Aventuras lácteas entre o Brasil e a França

Opinião|A ressurreição de 266 kg de queijos artesanais paulistas enterrados vivos


Secretaria de Agricultura de São Paulo afastou o fiscal e emitiu nota se retratando, decisão inédita no movimento do queijo artesanal brasileiro

Por Débora Pereira

O movimento do queijo artesanal brasileiro passou das lágrimas ao gozo nos últimos cinco dias. Tudo começou na sexta-feira, dia 17 de março, com a apreensão de todos os queijos da Mulekinha, queijaria do casal Luzita e Airton Camargo. Eles são autores de uma gama de produtos inspirados na tradição espanhola em Ibiúna-SP.

Gama de queijos da Mulekinha, todos foram para o lixo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

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A atuação do fiscal foi truculenta, violenta, sem nenhuma sensibilidade de orientação pedagógica, só de punição. No final de semana, produtores do Brasil inteiro protestaram nas redes marcando o governador Tarcísio. O áudio de Luzita, em prantos, reverberou. Roberta Sudbrack, chef de cozinha também vítima de apreensão de queijos no Rio de Janeiro em 2017, divulgou no seu instagram e outros chefs aderiram assim como outras associações de produtores.

Luzita virando queijo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Ontem, segunda-feira, a Secretaria de Agricultura disse que o fiscal foi afastado, uma decisão pioneira no Brasil em se tratando de queijo artesanal. Também deram o documento de certificação do SISP, que a Mulekinha esperava há 4 anos. Prometeram até a possibilidade de ressarcir os queijos ao final do processo administrativo (ver nota na íntegra abaixo). A decisão aconteceu no gabinete do secretário de Agricultura, Antonio Julio Junqueira de Queiroz, em uma reunião que durou horas com a presença de produtores, fiscais e políticos. A decisão levou a comunidade do queijo ao êxtase.

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No começo de março, a revista Profissão Queijeira fez uma reportagem sobre a tentativa de humanização da fiscalização de queijos pelo Estado de São Paulo. O grande desafio para 2023, segundo o diretor do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Cipoa) de São Paulo Bruno Bergamo " é estreitar ainda mais os laços com os pequenos produtores artesanais e conscientizar da necessidade de regularização das agroindústrias, com foco no Selo Arte. O estado de São Paulo também está buscando aumentar o número de fiscais para acelerar os processos de registros e dar suporte técnico aos pequenos produtores," disse ele.

Mofos naturais nos queijos artesanais da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

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A ideia é motivar produtores clandestinos a buscarem a formalidade e assim acompanhar a onda de sucesso dos queijos autorais paulistas. A lei paulista de queijos artesanais, assinada em novembro de 2021 e regulamentada pelo SISP em fevereiro de 2022, um tempo recorde, certificou 4 produtores em um ano e outros 5 estão em processo de certificação. Um número bem baixo comparado a pelo menos mil produtores clandestinos estimados por Christophe Faraud, presidente da Associação Paulista de Queijo Artesanal-APQA. A lei prevê participação popular e treinamento específico para fiscais que controlam os artesanais. o que ainda não deu tempo de acontecer...

Requintes de crueldade

150 kg de queijo maturado, 100 kg de queijo meia cura, 10 kg de queijo minas frescal, 6,5 kilos de queijo Minas padrão, 7 kg de doce de leite. Tudo foi colocado pelos fiscais em uma caminhonete suja, sem nenhuma proteção, para ser jogado no lixão. Com requintes de crueldade: creolina em cima dos queijos para que os miseráveis que se alimentam no lixão não possam provar nenhuma fatia.

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Queijo araucária é uma massa prensada não cozida, meia cura ou curada Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

O casal esperava há meses a visita de vistoria final da queijeira para certificação e foi surpreendido ao saber que a vinda dos fiscais não era para dar a certificação, sim para apreender os queijos. " Nós fizemos a nossa queijaria da forma mais completa possível. Temos dois tanques resfriadores, aparelho de cortina de ar para não entrar mosca, mola nas portas para sempre ficarem fechadas, barreira sanitária para lavagem de botas e mãos, toda a tubulação que leva o leite é inoxidável, temos um tambor de1 90kg de gás para garantir água quente sempre que precisar, sala de embalagem primária e secundária, sala de lavagem de formas, tanques, prensa pneumática, batedeira de manteiga, piso específico para laticínio na queijaria inteira, câmaras frias revestidas e climatizadas, pé direito de 3,5 m de altura... Toda a fabricação pode ser assistida por uma grande janela de vidro, para que todos possam ver nosso capricho, aqui não tem nada escondido". Um produtor artesanal com toda essa estrutura e equipamentos é raro.

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Sala de cura da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"Ficamos surpresos com a forma que o fiscal no tratou, nos olhos dele vimos a alegria de nos humilhar, a intransigência, o ódio, o prazer de usar o poder de forma violenta," disse Luzita. A produtora fala do funcionário público concursado Ricardo Souza Costa Barão de Aguiar, chefe da inspeção de Sorocaba e mais 19 municípios em torno. Ele fez a visita acompanhado da fiscal Camila de Abreu Gir e da nutricionista da vigilância sanitária Gabriela Pontes. "Ele entrou na nossa queijaria bagunçando tudo, jogou caixas no chão, mudou coisas de lugar, depois fez fotos, como se já tivesse encontrado o local bagunçado," detalha Luzita, que tem câmeras de vigilância instaladas.

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A equipe de fiscalização alegou ter ido ao local por uma denúncia que, segundo a nota de retratação da secretaria, "foi maliciosa e totalmente desarrazoada". A queijaria investiu mais de R$300.000 na estrutura, inclusive para a certificação do rebanho livre de tuberculose e brucelose, e tinha conseguido a aprovação prévia do Cipoa dia 9 de março, uma semana antes da apreensão.

O montanha, de formato cônico, é defumado depois de curado, se inspira no formato do queijo espanhol tetilla Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Fiscais mudando de paradigma

O ser superior "fiscal", na cabeça dos produtores de queijo, tem sido pintado nas últimas décadas como um monstro insensível e burocrata. Não são poucos os relatos de arbitrariedades e essa imagem construída socialmente é a pior propaganda para os sistemas de inspeção, que raramente são procurados pelos produtores de queijo para certificação. Tem um caso dramático antigo de um fiscal que atuava em São Roque de Minas-MG, que até já morreu. Um dia ele falou para um produtor que ele, o produtor, estava mentindo. Sentindo-se muito ofendido de ser chamado de mentiroso, ele juntou outros produtores e deram uma surra no fiscal, que acabou indo embora da cidade. A fofoca dava conta que ele era ruim com os produtores porque era traído pela mulher e infeliz no casamento. Mas, qual será o motivo que levou o fiscal a agir na apreensão da Mulekinha?

Geralmente os fiscais de queijo tem formação de veterinário, ou outras competências rurais, e seu sonho é passar em um concurso para ter estabilidade a vida inteira. Depois de virar servidor público, a chance de evoluir não é lá essas coisas e o sujeito se acomoda nos vai-e-vens da burocracia. Fora as frustrações por falta de estrutura e condições de trabalho. Não deve ser uma atividade muito apaixonante. Se o Brasil tivesse a produção de queijo toda concentrada em poucas indústrias, eles teriam muito menos trabalho para executar do que ter que visitar e estudar os processos de certificação de milhares de pequenos produtores. O gargalo dos fluxos emperra. Se todos os produtores clandestinos brasileiros decidissem hoje se inscrever nas certificações estaduais o sistema entra em pane. Por isso os Serviços de Inspeção Municipal são mais eficientes, mas até hoje nenhum selo arte foi dado por um SIM no Brasil.

"Toda a cadeia ganhou, não só a Mulekinha!! Mas vamos nos preparar e arrumar a casa porque os fiscais estão em pé de guerra... A mudança real é profunda não acontecerá do dia pra noite, vai levar tempo," disse uma produtora, que não quer ser identificada por medo de retaliação. "Aqui já temos uma reunião de serviço com nossa equipe hoje para começar a aparar as arestas... e deixar a casa em ordem, pois eles vão querer vir pra cima," disse um outro, desconfiado.

Ferradura, em homenagem à rota turística do mesmo nome em Ibiúna-SP Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"É no psicológico do fiscal que está o problema, e não na lei" disse um terceiro produtor . "Nenhuma lei é específica o suficiente para que não haja desvio de interpretação por quem ler o texto. O fiscal faz a sua e exerce o pequeno poder. Longe de querer questionar a segurança dos alimentos, o ponto para o qual devemos nos concentrar é a incompetência da fiscalização, que tem um prazer maquiavélico de interpretar a lei sob o argumento de que está seguindo a mesma à risca".

Esses produtores estão agora se articulando internamente para identificar quem são os fiscais mais legais e mais sensíveis à causa, e também os não tão legais, não com o objetivo de punir os malvados com chicotada em praça pública, mas de ser sensível aos seus problemas e entender porque agem de forma arbitrária. "Quando a euforia passar, espero que dure bastante, será preciso muita atenção e sabedoria pois estamos apenas começando a construir uma nova relação com os órgãos fiscalizadores. Mas como a mentalidade punitiva tem profundas raízes históricas (e consequentemente psicológicas) a jornada será longa e constante. Ficou claro que essa grande vitória pontual só foi possível por causa da existência e da atuação cirúrgica da associação APQA,", disse um outro produtor.

Queijo rouillé, que em francês significa "enferrujado", é a receita inspirada no queijo francês morbier Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

Existem ótimos fiscais também, que são verdadeiros colegas e até amigos de produtores. "Temos que pensar que os fiscais também fazem parte da cadeia do queijo artesanal, precisamos navegar na mesma direção, não pode ser apenas punição, principalmente para nós pequenos. Espero que de agora para a frente tudo mude para melhor" espera um queijeiro. "Por outro lado, nos preocupamos com novos fiscais que estão entrando, como é o caso da Camila que acompanhou a fiscalização truculenta do Ricardo. Ela está infelizmente ao lado de um péssimo exemplo e com isso vai aprendendo a atuar dessa maneira, a não ser que ela tenha uma outra visão e gestão de fiscalizar. Mas com o final da história acho que ela viu o que não pode ser feito em uma fiscalização," concluiu outro produtor.

Luzita saiu da reunião de retratação da secretaria de Agricultura aliviada. "Estamos muito alegres, muito felizes. Mais que receber meu tão sonhado SISP, conseguimos a promessa que a inspeção para artesanal vai ser melhor treinada. Formaremos uma equipe para ajudar, foi uma vitória tríplice. Parece ainda que vivi um pesadelo e depois um sonho aconteceu, agradeço a todos os que ajudaram, especialmente a APQA".

Ferradura e rouillé Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Nota de resposta

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo comunica que, no episódio da apreensão dos queijos da Cabanha Mulekinha, há fortes indícios de que a atuação do fiscal da Coordenadoria de Defesa Agropecuária contrariou frontalmente a legislação vigente. A pasta imediatamente instaurou procedimento para apuração do ocorrido. Em decorrência da gravidade do ato praticado, foi determinado o afastamento do profissional, que permanecerá realizando trabalhos internos até o encerramento do processo de apuração.

A análise feita no pedido de registro no Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisp) resultou na sua aprovação, o que corrobora a suspeita de atuação irregular do fiscal. A denúncia anônima que motivou todo esse transtorno se mostrou maliciosa e totalmente desarrazoada.

A atuação do fiscal contrariou a orientação da atual gestão de sempre orientar os produtores sobre as exigências da legislação, antes de qualquer medida punitiva. De acordo com o secretário Antonio Julio Junqueira, após a finalização da apuração, caso fique comprovado que a Secretaria de Agricultura cometeu um erro, haverá o ressarcimento do prejuízo causado à agroindústria.

Esse episódio evidenciou a necessidade de maior orientação, reciclagem e treinamento de todos os profissionais que atuam na fiscalização. A secretaria também se propôs a entrar em contato com a equipe que realiza a fiscalização de produtos artesanais da França para fazer um intercâmbio e ampliar o background dos agentes de fiscalização sanitária do estado de São Paulo.

 

O movimento do queijo artesanal brasileiro passou das lágrimas ao gozo nos últimos cinco dias. Tudo começou na sexta-feira, dia 17 de março, com a apreensão de todos os queijos da Mulekinha, queijaria do casal Luzita e Airton Camargo. Eles são autores de uma gama de produtos inspirados na tradição espanhola em Ibiúna-SP.

Gama de queijos da Mulekinha, todos foram para o lixo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A atuação do fiscal foi truculenta, violenta, sem nenhuma sensibilidade de orientação pedagógica, só de punição. No final de semana, produtores do Brasil inteiro protestaram nas redes marcando o governador Tarcísio. O áudio de Luzita, em prantos, reverberou. Roberta Sudbrack, chef de cozinha também vítima de apreensão de queijos no Rio de Janeiro em 2017, divulgou no seu instagram e outros chefs aderiram assim como outras associações de produtores.

Luzita virando queijo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Ontem, segunda-feira, a Secretaria de Agricultura disse que o fiscal foi afastado, uma decisão pioneira no Brasil em se tratando de queijo artesanal. Também deram o documento de certificação do SISP, que a Mulekinha esperava há 4 anos. Prometeram até a possibilidade de ressarcir os queijos ao final do processo administrativo (ver nota na íntegra abaixo). A decisão aconteceu no gabinete do secretário de Agricultura, Antonio Julio Junqueira de Queiroz, em uma reunião que durou horas com a presença de produtores, fiscais e políticos. A decisão levou a comunidade do queijo ao êxtase.

No começo de março, a revista Profissão Queijeira fez uma reportagem sobre a tentativa de humanização da fiscalização de queijos pelo Estado de São Paulo. O grande desafio para 2023, segundo o diretor do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Cipoa) de São Paulo Bruno Bergamo " é estreitar ainda mais os laços com os pequenos produtores artesanais e conscientizar da necessidade de regularização das agroindústrias, com foco no Selo Arte. O estado de São Paulo também está buscando aumentar o número de fiscais para acelerar os processos de registros e dar suporte técnico aos pequenos produtores," disse ele.

Mofos naturais nos queijos artesanais da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A ideia é motivar produtores clandestinos a buscarem a formalidade e assim acompanhar a onda de sucesso dos queijos autorais paulistas. A lei paulista de queijos artesanais, assinada em novembro de 2021 e regulamentada pelo SISP em fevereiro de 2022, um tempo recorde, certificou 4 produtores em um ano e outros 5 estão em processo de certificação. Um número bem baixo comparado a pelo menos mil produtores clandestinos estimados por Christophe Faraud, presidente da Associação Paulista de Queijo Artesanal-APQA. A lei prevê participação popular e treinamento específico para fiscais que controlam os artesanais. o que ainda não deu tempo de acontecer...

Requintes de crueldade

150 kg de queijo maturado, 100 kg de queijo meia cura, 10 kg de queijo minas frescal, 6,5 kilos de queijo Minas padrão, 7 kg de doce de leite. Tudo foi colocado pelos fiscais em uma caminhonete suja, sem nenhuma proteção, para ser jogado no lixão. Com requintes de crueldade: creolina em cima dos queijos para que os miseráveis que se alimentam no lixão não possam provar nenhuma fatia.

Queijo araucária é uma massa prensada não cozida, meia cura ou curada Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

O casal esperava há meses a visita de vistoria final da queijeira para certificação e foi surpreendido ao saber que a vinda dos fiscais não era para dar a certificação, sim para apreender os queijos. " Nós fizemos a nossa queijaria da forma mais completa possível. Temos dois tanques resfriadores, aparelho de cortina de ar para não entrar mosca, mola nas portas para sempre ficarem fechadas, barreira sanitária para lavagem de botas e mãos, toda a tubulação que leva o leite é inoxidável, temos um tambor de1 90kg de gás para garantir água quente sempre que precisar, sala de embalagem primária e secundária, sala de lavagem de formas, tanques, prensa pneumática, batedeira de manteiga, piso específico para laticínio na queijaria inteira, câmaras frias revestidas e climatizadas, pé direito de 3,5 m de altura... Toda a fabricação pode ser assistida por uma grande janela de vidro, para que todos possam ver nosso capricho, aqui não tem nada escondido". Um produtor artesanal com toda essa estrutura e equipamentos é raro.

Sala de cura da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"Ficamos surpresos com a forma que o fiscal no tratou, nos olhos dele vimos a alegria de nos humilhar, a intransigência, o ódio, o prazer de usar o poder de forma violenta," disse Luzita. A produtora fala do funcionário público concursado Ricardo Souza Costa Barão de Aguiar, chefe da inspeção de Sorocaba e mais 19 municípios em torno. Ele fez a visita acompanhado da fiscal Camila de Abreu Gir e da nutricionista da vigilância sanitária Gabriela Pontes. "Ele entrou na nossa queijaria bagunçando tudo, jogou caixas no chão, mudou coisas de lugar, depois fez fotos, como se já tivesse encontrado o local bagunçado," detalha Luzita, que tem câmeras de vigilância instaladas.

A equipe de fiscalização alegou ter ido ao local por uma denúncia que, segundo a nota de retratação da secretaria, "foi maliciosa e totalmente desarrazoada". A queijaria investiu mais de R$300.000 na estrutura, inclusive para a certificação do rebanho livre de tuberculose e brucelose, e tinha conseguido a aprovação prévia do Cipoa dia 9 de março, uma semana antes da apreensão.

O montanha, de formato cônico, é defumado depois de curado, se inspira no formato do queijo espanhol tetilla Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Fiscais mudando de paradigma

O ser superior "fiscal", na cabeça dos produtores de queijo, tem sido pintado nas últimas décadas como um monstro insensível e burocrata. Não são poucos os relatos de arbitrariedades e essa imagem construída socialmente é a pior propaganda para os sistemas de inspeção, que raramente são procurados pelos produtores de queijo para certificação. Tem um caso dramático antigo de um fiscal que atuava em São Roque de Minas-MG, que até já morreu. Um dia ele falou para um produtor que ele, o produtor, estava mentindo. Sentindo-se muito ofendido de ser chamado de mentiroso, ele juntou outros produtores e deram uma surra no fiscal, que acabou indo embora da cidade. A fofoca dava conta que ele era ruim com os produtores porque era traído pela mulher e infeliz no casamento. Mas, qual será o motivo que levou o fiscal a agir na apreensão da Mulekinha?

Geralmente os fiscais de queijo tem formação de veterinário, ou outras competências rurais, e seu sonho é passar em um concurso para ter estabilidade a vida inteira. Depois de virar servidor público, a chance de evoluir não é lá essas coisas e o sujeito se acomoda nos vai-e-vens da burocracia. Fora as frustrações por falta de estrutura e condições de trabalho. Não deve ser uma atividade muito apaixonante. Se o Brasil tivesse a produção de queijo toda concentrada em poucas indústrias, eles teriam muito menos trabalho para executar do que ter que visitar e estudar os processos de certificação de milhares de pequenos produtores. O gargalo dos fluxos emperra. Se todos os produtores clandestinos brasileiros decidissem hoje se inscrever nas certificações estaduais o sistema entra em pane. Por isso os Serviços de Inspeção Municipal são mais eficientes, mas até hoje nenhum selo arte foi dado por um SIM no Brasil.

"Toda a cadeia ganhou, não só a Mulekinha!! Mas vamos nos preparar e arrumar a casa porque os fiscais estão em pé de guerra... A mudança real é profunda não acontecerá do dia pra noite, vai levar tempo," disse uma produtora, que não quer ser identificada por medo de retaliação. "Aqui já temos uma reunião de serviço com nossa equipe hoje para começar a aparar as arestas... e deixar a casa em ordem, pois eles vão querer vir pra cima," disse um outro, desconfiado.

Ferradura, em homenagem à rota turística do mesmo nome em Ibiúna-SP Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"É no psicológico do fiscal que está o problema, e não na lei" disse um terceiro produtor . "Nenhuma lei é específica o suficiente para que não haja desvio de interpretação por quem ler o texto. O fiscal faz a sua e exerce o pequeno poder. Longe de querer questionar a segurança dos alimentos, o ponto para o qual devemos nos concentrar é a incompetência da fiscalização, que tem um prazer maquiavélico de interpretar a lei sob o argumento de que está seguindo a mesma à risca".

Esses produtores estão agora se articulando internamente para identificar quem são os fiscais mais legais e mais sensíveis à causa, e também os não tão legais, não com o objetivo de punir os malvados com chicotada em praça pública, mas de ser sensível aos seus problemas e entender porque agem de forma arbitrária. "Quando a euforia passar, espero que dure bastante, será preciso muita atenção e sabedoria pois estamos apenas começando a construir uma nova relação com os órgãos fiscalizadores. Mas como a mentalidade punitiva tem profundas raízes históricas (e consequentemente psicológicas) a jornada será longa e constante. Ficou claro que essa grande vitória pontual só foi possível por causa da existência e da atuação cirúrgica da associação APQA,", disse um outro produtor.

Queijo rouillé, que em francês significa "enferrujado", é a receita inspirada no queijo francês morbier Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

Existem ótimos fiscais também, que são verdadeiros colegas e até amigos de produtores. "Temos que pensar que os fiscais também fazem parte da cadeia do queijo artesanal, precisamos navegar na mesma direção, não pode ser apenas punição, principalmente para nós pequenos. Espero que de agora para a frente tudo mude para melhor" espera um queijeiro. "Por outro lado, nos preocupamos com novos fiscais que estão entrando, como é o caso da Camila que acompanhou a fiscalização truculenta do Ricardo. Ela está infelizmente ao lado de um péssimo exemplo e com isso vai aprendendo a atuar dessa maneira, a não ser que ela tenha uma outra visão e gestão de fiscalizar. Mas com o final da história acho que ela viu o que não pode ser feito em uma fiscalização," concluiu outro produtor.

Luzita saiu da reunião de retratação da secretaria de Agricultura aliviada. "Estamos muito alegres, muito felizes. Mais que receber meu tão sonhado SISP, conseguimos a promessa que a inspeção para artesanal vai ser melhor treinada. Formaremos uma equipe para ajudar, foi uma vitória tríplice. Parece ainda que vivi um pesadelo e depois um sonho aconteceu, agradeço a todos os que ajudaram, especialmente a APQA".

