e caldo de algas e dashi; o beijupirá cortado feito sashimi e servido com caqui e leche de tigre; e o churrasco de acém com batata-doce. Antes da sobremesa, vem à mesa um shot de soda caseira com tangerina para limpar o paladar.
É alta cozinha, servida em clima descontraído, sem esnobismo. Lugar divertido, decorado com bom gosto e ar moderno. Menu Experiência Irajá (entrada, prato e sobremesa do cardápio, R$ 110); Passeio Irajá (3 entradas, 3 principais e sobremesa, R$ 190); e Omakasê (de 10 a 15 pratos, R$ 260).
Pedro de Artagão. Formado em hotelaria e com pós-graduação em hotelaria de luxo, Pedro é um chef autodidata. Leu, pesquisou, observou e foi desenvolvendo seu estilo, que combina a releitura de clássicos com ousadia. Antes de abrir o Irajá foi chef do Laguiole, por cinco anos.
Onde. R. Conde de Irajá, 109, Botafogo, RJ, (21) 2246-1395
OLYMPE
Não deve ser fácil ser filho de Claude Troisgros, neto de Pierre e virar cozinheiro. Thomas diz que foi parar na cozinha quase por inércia: não sabia o que queria e foi estudar no Culinary Institute of America. Na mesma turma estava Rafael Costa e Silva, vem daí a amizade. Fez estágios no exterior (a estadia com a família em Roanne foi rápida, durou só uma semana e ele logo escapou da rigidez francesa). Trabalhou com Daniel Boulud em Nova York e pensava ficar por ali, até que o pai foi buscá-lo. Claude estava abrindo o Boteco 66 e queria o filho na cozinha.
Voltou, mas diz que só pegou mesmo gosto pela profissão há dois ou três anos. “O clique deu quando as pessoas começaram a aceitar minhas criações e fui deixando de ser só o filho do Claude”, diz. Nos últimos tempos, Thomas se empolgou, fez viagens, garimpou produtos, esteve na Amazônia, descobriu embutidos artesanais em Curitiba. Os resultados podem ser saboreados no menu criatividade do Olympe. “Tudo que faço passa pela curadoria do meu pai. E, nos pratos dele me encarrego do visual”, diz Thomas.
O Olympe tem dois menus. O especialidade traz os clássicos de Claude – das vieiras grelhadas com doce de leite e curry ao foie gras com pera e vinho tinto. O criatividade apresenta as novidades. Na atual temporada inclui um espetacular nhoque de batata-roxa (feito sem farinha e sem ovos) servido com mandiopã de bacalhau, queijo canastra e tapenade; leitão confit com maçã cozida em sous-vide, servido com farofa de panco, cacau e caju; batata baroa relada com carne seca e rapadura. Pratos tecnicamente impecáveis e com muito sabor. Menu-degustação com 7 pratos (R$ 300 ou 390, com vinho).
Thomas Troisgros. Filho de Claude e neto de Pierre, tem 36 anos. Trabalhou com Daniel Boulud em Nova York, passou uma temporada no Mugaritz e fez estágio no Arzak, ambos no país basco espanhol. Cria os pratos do Olympe – sob a curadoria do pai – e cuida da apresentação visual dos pratos do restaurante C.T.
Onde. R. Custódia Serrão, 62, Lagoa, RJ, (21) 2539-4542
ORO
Quem vai ao Oro pode escolher três tamanhos de menu-degustação: 5, 7 e 9 pratos. A ideia original era que os clientes pedissem várias porções à la carte, mas não deu certo, conta o chef. “Eles pediam uma ou duas pequenas porções, saiam com fome e reclamando.” O jeito foi fixar a degustação.
A cozinha do Oro é moderna, criativa e ousada – logo na chegada o cliente recebe um minissorvete de ostra cremoso com uma saúva no topo. Mais maduro e apoiado em equipamentos da vanguarda, thermomix, thermocirculador, nitrogênio líquido, Bronze faz uma versão de pururuca com a pele desidratada do porco; mistura açaí, foie gras e beijupirá; serve cavaquinha na manteiga de garrafa com purê de pistache e farinha de coco; black cod com missô e rapadura. Não é comida para leigos. É para quem gosta de ousar.Menu-degustação de 5 pratos (R$ 180), 7 pratos (R$ 230) e 9 pratos (R$ 295).
Felipe Bronze. Ele tem 36 anos, trabalha como chef de cozinha desde os 24 e ganhou diversos prêmios no Rio. Passou pelo Sushi Leblon, pelo Zuka, pelos hotéis Marina e abriu o Oro, com sócios, em outubro de 2010. Tem um quadro no Fantástico, na TV Globo.
Onde. R. Frei Leandro, 20, Jd. Botânico, RJ, (21) 2226-4586
Bouillon com marrracujá
Quem começou a história da alta gastronomia no Brasil foram dois chefs franceses, Claude Troisgros e Laurent Suaudeau. Eles desembarcaram no Rio em 1979 e mudaram a cozinha brasileira de uma vez por todas. Claude Troisgros, filho de Pierre e sobrinho de Jean – dois célebres protagonistas da Nouvelle Cuisine – aceitou um convite de Gastón Lenôtre e saiu de Roanne para comandar o Le Pre-Catelan, o restaurante do Hotel Intercontinental. Laurent Suaudeau foi enviado por Paul Bocuse ao Saint-Honoré, extinto restaurante do Hotel Meridien (cinco anos depois o mestre ofereceu Nova York a Laurent, mas ele estava abrindo seu restaurante no Rio e quem pegou a vaga nos EUA foi Daniel Boulud).
Os franceses trouxeram as bases da cozinha clássica e com elas deram nova vida aos sabores nacionais. Caju, aipim, jaca, maracujá… Laurent fez o creme de mandioquinha com caviar, Claude, seu cherne com banana caramelizada. E foi assim que os brasileiros conheceram a alta gastronomia feita em solo nacional. Depois deles vieram Rolland Villard, Roberta Sudbrack, os pâtissiers Felipe Brye e Dominique Guérand, os maiores expoentes da segunda geração. E se incluam na cena, também, o Cipriani, e o Fasano Al Mare, com sua alta cozinha italiana.
Era uma vez um atum…
O peixe tinha 100 kg, foi pescado em Recife e seria exportado para o Japão. Mas veio parar no Rio…
Thomas Troisgros fez um tartare e serviu com beterraba, foie gras e aipim crocante:
No primeiro dia, Rafael Costa e Silva serviu a ventresca fresca em chips de batata-doce (dei sorte, estava maravilhosa). Depois, selou o peixe e fez com milho doce, caldo de espiga de milho tostada e coentro:
Pedro de Artagão comprou umpedaço grande e curou a seco por dois meses. Serviu com foie gras e migalha de pão frita: