Tudo aconteceu há pouco mais de uma semana. Rodrigo Oliveira, dono do restaurante Mocotó, o chef decidiu usar seu alcance nas redes sociais para responder a uma cliente que reclamou da localização da casa, na zona norte de São Paulo. Ela, moradora do Tatuapé na zona leste, disse que a Vila Medeiros era uma região “perigosa e precária” e que ela e seus amigos “ficaram com medo” quando foram na casa.
"Justamente por existir gente que ainda pensa como você que continuamos morando e empreendendo na Vila Medeiros", respondeu Rodrigo. "Assim, quem sabe um dia nosso bairro vai estar (ainda mais!) cheio de negócios de sucesso e de oportunidades pras pessoas que vivem aqui."
“Foi uma reação de incredulidade. Pensei que não era possível que essa pessoa estivesse falando isso de verdade. Achei que tinha perdido algo de ironia. Mas depois eu desabei, fiquei muito mal”, explica Rodrigo. “É a banalização do preconceito, da ignorância. Como alguém se sente tão confortável em diminuir uma comunidade inteira e nem se dá conta disso? Reclama com a mesma naturalidade que fala que uma carne está salgada. Mas isso mostrou como as quebradas têm orgulho da consciência do seu valor”.
O episódio despertou nossa curiosidade: como estaria a cena gastronômica da região? O Paladar resolveu então voltar à Vila Medeiros, inspirado por uma reportagem de 2012 sobre restaurantes e botecos de destaque do bairro. Na última terça-feira, 28, saímos pelo bairro na companhia de Seu Vanderlei Prudêncio, motorista do Estadão, que contou algo importante: ele frequentava a região na época em que o pai de Rodrigo ainda era o responsável pelo Mocotó.
“Naquela época, eles tinham um balcão torto e um cardápio que oferecia mocotó e torresmo. Tinha também a parede cheia de pinga. Mais nada”, disse o motorista. “Ficava uma fila enorme de perueiros e motoristas de ônibus que paravam ali na porta para comer. Eles comiam bem, bebiam e assim fizeram o nome do restaurante”.
Início da caminhada
Descendo do carro, e deixando Seu Vanderlei com suas memórias da região, tudo começa pelo Mocotó. Localizado na movimentada Avenida Nossa Senhora do Loreto, 1.100, o restaurante comandado pelo chef Rodrigo Oliveira abriu as portas na década de 1970 como uma casa do norte, apostando nesse cardápio lembrado pelo motorista. Foi só décadas depois que Rodrigo, inspirado pela família, assumiu o controle do ponto.
Hoje, o restaurante virou referência, foi repaginado e o cardápio, ampliado. Ainda estão ali o clássico torresmo (R$ 16,90) e o caldo de mocotó (a partir de R$ 19,90) - este último, preparado da mesma forma há 50 anos, desde a abertura da casa. Outras pedidas são a moqueca sertaneja (R$ 69,90), carne-seca e carne-de-sol feita com diferentes preparos, rabada (R$ 79,90) e espetinho de coração de boi (R$ 24,90).
“A Vila Medeiros ter bons restaurantes certamente enriquece a vida de quem mora aqui, mas enriquece a cidade toda. São Paulo é colossal. E ter equilíbrio e diversidade, seja na natureza ou social e culturalmente falando, é muito importante”, comenta Rodrigo, quando questionado sobre como vê a Vila Medeiros hoje. “Acredito que tem espaço para muito mais. A gente pode fazer florescer muitos outros negócios bem sucedidos de alimentação.”
Gastronomia do Norte e Nordeste
Saindo dali, e virando logo à direita na Avenida Gustavo Adolfo, está a Galinhada do Dema. O ponto está aberto ali, no número 2.053, desde a segunda metade da década de 1980, mas passou a ter esse nome há dois anos, quando Rubens Lourenço e sua família saíram do Canindé e assumiram a casa. O local, simples, limpo e organizado, parece até saído das lembranças do Seu Vanderlei: um balcão, poucas mesas e uma parede cheia de pingas.
“Já moro há 20 anos aqui na Vila Medeiros. A região é muito boa, tem muito restaurante legal”, diz o proprietário, enquanto a reportagem saboreia uma deliciosa galinhada. O sistema funciona assim: paga-se pelo tipo da proteína (galinha, R$ 39; carneiro, R$ 46; e carne de sol, R$ 46). Depois, pode se servir à vontade, em panelas de alumínio no fundo do restaurante, de baião de dois, feijão tropeiro, quiabo, maxixe, jerimum e outras delícias.
