Aventuras lácteas entre o Brasil e a França

Opinião|Brasil ganha bronze em campeonato francês com a fondue neotropical


País concorreu com candidatos franceses, belgas, holandeses e suíços; pódio garante a classificação para o Mundial de Fondue, que ocorre na Suíça em 2023

Por Débora Pereira

Foi um desafio quando o organizador do Campeonato Francês de Fondue me telefonou em janeiro para pedir que eu indicasse uma dupla de brasileiros para concorrer ao concurso que ocorreu ontem, 13 de março, na cidade de Montréjeau, nos Pirineus. Ele apelou : "Débora, com todas essas medalhas que vocês ganharam na França, vocês têm obrigação de concorrer a este concurso, se ninguém puder vir vai ser você mesmo!". Como dizemos em Minas: jogou o sapo n'água.

 

Dominique Bouchait, MOF francês e organizador do concurso. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

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Não sabia de nenhum produtor brasileiro vindo para a França e sei o investimento que isso representa, então convidei para participar comigo Jeanne Lohro, francesa que morou um ano em Natal (RN) e fala português sem sotaque.

 
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Eu e Jeanne Lohro recebendo o troféu de bronze. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Fizemos a inscrição da equipe "Neotropical" para fazer a fondue brasileira. Começamos os testes. A primeira tentativa foi um desastre. A partir das dicas de algumas receitas encontradas em livros e na internet, esquentamos o vinho branco com alho e depois colocamos o queijo ralado, virou uma sopa com gordura boiando por cima. Foi urgente a busca de conhecimento teórico... Descobri com ajuda do professor Antônio Fernandes, da Universidade Federal de Viçosa, que uma boa fondue precisa ter queijos bem velhos, cuja caseína já foi bem degradada pela maturação, para dar gosto e tipicidade à mistura, e de queijos mais novos, para dar consistência e não ficar muito líquido. Então usamos dois queijos da Pardinho Artesanal, o Mandala curado 12 meses e o Mandalinha, curado 6 meses, ambos são peças de 10 kg, feitas de um blend de leites de vacas Gir e Jersey, respeitando sempre um mínimo de 50% de leite de vacas Gir.

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Mas eu ainda precisava de um queijo mais forte, porque os paladares dos jurados estariam muito saturados de provar tantos queijos. Pedi ajuda aos amigos suíços que me enviaram uma grande peça de gruyère DOP curado 18 meses. A combinação perfeita em textura e sabor! Mas os jurados quiseram saber : "o que um queijo suíço faz em uma receita brasileira?". Resposta fácil: há 500 anos, nem vaca a gente tinha no Brasil. Fomos colonizados primeiro por portugueses, holandeses, franceses, depois vieram os alemães, italianos, japoneses, suíços... e no estado do Rio de Janeiro, temos até Nova Friburgo, cidade onde se desenvolveu uma escola queijeira que ensina os queijos suíços tradicionais.

 

Nossa fondue brasileira! FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

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Para me distinguir das receitas comuns de fondue com vinho branco, escolhi uma boa cerveja. Na França, eu moro em Lille, nos Flandres, onde tem cervejas maravilhosas. Escolhi uma chamada Bon Vivant, envelhecida em barris de champagne. O resultado foi uma fondue mais aerada e com mais gosto de leveduras, sem nenhum amargor. E no lugar da kirsch, que é um destilado de cerejas usado pelos suíços na hora de servir a fondue, usamos cachaça Kapoeira, importada do Brasil e bem aromática, que acrescentamos flambada. Deu a leveza que faltava para digerir a massa forte em gordura.

 
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Bebidas usadas na fondue Neotropical. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para provocar as papilas dos jurados, fiz um blend de pimentas-do-reino moídas no pilão, colocadas antes de servir, e acrescentei umas gotinhas de caldo de pimenta malagueta, para ficar bem suave, porque sei que os europeus não gostam de nada muito picante. Para dar o golpe final da gostosura, assei pães de queijo do Monsieur Pão de Queijo e tirei a parte superior e miolo de cada um para encher de fondue.

 

Um público de 800 pessoas assistiu ao campeonato. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Uma semana antes do concurso, uma surpresa: mudaram o regulamento e pediram para cada dupla vir vestida à caráter, de acordo com sua cultura e região. Liguei para o organizador para saber mais, ele me disse: "Fácil Débora! Você vem vestida de passista de escola de samba, com o corpo melado de purpurina, fio dental, salto alto e plumas na cabeça!" Oi? Produção, é isso mesmo? Imaginei logo a cara da minha mãe. Incrível como o imaginário dos europeus apela sempre para essa imagem da mulher brasileira. Nada contra as lindas passistas de escola de samba, mas eu sou uma filha dos montes de Minas Gerais e não ia pagar esse mico, ainda por cima no inverno francês.

Antes de eu ser abduzida pelo mundo do queijo, eu já tinha trabalhado no Acre para a gestão da mitigação dos povos indígenas dos territórios por onde passa a rodovia que liga Rio Branco a Cruzeiro do Sul. Nessa época, em 2009, eu fiz grandes amigos na Amazônia. Ganhei de presente cocares que são sagrados para mim, ficam guardados no meu altar ao lado de Santo Uguzon, protetor dos queijeiros. Eles são de uma beleza que deixa as pessoas emocionadas, são artefatos pelos quais eu tenho um respeito imenso.

Explico tudo isso porque recebi alguns cancelamentos no Instagram depois que publiquei o vídeo da minha apresentação: "como pode alguém ainda usar um cocar para representar o Brasil?". A resposta é fácil, neste momento onde os brasileiros têm uma péssima reputação na Europa, prefiro mil vezes me decorar de plumas em homenagem aos povos indígenas, que de "garimpeiro artesanal" ou de fazendeiro que desmata para plantar soja. Também me pediram para cantar cantos indígenas brasileiros, sorte que eu me lembrava de alguns, cantei forte e na mesma hora desceu a maior chuva. A fondue da pajelança vibrou!

Também fiz uma modificaçãozinha na bandeira do Brasil: escrevi "amor" em tinha vermelha, antes de "ordem e progresso". Para não ser confundida com os que têm se apropriado politicamente da nossa bandeira sem se importar com o verde das matas, o amarelo do ouro, o azul do céu e do branco da paz... Queijo é muito político, que ninguém fique enganado!

Os campeões

A dupla que ganhou primeiro lugar, Jean-Jacques Vermeersch Couderc et Alban Rousseau, veio da Auvergne e inovou colocando genciana na fondue. O resultado foi uma fondue muito amarga para meu paladar, mas como os franceses adoram esse sabor, ela agradou bem. O segundo lugar, uma dupla de Grenoble, nos Alpes, usou o licor "chartreuse", feito de uma mistura de mais de cem ervas. Também achei amargo. No final, fiquei felicíssima com o terceiro lugar. A dupla suíça ficou em 4º lugar, imaginem a tristeza delas, que vêm do país da fondue.

 

Dupla suíça. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

As outras duplas apelaram para todos os sabores: fondue com wasabi, com lagosta, com queijos da Normandia e maçã...

 

Dupla da Normandia, fantasiada de vaca Normande, que serviram a fondue com maçã em vez de pão. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromage

 

Outros dois prêmios foram distribuídos: o troféu da Animação, dado para a dupla local que se apresentou de short e torso nu, cantando forte e levando a plateia ao delírio; e o da Originalidade, da dupla Xavier Thuret et Jean-Charles Karman, que fizeram uma massa de profiteroles frita recheada com queijo brie de Meau derretido... Mas só os três primeiros lugares estão classificados para o Mundial de Fondue na Suíça em 2023. Brasiiiil, vamos que vamos!

Foi um desafio quando o organizador do Campeonato Francês de Fondue me telefonou em janeiro para pedir que eu indicasse uma dupla de brasileiros para concorrer ao concurso que ocorreu ontem, 13 de março, na cidade de Montréjeau, nos Pirineus. Ele apelou : "Débora, com todas essas medalhas que vocês ganharam na França, vocês têm obrigação de concorrer a este concurso, se ninguém puder vir vai ser você mesmo!". Como dizemos em Minas: jogou o sapo n'água.

 

Dominique Bouchait, MOF francês e organizador do concurso. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Não sabia de nenhum produtor brasileiro vindo para a França e sei o investimento que isso representa, então convidei para participar comigo Jeanne Lohro, francesa que morou um ano em Natal (RN) e fala português sem sotaque.