Ferradura e rouillé Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Nota de resposta

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo comunica que, no episódio da apreensão dos queijos da Cabanha Mulekinha, há fortes indícios de que a atuação do fiscal da Coordenadoria de Defesa Agropecuária contrariou frontalmente a legislação vigente. A pasta imediatamente instaurou procedimento para apuração do ocorrido. Em decorrência da gravidade do ato praticado, foi determinado o afastamento do profissional, que permanecerá realizando trabalhos internos até o encerramento do processo de apuração.

A análise feita no pedido de registro no Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisp) resultou na sua aprovação, o que corrobora a suspeita de atuação irregular do fiscal. A denúncia anônima que motivou todo esse transtorno se mostrou maliciosa e totalmente desarrazoada.

A atuação do fiscal contrariou a orientação da atual gestão de sempre orientar os produtores sobre as exigências da legislação, antes de qualquer medida punitiva. De acordo com o secretário Antonio Julio Junqueira, após a finalização da apuração, caso fique comprovado que a Secretaria de Agricultura cometeu um erro, haverá o ressarcimento do prejuízo causado à agroindústria.

Esse episódio evidenciou a necessidade de maior orientação, reciclagem e treinamento de todos os profissionais que atuam na fiscalização. A secretaria também se propôs a entrar em contato com a equipe que realiza a fiscalização de produtos artesanais da França para fazer um intercâmbio e ampliar o background dos agentes de fiscalização sanitária do estado de São Paulo.

 

O movimento do queijo artesanal brasileiro passou das lágrimas ao gozo nos últimos cinco dias. Tudo começou na sexta-feira, dia 17 de março, com a apreensão de todos os queijos da Mulekinha, queijaria do casal Luzita e Airton Camargo. Eles são autores de uma gama de produtos inspirados na tradição espanhola em Ibiúna-SP.

Gama de queijos da Mulekinha, todos foram para o lixo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A atuação do fiscal foi truculenta, violenta, sem nenhuma sensibilidade de orientação pedagógica, só de punição. No final de semana, produtores do Brasil inteiro protestaram nas redes marcando o governador Tarcísio. O áudio de Luzita, em prantos, reverberou. Roberta Sudbrack, chef de cozinha também vítima de apreensão de queijos no Rio de Janeiro em 2017, divulgou no seu instagram e outros chefs aderiram assim como outras associações de produtores.

Luzita virando queijo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Ontem, segunda-feira, a Secretaria de Agricultura disse que o fiscal foi afastado, uma decisão pioneira no Brasil em se tratando de queijo artesanal. Também deram o documento de certificação do SISP, que a Mulekinha esperava há 4 anos. Prometeram até a possibilidade de ressarcir os queijos ao final do processo administrativo (ver nota na íntegra abaixo). A decisão aconteceu no gabinete do secretário de Agricultura, Antonio Julio Junqueira de Queiroz, em uma reunião que durou horas com a presença de produtores, fiscais e políticos. A decisão levou a comunidade do queijo ao êxtase.

No começo de março, a revista Profissão Queijeira fez uma reportagem sobre a tentativa de humanização da fiscalização de queijos pelo Estado de São Paulo. O grande desafio para 2023, segundo o diretor do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Cipoa) de São Paulo Bruno Bergamo " é estreitar ainda mais os laços com os pequenos produtores artesanais e conscientizar da necessidade de regularização das agroindústrias, com foco no Selo Arte. O estado de São Paulo também está buscando aumentar o número de fiscais para acelerar os processos de registros e dar suporte técnico aos pequenos produtores," disse ele.

Mofos naturais nos queijos artesanais da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A ideia é motivar produtores clandestinos a buscarem a formalidade e assim acompanhar a onda de sucesso dos queijos autorais paulistas. A lei paulista de queijos artesanais, assinada em novembro de 2021 e regulamentada pelo SISP em fevereiro de 2022, um tempo recorde, certificou 4 produtores em um ano e outros 5 estão em processo de certificação. Um número bem baixo comparado a pelo menos mil produtores clandestinos estimados por Christophe Faraud, presidente da Associação Paulista de Queijo Artesanal-APQA. A lei prevê participação popular e treinamento específico para fiscais que controlam os artesanais. o que ainda não deu tempo de acontecer...

Requintes de crueldade

150 kg de queijo maturado, 100 kg de queijo meia cura, 10 kg de queijo minas frescal, 6,5 kilos de queijo Minas padrão, 7 kg de doce de leite. Tudo foi colocado pelos fiscais em uma caminhonete suja, sem nenhuma proteção, para ser jogado no lixão. Com requintes de crueldade: creolina em cima dos queijos para que os miseráveis que se alimentam no lixão não possam provar nenhuma fatia.

Queijo araucária é uma massa prensada não cozida, meia cura ou curada Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

O casal esperava há meses a visita de vistoria final da queijeira para certificação e foi surpreendido ao saber que a vinda dos fiscais não era para dar a certificação, sim para apreender os queijos. " Nós fizemos a nossa queijaria da forma mais completa possível. Temos dois tanques resfriadores, aparelho de cortina de ar para não entrar mosca, mola nas portas para sempre ficarem fechadas, barreira sanitária para lavagem de botas e mãos, toda a tubulação que leva o leite é inoxidável, temos um tambor de1 90kg de gás para garantir água quente sempre que precisar, sala de embalagem primária e secundária, sala de lavagem de formas, tanques, prensa pneumática, batedeira de manteiga, piso específico para laticínio na queijaria inteira, câmaras frias revestidas e climatizadas, pé direito de 3,5 m de altura... Toda a fabricação pode ser assistida por uma grande janela de vidro, para que todos possam ver nosso capricho, aqui não tem nada escondido". Um produtor artesanal com toda essa estrutura e equipamentos é raro.

Sala de cura da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"Ficamos surpresos com a forma que o fiscal no tratou, nos olhos dele vimos a alegria de nos humilhar, a intransigência, o ódio, o prazer de usar o poder de forma violenta," disse Luzita. A produtora fala do funcionário público concursado Ricardo Souza Costa Barão de Aguiar, chefe da inspeção de Sorocaba e mais 19 municípios em torno. Ele fez a visita acompanhado da fiscal Camila de Abreu Gir e da nutricionista da vigilância sanitária Gabriela Pontes. "Ele entrou na nossa queijaria bagunçando tudo, jogou caixas no chão, mudou coisas de lugar, depois fez fotos, como se já tivesse encontrado o local bagunçado," detalha Luzita, que tem câmeras de vigilância instaladas.

A equipe de fiscalização alegou ter ido ao local por uma denúncia que, segundo a nota de retratação da secretaria, "foi maliciosa e totalmente desarrazoada". A queijaria investiu mais de R$300.000 na estrutura, inclusive para a certificação do rebanho livre de tuberculose e brucelose, e tinha conseguido a aprovação prévia do Cipoa dia 9 de março, uma semana antes da apreensão.