Na boca, não escapa o gosto de coentro, relembrando as raízes daquele espaço, com Seu Rubens também fazendo questão de exaltar a importância daquela região - e diminuir, para apenas um grunhido, o comentário da cliente do Mocotó à irrelevância. “É uma pessoa que quis desmerecer o bairro, mas acho que não conseguiu”, diz. “Moro há tanto tempo aqui e nunca vi nada de errado”.
Para quem quer continuar na gastronomia do Norte e Nordeste, outra pedida é voltar para a Avenida Nossa Senhora do Loreto e caminharalguns quarteirões até a Paróquia Nossa Senhora de Loreto. Ali, é só dobrar a esquina, na Rua Geolândia, para encontrar o Buchada's Bar. Simples, com mesas postas na calçada e uma boa quantidade de bebidas, o local serve o que, para muitos, é a melhor buchada de bode da zona norte de São Paulo.
“Eu sou o dono, mas é meu filho que comanda. Sai muita buchada, baião de dois. Também temos pratos normais, como costela”, conta seu Antônio Vicente, orgulhoso da continuidade do lugar, em um sistema que lembra a história do Mocotó. “Moro em Guarulhos, mas estou há muito tempo aqui já. E a região aqui é muito tranquila”, conta ele.
Infelizmente, outros bons restaurantes, visitados pela reportagem há dez anos, fecharam as portas: o Acarajé da Inês, na Nossa Senhora do Loreto, se transformou em estacionamento. O Bar do Giba hoje é um brechó e o Recanto do Mocotó virou mecânica, mas também fechou. O ponto está pra alugar.
Pastel e bolo
Para um lanchinho depois do almoço, duas opções se destacam por ali. A primeira, um pouco fora de mão para quem quer ficar apenas na Avenida Nossa Senhora do Loreto, é o Empório Casa da Vó. A casa de bolos fica na Rua João de Souto Maior, 658. Uma via tranquila e serena, apesar da ladeira que margeia o imóvel e dá calafrios enquanto, entre uma colherada e outra do bolo, lembramos de subir ali a pé.
O destaque é o bolo de pote, a R$ 11. O de chocolate com morango é de comer rezando. Outro muito elogiado é o de abacaxi com merengue suíço. “É um projeto familiar. Estamos aqui só há um ano. A gente preza pelo sabor da infância, com bolos caseiros, sem conservantes”, explica. “A gente fica um pouco prejudicado por estar fora da avenida. Queremos, no futuro, abrir outro ponto, talvez em outro bairro. Mas vamos manter esse ponto aqui em definitivo. Não vamos fechar essa nossa porta da Vila Medeiros”.
Se não quiser sobremesa, sem problemas: bem de frente à igreja, perto do Buchada’s Bar, está o Pastel da Sueli. Número 917, o local abre às 17h e se torna um ponto de encontro: antes mesmo de abrir, forma-se uma fila na porta de dobrar a esquina. Quando a reportagem visitou a pastelaria, deu para contar cerca de vinte pessoas aguardando, ansiosas, um pastel que vale por dois. Afinal, não só são bem maiores do aqueles encontrados na feira, como têm mais recheio. Saem por R$ 12 - a casa só aceita pagamento em dinheiro.
Por conta da correria para atender a fila, Sueli não pôde falar com a reportagem - ali, o negócio é pegar, pagar e sair. Mas a fila dizia por si só. Um rapaz, no primeiro lugar da fila, fazia um vídeo para suas redes sociais: “Esse é o lugar perigoso que tanto falam, né? Olha o que eu encontrei de perigoso aqui”, disse ele, enquanto apontava a câmera de seu celular para o pastel, para Dona Sueli e para um amigo do lado.
Depois disso, saímos dali com a rua ainda movimentada. Bares estavam cheios, Seu Rubens ainda estava de portas abertas, mesmo no fim da tarde. Dentro do Mocotó, mais movimento. Agora não era Seu Vanderlei que vinha buscar. Mas, enquanto esperava um outro carro, parado no poste do outro lado da avenida do Mocotó, um senhor se aproximou. Seu Anselmo. Perguntou se eu ia ao restaurante. Quando soube do motivo da visita, abriu um sorriso e começou a falar o que tinha de bom por ali. “Vila Medeiros não é bagunça, não. É comida boa”, sentenciou.