 

Eu e Jeanne Lohro recebendo o troféu de bronze. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Fizemos a inscrição da equipe "Neotropical" para fazer a fondue brasileira. Começamos os testes. A primeira tentativa foi um desastre. A partir das dicas de algumas receitas encontradas em livros e na internet, esquentamos o vinho branco com alho e depois colocamos o queijo ralado, virou uma sopa com gordura boiando por cima. Foi urgente a busca de conhecimento teórico... Descobri com ajuda do professor Antônio Fernandes, da Universidade Federal de Viçosa, que uma boa fondue precisa ter queijos bem velhos, cuja caseína já foi bem degradada pela maturação, para dar gosto e tipicidade à mistura, e de queijos mais novos, para dar consistência e não ficar muito líquido. Então usamos dois queijos da Pardinho Artesanal, o Mandala curado 12 meses e o Mandalinha, curado 6 meses, ambos são peças de 10 kg, feitas de um blend de leites de vacas Gir e Jersey, respeitando sempre um mínimo de 50% de leite de vacas Gir.

Mas eu ainda precisava de um queijo mais forte, porque os paladares dos jurados estariam muito saturados de provar tantos queijos. Pedi ajuda aos amigos suíços que me enviaram uma grande peça de gruyère DOP curado 18 meses. A combinação perfeita em textura e sabor! Mas os jurados quiseram saber : "o que um queijo suíço faz em uma receita brasileira?". Resposta fácil: há 500 anos, nem vaca a gente tinha no Brasil. Fomos colonizados primeiro por portugueses, holandeses, franceses, depois vieram os alemães, italianos, japoneses, suíços... e no estado do Rio de Janeiro, temos até Nova Friburgo, cidade onde se desenvolveu uma escola queijeira que ensina os queijos suíços tradicionais.

 

Nossa fondue brasileira! FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para me distinguir das receitas comuns de fondue com vinho branco, escolhi uma boa cerveja. Na França, eu moro em Lille, nos Flandres, onde tem cervejas maravilhosas. Escolhi uma chamada Bon Vivant, envelhecida em barris de champagne. O resultado foi uma fondue mais aerada e com mais gosto de leveduras, sem nenhum amargor. E no lugar da kirsch, que é um destilado de cerejas usado pelos suíços na hora de servir a fondue, usamos cachaça Kapoeira, importada do Brasil e bem aromática, que acrescentamos flambada. Deu a leveza que faltava para digerir a massa forte em gordura.

 

Bebidas usadas na fondue Neotropical. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para provocar as papilas dos jurados, fiz um blend de pimentas-do-reino moídas no pilão, colocadas antes de servir, e acrescentei umas gotinhas de caldo de pimenta malagueta, para ficar bem suave, porque sei que os europeus não gostam de nada muito picante. Para dar o golpe final da gostosura, assei pães de queijo do Monsieur Pão de Queijo e tirei a parte superior e miolo de cada um para encher de fondue.

 

Um público de 800 pessoas assistiu ao campeonato. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Uma semana antes do concurso, uma surpresa: mudaram o regulamento e pediram para cada dupla vir vestida à caráter, de acordo com sua cultura e região. Liguei para o organizador para saber mais, ele me disse: "Fácil Débora! Você vem vestida de passista de escola de samba, com o corpo melado de purpurina, fio dental, salto alto e plumas na cabeça!" Oi? Produção, é isso mesmo? Imaginei logo a cara da minha mãe. Incrível como o imaginário dos europeus apela sempre para essa imagem da mulher brasileira. Nada contra as lindas passistas de escola de samba, mas eu sou uma filha dos montes de Minas Gerais e não ia pagar esse mico, ainda por cima no inverno francês.

Antes de eu ser abduzida pelo mundo do queijo, eu já tinha trabalhado no Acre para a gestão da mitigação dos povos indígenas dos territórios por onde passa a rodovia que liga Rio Branco a Cruzeiro do Sul. Nessa época, em 2009, eu fiz grandes amigos na Amazônia. Ganhei de presente cocares que são sagrados para mim, ficam guardados no meu altar ao lado de Santo Uguzon, protetor dos queijeiros. Eles são de uma beleza que deixa as pessoas emocionadas, são artefatos pelos quais eu tenho um respeito imenso.