O montanha, de formato cônico, é defumado depois de curado, se inspira no formato do queijo espanhol tetilla Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Fiscais mudando de paradigma

O ser superior "fiscal", na cabeça dos produtores de queijo, tem sido pintado nas últimas décadas como um monstro insensível e burocrata. Não são poucos os relatos de arbitrariedades e essa imagem construída socialmente é a pior propaganda para os sistemas de inspeção, que raramente são procurados pelos produtores de queijo para certificação. Tem um caso dramático antigo de um fiscal que atuava em São Roque de Minas-MG, que até já morreu. Um dia ele falou para um produtor que ele, o produtor, estava mentindo. Sentindo-se muito ofendido de ser chamado de mentiroso, ele juntou outros produtores e deram uma surra no fiscal, que acabou indo embora da cidade. A fofoca dava conta que ele era ruim com os produtores porque era traído pela mulher e infeliz no casamento. Mas, qual será o motivo que levou o fiscal a agir na apreensão da Mulekinha?

Geralmente os fiscais de queijo tem formação de veterinário, ou outras competências rurais, e seu sonho é passar em um concurso para ter estabilidade a vida inteira. Depois de virar servidor público, a chance de evoluir não é lá essas coisas e o sujeito se acomoda nos vai-e-vens da burocracia. Fora as frustrações por falta de estrutura e condições de trabalho. Não deve ser uma atividade muito apaixonante. Se o Brasil tivesse a produção de queijo toda concentrada em poucas indústrias, eles teriam muito menos trabalho para executar do que ter que visitar e estudar os processos de certificação de milhares de pequenos produtores. O gargalo dos fluxos emperra. Se todos os produtores clandestinos brasileiros decidissem hoje se inscrever nas certificações estaduais o sistema entra em pane. Por isso os Serviços de Inspeção Municipal são mais eficientes, mas até hoje nenhum selo arte foi dado por um SIM no Brasil.

"Toda a cadeia ganhou, não só a Mulekinha!! Mas vamos nos preparar e arrumar a casa porque os fiscais estão em pé de guerra... A mudança real é profunda não acontecerá do dia pra noite, vai levar tempo," disse uma produtora, que não quer ser identificada por medo de retaliação. "Aqui já temos uma reunião de serviço com nossa equipe hoje para começar a aparar as arestas... e deixar a casa em ordem, pois eles vão querer vir pra cima," disse um outro, desconfiado.

Ferradura, em homenagem à rota turística do mesmo nome em Ibiúna-SP Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"É no psicológico do fiscal que está o problema, e não na lei" disse um terceiro produtor . "Nenhuma lei é específica o suficiente para que não haja desvio de interpretação por quem ler o texto. O fiscal faz a sua e exerce o pequeno poder. Longe de querer questionar a segurança dos alimentos, o ponto para o qual devemos nos concentrar é a incompetência da fiscalização, que tem um prazer maquiavélico de interpretar a lei sob o argumento de que está seguindo a mesma à risca".

Esses produtores estão agora se articulando internamente para identificar quem são os fiscais mais legais e mais sensíveis à causa, e também os não tão legais, não com o objetivo de punir os malvados com chicotada em praça pública, mas de ser sensível aos seus problemas e entender porque agem de forma arbitrária. "Quando a euforia passar, espero que dure bastante, será preciso muita atenção e sabedoria pois estamos apenas começando a construir uma nova relação com os órgãos fiscalizadores. Mas como a mentalidade punitiva tem profundas raízes históricas (e consequentemente psicológicas) a jornada será longa e constante. Ficou claro que essa grande vitória pontual só foi possível por causa da existência e da atuação cirúrgica da associação APQA,", disse um outro produtor.

Queijo rouillé, que em francês significa "enferrujado", é a receita inspirada no queijo francês morbier Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

Existem ótimos fiscais também, que são verdadeiros colegas e até amigos de produtores. "Temos que pensar que os fiscais também fazem parte da cadeia do queijo artesanal, precisamos navegar na mesma direção, não pode ser apenas punição, principalmente para nós pequenos. Espero que de agora para a frente tudo mude para melhor" espera um queijeiro. "Por outro lado, nos preocupamos com novos fiscais que estão entrando, como é o caso da Camila que acompanhou a fiscalização truculenta do Ricardo. Ela está infelizmente ao lado de um péssimo exemplo e com isso vai aprendendo a atuar dessa maneira, a não ser que ela tenha uma outra visão e gestão de fiscalizar. Mas com o final da história acho que ela viu o que não pode ser feito em uma fiscalização," concluiu outro produtor.

Luzita saiu da reunião de retratação da secretaria de Agricultura aliviada. "Estamos muito alegres, muito felizes. Mais que receber meu tão sonhado SISP, conseguimos a promessa que a inspeção para artesanal vai ser melhor treinada. Formaremos uma equipe para ajudar, foi uma vitória tríplice. Parece ainda que vivi um pesadelo e depois um sonho aconteceu, agradeço a todos os que ajudaram, especialmente a APQA".

Ferradura e rouillé Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Nota de resposta

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo comunica que, no episódio da apreensão dos queijos da Cabanha Mulekinha, há fortes indícios de que a atuação do fiscal da Coordenadoria de Defesa Agropecuária contrariou frontalmente a legislação vigente. A pasta imediatamente instaurou procedimento para apuração do ocorrido. Em decorrência da gravidade do ato praticado, foi determinado o afastamento do profissional, que permanecerá realizando trabalhos internos até o encerramento do processo de apuração.

A análise feita no pedido de registro no Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisp) resultou na sua aprovação, o que corrobora a suspeita de atuação irregular do fiscal. A denúncia anônima que motivou todo esse transtorno se mostrou maliciosa e totalmente desarrazoada.

A atuação do fiscal contrariou a orientação da atual gestão de sempre orientar os produtores sobre as exigências da legislação, antes de qualquer medida punitiva. De acordo com o secretário Antonio Julio Junqueira, após a finalização da apuração, caso fique comprovado que a Secretaria de Agricultura cometeu um erro, haverá o ressarcimento do prejuízo causado à agroindústria.

Esse episódio evidenciou a necessidade de maior orientação, reciclagem e treinamento de todos os profissionais que atuam na fiscalização. A secretaria também se propôs a entrar em contato com a equipe que realiza a fiscalização de produtos artesanais da França para fazer um intercâmbio e ampliar o background dos agentes de fiscalização sanitária do estado de São Paulo.

 

O movimento do queijo artesanal brasileiro passou das lágrimas ao gozo nos últimos cinco dias. Tudo começou na sexta-feira, dia 17 de março, com a apreensão de todos os queijos da Mulekinha, queijaria do casal Luzita e Airton Camargo. Eles são autores de uma gama de produtos inspirados na tradição espanhola em Ibiúna-SP.

Gama de queijos da Mulekinha, todos foram para o lixo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A atuação do fiscal foi truculenta, violenta, sem nenhuma sensibilidade de orientação pedagógica, só de punição. No final de semana, produtores do Brasil inteiro protestaram nas redes marcando o governador Tarcísio. O áudio de Luzita, em prantos, reverberou. Roberta Sudbrack, chef de cozinha também vítima de apreensão de queijos no Rio de Janeiro em 2017, divulgou no seu instagram e outros chefs aderiram assim como outras associações de produtores.

Luzita virando queijo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Ontem, segunda-feira, a Secretaria de Agricultura disse que o fiscal foi afastado, uma decisão pioneira no Brasil em se tratando de queijo artesanal. Também deram o documento de certificação do SISP, que a Mulekinha esperava há 4 anos. Prometeram até a possibilidade de ressarcir os queijos ao final do processo administrativo (ver nota na íntegra abaixo). A decisão aconteceu no gabinete do secretário de Agricultura, Antonio Julio Junqueira de Queiroz, em uma reunião que durou horas com a presença de produtores, fiscais e políticos. A decisão levou a comunidade do queijo ao êxtase.