Explico tudo isso porque recebi alguns cancelamentos no Instagram depois que publiquei o vídeo da minha apresentação: "como pode alguém ainda usar um cocar para representar o Brasil?". A resposta é fácil, neste momento onde os brasileiros têm uma péssima reputação na Europa, prefiro mil vezes me decorar de plumas em homenagem aos povos indígenas, que de "garimpeiro artesanal" ou de fazendeiro que desmata para plantar soja. Também me pediram para cantar cantos indígenas brasileiros, sorte que eu me lembrava de alguns, cantei forte e na mesma hora desceu a maior chuva. A fondue da pajelança vibrou!

Também fiz uma modificaçãozinha na bandeira do Brasil: escrevi "amor" em tinha vermelha, antes de "ordem e progresso". Para não ser confundida com os que têm se apropriado politicamente da nossa bandeira sem se importar com o verde das matas, o amarelo do ouro, o azul do céu e do branco da paz... Queijo é muito político, que ninguém fique enganado!

Os campeões

A dupla que ganhou primeiro lugar, Jean-Jacques Vermeersch Couderc et Alban Rousseau, veio da Auvergne e inovou colocando genciana na fondue. O resultado foi uma fondue muito amarga para meu paladar, mas como os franceses adoram esse sabor, ela agradou bem. O segundo lugar, uma dupla de Grenoble, nos Alpes, usou o licor "chartreuse", feito de uma mistura de mais de cem ervas. Também achei amargo. No final, fiquei felicíssima com o terceiro lugar. A dupla suíça ficou em 4º lugar, imaginem a tristeza delas, que vêm do país da fondue.

 

Dupla suíça. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

As outras duplas apelaram para todos os sabores: fondue com wasabi, com lagosta, com queijos da Normandia e maçã...

 

Dupla da Normandia, fantasiada de vaca Normande, que serviram a fondue com maçã em vez de pão. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromage

 

Outros dois prêmios foram distribuídos: o troféu da Animação, dado para a dupla local que se apresentou de short e torso nu, cantando forte e levando a plateia ao delírio; e o da Originalidade, da dupla Xavier Thuret et Jean-Charles Karman, que fizeram uma massa de profiteroles frita recheada com queijo brie de Meau derretido... Mas só os três primeiros lugares estão classificados para o Mundial de Fondue na Suíça em 2023. Brasiiiil, vamos que vamos!

Foi um desafio quando o organizador do Campeonato Francês de Fondue me telefonou em janeiro para pedir que eu indicasse uma dupla de brasileiros para concorrer ao concurso que ocorreu ontem, 13 de março, na cidade de Montréjeau, nos Pirineus. Ele apelou : "Débora, com todas essas medalhas que vocês ganharam na França, vocês têm obrigação de concorrer a este concurso, se ninguém puder vir vai ser você mesmo!". Como dizemos em Minas: jogou o sapo n'água.

 

Dominique Bouchait, MOF francês e organizador do concurso. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Não sabia de nenhum produtor brasileiro vindo para a França e sei o investimento que isso representa, então convidei para participar comigo Jeanne Lohro, francesa que morou um ano em Natal (RN) e fala português sem sotaque.

 

Eu e Jeanne Lohro recebendo o troféu de bronze. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Fizemos a inscrição da equipe "Neotropical" para fazer a fondue brasileira. Começamos os testes. A primeira tentativa foi um desastre. A partir das dicas de algumas receitas encontradas em livros e na internet, esquentamos o vinho branco com alho e depois colocamos o queijo ralado, virou uma sopa com gordura boiando por cima. Foi urgente a busca de conhecimento teórico... Descobri com ajuda do professor Antônio Fernandes, da Universidade Federal de Viçosa, que uma boa fondue precisa ter queijos bem velhos, cuja caseína já foi bem degradada pela maturação, para dar gosto e tipicidade à mistura, e de queijos mais novos, para dar consistência e não ficar muito líquido. Então usamos dois queijos da Pardinho Artesanal, o Mandala curado 12 meses e o Mandalinha, curado 6 meses, ambos são peças de 10 kg, feitas de um blend de leites de vacas Gir e Jersey, respeitando sempre um mínimo de 50% de leite de vacas Gir.