No começo de março, a revista Profissão Queijeira fez uma reportagem sobre a tentativa de humanização da fiscalização de queijos pelo Estado de São Paulo. O grande desafio para 2023, segundo o diretor do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Cipoa) de São Paulo Bruno Bergamo " é estreitar ainda mais os laços com os pequenos produtores artesanais e conscientizar da necessidade de regularização das agroindústrias, com foco no Selo Arte. O estado de São Paulo também está buscando aumentar o número de fiscais para acelerar os processos de registros e dar suporte técnico aos pequenos produtores," disse ele.

Mofos naturais nos queijos artesanais da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A ideia é motivar produtores clandestinos a buscarem a formalidade e assim acompanhar a onda de sucesso dos queijos autorais paulistas. A lei paulista de queijos artesanais, assinada em novembro de 2021 e regulamentada pelo SISP em fevereiro de 2022, um tempo recorde, certificou 4 produtores em um ano e outros 5 estão em processo de certificação. Um número bem baixo comparado a pelo menos mil produtores clandestinos estimados por Christophe Faraud, presidente da Associação Paulista de Queijo Artesanal-APQA. A lei prevê participação popular e treinamento específico para fiscais que controlam os artesanais. o que ainda não deu tempo de acontecer...

Requintes de crueldade

150 kg de queijo maturado, 100 kg de queijo meia cura, 10 kg de queijo minas frescal, 6,5 kilos de queijo Minas padrão, 7 kg de doce de leite. Tudo foi colocado pelos fiscais em uma caminhonete suja, sem nenhuma proteção, para ser jogado no lixão. Com requintes de crueldade: creolina em cima dos queijos para que os miseráveis que se alimentam no lixão não possam provar nenhuma fatia.

Queijo araucária é uma massa prensada não cozida, meia cura ou curada Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

O casal esperava há meses a visita de vistoria final da queijeira para certificação e foi surpreendido ao saber que a vinda dos fiscais não era para dar a certificação, sim para apreender os queijos. " Nós fizemos a nossa queijaria da forma mais completa possível. Temos dois tanques resfriadores, aparelho de cortina de ar para não entrar mosca, mola nas portas para sempre ficarem fechadas, barreira sanitária para lavagem de botas e mãos, toda a tubulação que leva o leite é inoxidável, temos um tambor de1 90kg de gás para garantir água quente sempre que precisar, sala de embalagem primária e secundária, sala de lavagem de formas, tanques, prensa pneumática, batedeira de manteiga, piso específico para laticínio na queijaria inteira, câmaras frias revestidas e climatizadas, pé direito de 3,5 m de altura... Toda a fabricação pode ser assistida por uma grande janela de vidro, para que todos possam ver nosso capricho, aqui não tem nada escondido". Um produtor artesanal com toda essa estrutura e equipamentos é raro.

Sala de cura da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"Ficamos surpresos com a forma que o fiscal no tratou, nos olhos dele vimos a alegria de nos humilhar, a intransigência, o ódio, o prazer de usar o poder de forma violenta," disse Luzita. A produtora fala do funcionário público concursado Ricardo Souza Costa Barão de Aguiar, chefe da inspeção de Sorocaba e mais 19 municípios em torno. Ele fez a visita acompanhado da fiscal Camila de Abreu Gir e da nutricionista da vigilância sanitária Gabriela Pontes. "Ele entrou na nossa queijaria bagunçando tudo, jogou caixas no chão, mudou coisas de lugar, depois fez fotos, como se já tivesse encontrado o local bagunçado," detalha Luzita, que tem câmeras de vigilância instaladas.

A equipe de fiscalização alegou ter ido ao local por uma denúncia que, segundo a nota de retratação da secretaria, "foi maliciosa e totalmente desarrazoada". A queijaria investiu mais de R$300.000 na estrutura, inclusive para a certificação do rebanho livre de tuberculose e brucelose, e tinha conseguido a aprovação prévia do Cipoa dia 9 de março, uma semana antes da apreensão.

O montanha, de formato cônico, é defumado depois de curado, se inspira no formato do queijo espanhol tetilla Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Fiscais mudando de paradigma

O ser superior "fiscal", na cabeça dos produtores de queijo, tem sido pintado nas últimas décadas como um monstro insensível e burocrata. Não são poucos os relatos de arbitrariedades e essa imagem construída socialmente é a pior propaganda para os sistemas de inspeção, que raramente são procurados pelos produtores de queijo para certificação. Tem um caso dramático antigo de um fiscal que atuava em São Roque de Minas-MG, que até já morreu. Um dia ele falou para um produtor que ele, o produtor, estava mentindo. Sentindo-se muito ofendido de ser chamado de mentiroso, ele juntou outros produtores e deram uma surra no fiscal, que acabou indo embora da cidade. A fofoca dava conta que ele era ruim com os produtores porque era traído pela mulher e infeliz no casamento. Mas, qual será o motivo que levou o fiscal a agir na apreensão da Mulekinha?

Geralmente os fiscais de queijo tem formação de veterinário, ou outras competências rurais, e seu sonho é passar em um concurso para ter estabilidade a vida inteira. Depois de virar servidor público, a chance de evoluir não é lá essas coisas e o sujeito se acomoda nos vai-e-vens da burocracia. Fora as frustrações por falta de estrutura e condições de trabalho. Não deve ser uma atividade muito apaixonante. Se o Brasil tivesse a produção de queijo toda concentrada em poucas indústrias, eles teriam muito menos trabalho para executar do que ter que visitar e estudar os processos de certificação de milhares de pequenos produtores. O gargalo dos fluxos emperra. Se todos os produtores clandestinos brasileiros decidissem hoje se inscrever nas certificações estaduais o sistema entra em pane. Por isso os Serviços de Inspeção Municipal são mais eficientes, mas até hoje nenhum selo arte foi dado por um SIM no Brasil.

"Toda a cadeia ganhou, não só a Mulekinha!! Mas vamos nos preparar e arrumar a casa porque os fiscais estão em pé de guerra... A mudança real é profunda não acontecerá do dia pra noite, vai levar tempo," disse uma produtora, que não quer ser identificada por medo de retaliação. "Aqui já temos uma reunião de serviço com nossa equipe hoje para começar a aparar as arestas... e deixar a casa em ordem, pois eles vão querer vir pra cima," disse um outro, desconfiado.

Ferradura, em homenagem à rota turística do mesmo nome em Ibiúna-SP Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"É no psicológico do fiscal que está o problema, e não na lei" disse um terceiro produtor . "Nenhuma lei é específica o suficiente para que não haja desvio de interpretação por quem ler o texto. O fiscal faz a sua e exerce o pequeno poder. Longe de querer questionar a segurança dos alimentos, o ponto para o qual devemos nos concentrar é a incompetência da fiscalização, que tem um prazer maquiavélico de interpretar a lei sob o argumento de que está seguindo a mesma à risca".

Esses produtores estão agora se articulando internamente para identificar quem são os fiscais mais legais e mais sensíveis à causa, e também os não tão legais, não com o objetivo de punir os malvados com chicotada em praça pública, mas de ser sensível aos seus problemas e entender porque agem de forma arbitrária. "Quando a euforia passar, espero que dure bastante, será preciso muita atenção e sabedoria pois estamos apenas começando a construir uma nova relação com os órgãos fiscalizadores. Mas como a mentalidade punitiva tem profundas raízes históricas (e consequentemente psicológicas) a jornada será longa e constante. Ficou claro que essa grande vitória pontual só foi possível por causa da existência e da atuação cirúrgica da associação APQA,", disse um outro produtor.

Queijo rouillé, que em francês significa "enferrujado", é a receita inspirada no queijo francês morbier Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

Existem ótimos fiscais também, que são verdadeiros colegas e até amigos de produtores. "Temos que pensar que os fiscais também fazem parte da cadeia do queijo artesanal, precisamos navegar na mesma direção, não pode ser apenas punição, principalmente para nós pequenos. Espero que de agora para a frente tudo mude para melhor" espera um queijeiro. "Por outro lado, nos preocupamos com novos fiscais que estão entrando, como é o caso da Camila que acompanhou a fiscalização truculenta do Ricardo. Ela está infelizmente ao lado de um péssimo exemplo e com isso vai aprendendo a atuar dessa maneira, a não ser que ela tenha uma outra visão e gestão de fiscalizar. Mas com o final da história acho que ela viu o que não pode ser feito em uma fiscalização," concluiu outro produtor.

Luzita saiu da reunião de retratação da secretaria de Agricultura aliviada. "Estamos muito alegres, muito felizes. Mais que receber meu tão sonhado SISP, conseguimos a promessa que a inspeção para artesanal vai ser melhor treinada. Formaremos uma equipe para ajudar, foi uma vitória tríplice. Parece ainda que vivi um pesadelo e depois um sonho aconteceu, agradeço a todos os que ajudaram, especialmente a APQA".

Ferradura e rouillé Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Nota de resposta

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo comunica que, no episódio da apreensão dos queijos da Cabanha Mulekinha, há fortes indícios de que a atuação do fiscal da Coordenadoria de Defesa Agropecuária contrariou frontalmente a legislação vigente. A pasta imediatamente instaurou procedimento para apuração do ocorrido. Em decorrência da gravidade do ato praticado, foi determinado o afastamento do profissional, que permanecerá realizando trabalhos internos até o encerramento do processo de apuração.

A análise feita no pedido de registro no Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisp) resultou na sua aprovação, o que corrobora a suspeita de atuação irregular do fiscal. A denúncia anônima que motivou todo esse transtorno se mostrou maliciosa e totalmente desarrazoada.

A atuação do fiscal contrariou a orientação da atual gestão de sempre orientar os produtores sobre as exigências da legislação, antes de qualquer medida punitiva. De acordo com o secretário Antonio Julio Junqueira, após a finalização da apuração, caso fique comprovado que a Secretaria de Agricultura cometeu um erro, haverá o ressarcimento do prejuízo causado à agroindústria.

Esse episódio evidenciou a necessidade de maior orientação, reciclagem e treinamento de todos os profissionais que atuam na fiscalização. A secretaria também se propôs a entrar em contato com a equipe que realiza a fiscalização de produtos artesanais da França para fazer um intercâmbio e ampliar o background dos agentes de fiscalização sanitária do estado de São Paulo.

 

O movimento do queijo artesanal brasileiro passou das lágrimas ao gozo nos últimos cinco dias. Tudo começou na sexta-feira, dia 17 de março, com a apreensão de todos os queijos da Mulekinha, queijaria do casal Luzita e Airton Camargo. Eles são autores de uma gama de produtos inspirados na tradição espanhola em Ibiúna-SP.

Gama de queijos da Mulekinha, todos foram para o lixo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A atuação do fiscal foi truculenta, violenta, sem nenhuma sensibilidade de orientação pedagógica, só de punição. No final de semana, produtores do Brasil inteiro protestaram nas redes marcando o governador Tarcísio. O áudio de Luzita, em prantos, reverberou. Roberta Sudbrack, chef de cozinha também vítima de apreensão de queijos no Rio de Janeiro em 2017, divulgou no seu instagram e outros chefs aderiram assim como outras associações de produtores.

Luzita virando queijo Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Ontem, segunda-feira, a Secretaria de Agricultura disse que o fiscal foi afastado, uma decisão pioneira no Brasil em se tratando de queijo artesanal. Também deram o documento de certificação do SISP, que a Mulekinha esperava há 4 anos. Prometeram até a possibilidade de ressarcir os queijos ao final do processo administrativo (ver nota na íntegra abaixo). A decisão aconteceu no gabinete do secretário de Agricultura, Antonio Julio Junqueira de Queiroz, em uma reunião que durou horas com a presença de produtores, fiscais e políticos. A decisão levou a comunidade do queijo ao êxtase.

No começo de março, a revista Profissão Queijeira fez uma reportagem sobre a tentativa de humanização da fiscalização de queijos pelo Estado de São Paulo. O grande desafio para 2023, segundo o diretor do Centro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Cipoa) de São Paulo Bruno Bergamo " é estreitar ainda mais os laços com os pequenos produtores artesanais e conscientizar da necessidade de regularização das agroindústrias, com foco no Selo Arte. O estado de São Paulo também está buscando aumentar o número de fiscais para acelerar os processos de registros e dar suporte técnico aos pequenos produtores," disse ele.

Mofos naturais nos queijos artesanais da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

A ideia é motivar produtores clandestinos a buscarem a formalidade e assim acompanhar a onda de sucesso dos queijos autorais paulistas. A lei paulista de queijos artesanais, assinada em novembro de 2021 e regulamentada pelo SISP em fevereiro de 2022, um tempo recorde, certificou 4 produtores em um ano e outros 5 estão em processo de certificação. Um número bem baixo comparado a pelo menos mil produtores clandestinos estimados por Christophe Faraud, presidente da Associação Paulista de Queijo Artesanal-APQA. A lei prevê participação popular e treinamento específico para fiscais que controlam os artesanais. o que ainda não deu tempo de acontecer...

Requintes de crueldade

150 kg de queijo maturado, 100 kg de queijo meia cura, 10 kg de queijo minas frescal, 6,5 kilos de queijo Minas padrão, 7 kg de doce de leite. Tudo foi colocado pelos fiscais em uma caminhonete suja, sem nenhuma proteção, para ser jogado no lixão. Com requintes de crueldade: creolina em cima dos queijos para que os miseráveis que se alimentam no lixão não possam provar nenhuma fatia.

Queijo araucária é uma massa prensada não cozida, meia cura ou curada Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

O casal esperava há meses a visita de vistoria final da queijeira para certificação e foi surpreendido ao saber que a vinda dos fiscais não era para dar a certificação, sim para apreender os queijos. " Nós fizemos a nossa queijaria da forma mais completa possível. Temos dois tanques resfriadores, aparelho de cortina de ar para não entrar mosca, mola nas portas para sempre ficarem fechadas, barreira sanitária para lavagem de botas e mãos, toda a tubulação que leva o leite é inoxidável, temos um tambor de1 90kg de gás para garantir água quente sempre que precisar, sala de embalagem primária e secundária, sala de lavagem de formas, tanques, prensa pneumática, batedeira de manteiga, piso específico para laticínio na queijaria inteira, câmaras frias revestidas e climatizadas, pé direito de 3,5 m de altura... Toda a fabricação pode ser assistida por uma grande janela de vidro, para que todos possam ver nosso capricho, aqui não tem nada escondido". Um produtor artesanal com toda essa estrutura e equipamentos é raro.

Sala de cura da Mulekinha Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"Ficamos surpresos com a forma que o fiscal no tratou, nos olhos dele vimos a alegria de nos humilhar, a intransigência, o ódio, o prazer de usar o poder de forma violenta," disse Luzita. A produtora fala do funcionário público concursado Ricardo Souza Costa Barão de Aguiar, chefe da inspeção de Sorocaba e mais 19 municípios em torno. Ele fez a visita acompanhado da fiscal Camila de Abreu Gir e da nutricionista da vigilância sanitária Gabriela Pontes. "Ele entrou na nossa queijaria bagunçando tudo, jogou caixas no chão, mudou coisas de lugar, depois fez fotos, como se já tivesse encontrado o local bagunçado," detalha Luzita, que tem câmeras de vigilância instaladas.

A equipe de fiscalização alegou ter ido ao local por uma denúncia que, segundo a nota de retratação da secretaria, "foi maliciosa e totalmente desarrazoada". A queijaria investiu mais de R$300.000 na estrutura, inclusive para a certificação do rebanho livre de tuberculose e brucelose, e tinha conseguido a aprovação prévia do Cipoa dia 9 de março, uma semana antes da apreensão.

O montanha, de formato cônico, é defumado depois de curado, se inspira no formato do queijo espanhol tetilla Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Fiscais mudando de paradigma

O ser superior "fiscal", na cabeça dos produtores de queijo, tem sido pintado nas últimas décadas como um monstro insensível e burocrata. Não são poucos os relatos de arbitrariedades e essa imagem construída socialmente é a pior propaganda para os sistemas de inspeção, que raramente são procurados pelos produtores de queijo para certificação. Tem um caso dramático antigo de um fiscal que atuava em São Roque de Minas-MG, que até já morreu. Um dia ele falou para um produtor que ele, o produtor, estava mentindo. Sentindo-se muito ofendido de ser chamado de mentiroso, ele juntou outros produtores e deram uma surra no fiscal, que acabou indo embora da cidade. A fofoca dava conta que ele era ruim com os produtores porque era traído pela mulher e infeliz no casamento. Mas, qual será o motivo que levou o fiscal a agir na apreensão da Mulekinha?

Geralmente os fiscais de queijo tem formação de veterinário, ou outras competências rurais, e seu sonho é passar em um concurso para ter estabilidade a vida inteira. Depois de virar servidor público, a chance de evoluir não é lá essas coisas e o sujeito se acomoda nos vai-e-vens da burocracia. Fora as frustrações por falta de estrutura e condições de trabalho. Não deve ser uma atividade muito apaixonante. Se o Brasil tivesse a produção de queijo toda concentrada em poucas indústrias, eles teriam muito menos trabalho para executar do que ter que visitar e estudar os processos de certificação de milhares de pequenos produtores. O gargalo dos fluxos emperra. Se todos os produtores clandestinos brasileiros decidissem hoje se inscrever nas certificações estaduais o sistema entra em pane. Por isso os Serviços de Inspeção Municipal são mais eficientes, mas até hoje nenhum selo arte foi dado por um SIM no Brasil.

"Toda a cadeia ganhou, não só a Mulekinha!! Mas vamos nos preparar e arrumar a casa porque os fiscais estão em pé de guerra... A mudança real é profunda não acontecerá do dia pra noite, vai levar tempo," disse uma produtora, que não quer ser identificada por medo de retaliação. "Aqui já temos uma reunião de serviço com nossa equipe hoje para começar a aparar as arestas... e deixar a casa em ordem, pois eles vão querer vir pra cima," disse um outro, desconfiado.

Ferradura, em homenagem à rota turística do mesmo nome em Ibiúna-SP Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

"É no psicológico do fiscal que está o problema, e não na lei" disse um terceiro produtor . "Nenhuma lei é específica o suficiente para que não haja desvio de interpretação por quem ler o texto. O fiscal faz a sua e exerce o pequeno poder. Longe de querer questionar a segurança dos alimentos, o ponto para o qual devemos nos concentrar é a incompetência da fiscalização, que tem um prazer maquiavélico de interpretar a lei sob o argumento de que está seguindo a mesma à risca".

Esses produtores estão agora se articulando internamente para identificar quem são os fiscais mais legais e mais sensíveis à causa, e também os não tão legais, não com o objetivo de punir os malvados com chicotada em praça pública, mas de ser sensível aos seus problemas e entender porque agem de forma arbitrária. "Quando a euforia passar, espero que dure bastante, será preciso muita atenção e sabedoria pois estamos apenas começando a construir uma nova relação com os órgãos fiscalizadores. Mas como a mentalidade punitiva tem profundas raízes históricas (e consequentemente psicológicas) a jornada será longa e constante. Ficou claro que essa grande vitória pontual só foi possível por causa da existência e da atuação cirúrgica da associação APQA,", disse um outro produtor.

Queijo rouillé, que em francês significa "enferrujado", é a receita inspirada no queijo francês morbier Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

 

Existem ótimos fiscais também, que são verdadeiros colegas e até amigos de produtores. "Temos que pensar que os fiscais também fazem parte da cadeia do queijo artesanal, precisamos navegar na mesma direção, não pode ser apenas punição, principalmente para nós pequenos. Espero que de agora para a frente tudo mude para melhor" espera um queijeiro. "Por outro lado, nos preocupamos com novos fiscais que estão entrando, como é o caso da Camila que acompanhou a fiscalização truculenta do Ricardo. Ela está infelizmente ao lado de um péssimo exemplo e com isso vai aprendendo a atuar dessa maneira, a não ser que ela tenha uma outra visão e gestão de fiscalizar. Mas com o final da história acho que ela viu o que não pode ser feito em uma fiscalização," concluiu outro produtor.

Luzita saiu da reunião de retratação da secretaria de Agricultura aliviada. "Estamos muito alegres, muito felizes. Mais que receber meu tão sonhado SISP, conseguimos a promessa que a inspeção para artesanal vai ser melhor treinada. Formaremos uma equipe para ajudar, foi uma vitória tríplice. Parece ainda que vivi um pesadelo e depois um sonho aconteceu, agradeço a todos os que ajudaram, especialmente a APQA".

Ferradura e rouillé Foto: Matheus Shimono/Prefeitura de Ibiúna

Nota de resposta

A Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo comunica que, no episódio da apreensão dos queijos da Cabanha Mulekinha, há fortes indícios de que a atuação do fiscal da Coordenadoria de Defesa Agropecuária contrariou frontalmente a legislação vigente. A pasta imediatamente instaurou procedimento para apuração do ocorrido. Em decorrência da gravidade do ato praticado, foi determinado o afastamento do profissional, que permanecerá realizando trabalhos internos até o encerramento do processo de apuração.

A análise feita no pedido de registro no Serviço de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisp) resultou na sua aprovação, o que corrobora a suspeita de atuação irregular do fiscal. A denúncia anônima que motivou todo esse transtorno se mostrou maliciosa e totalmente desarrazoada.

A atuação do fiscal contrariou a orientação da atual gestão de sempre orientar os produtores sobre as exigências da legislação, antes de qualquer medida punitiva. De acordo com o secretário Antonio Julio Junqueira, após a finalização da apuração, caso fique comprovado que a Secretaria de Agricultura cometeu um erro, haverá o ressarcimento do prejuízo causado à agroindústria.

Esse episódio evidenciou a necessidade de maior orientação, reciclagem e treinamento de todos os profissionais que atuam na fiscalização. A secretaria também se propôs a entrar em contato com a equipe que realiza a fiscalização de produtos artesanais da França para fazer um intercâmbio e ampliar o background dos agentes de fiscalização sanitária do estado de São Paulo.

 

Opinião por Débora Pereira

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