Mas eu ainda precisava de um queijo mais forte, porque os paladares dos jurados estariam muito saturados de provar tantos queijos. Pedi ajuda aos amigos suíços que me enviaram uma grande peça de gruyère DOP curado 18 meses. A combinação perfeita em textura e sabor! Mas os jurados quiseram saber : "o que um queijo suíço faz em uma receita brasileira?". Resposta fácil: há 500 anos, nem vaca a gente tinha no Brasil. Fomos colonizados primeiro por portugueses, holandeses, franceses, depois vieram os alemães, italianos, japoneses, suíços... e no estado do Rio de Janeiro, temos até Nova Friburgo, cidade onde se desenvolveu uma escola queijeira que ensina os queijos suíços tradicionais.

 

Nossa fondue brasileira! FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para me distinguir das receitas comuns de fondue com vinho branco, escolhi uma boa cerveja. Na França, eu moro em Lille, nos Flandres, onde tem cervejas maravilhosas. Escolhi uma chamada Bon Vivant, envelhecida em barris de champagne. O resultado foi uma fondue mais aerada e com mais gosto de leveduras, sem nenhum amargor. E no lugar da kirsch, que é um destilado de cerejas usado pelos suíços na hora de servir a fondue, usamos cachaça Kapoeira, importada do Brasil e bem aromática, que acrescentamos flambada. Deu a leveza que faltava para digerir a massa forte em gordura.

 

Bebidas usadas na fondue Neotropical. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para provocar as papilas dos jurados, fiz um blend de pimentas-do-reino moídas no pilão, colocadas antes de servir, e acrescentei umas gotinhas de caldo de pimenta malagueta, para ficar bem suave, porque sei que os europeus não gostam de nada muito picante. Para dar o golpe final da gostosura, assei pães de queijo do Monsieur Pão de Queijo e tirei a parte superior e miolo de cada um para encher de fondue.

 

Um público de 800 pessoas assistiu ao campeonato. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Uma semana antes do concurso, uma surpresa: mudaram o regulamento e pediram para cada dupla vir vestida à caráter, de acordo com sua cultura e região. Liguei para o organizador para saber mais, ele me disse: "Fácil Débora! Você vem vestida de passista de escola de samba, com o corpo melado de purpurina, fio dental, salto alto e plumas na cabeça!" Oi? Produção, é isso mesmo? Imaginei logo a cara da minha mãe. Incrível como o imaginário dos europeus apela sempre para essa imagem da mulher brasileira. Nada contra as lindas passistas de escola de samba, mas eu sou uma filha dos montes de Minas Gerais e não ia pagar esse mico, ainda por cima no inverno francês.

Antes de eu ser abduzida pelo mundo do queijo, eu já tinha trabalhado no Acre para a gestão da mitigação dos povos indígenas dos territórios por onde passa a rodovia que liga Rio Branco a Cruzeiro do Sul. Nessa época, em 2009, eu fiz grandes amigos na Amazônia. Ganhei de presente cocares que são sagrados para mim, ficam guardados no meu altar ao lado de Santo Uguzon, protetor dos queijeiros. Eles são de uma beleza que deixa as pessoas emocionadas, são artefatos pelos quais eu tenho um respeito imenso.

Explico tudo isso porque recebi alguns cancelamentos no Instagram depois que publiquei o vídeo da minha apresentação: "como pode alguém ainda usar um cocar para representar o Brasil?". A resposta é fácil, neste momento onde os brasileiros têm uma péssima reputação na Europa, prefiro mil vezes me decorar de plumas em homenagem aos povos indígenas, que de "garimpeiro artesanal" ou de fazendeiro que desmata para plantar soja. Também me pediram para cantar cantos indígenas brasileiros, sorte que eu me lembrava de alguns, cantei forte e na mesma hora desceu a maior chuva. A fondue da pajelança vibrou!

Também fiz uma modificaçãozinha na bandeira do Brasil: escrevi "amor" em tinha vermelha, antes de "ordem e progresso". Para não ser confundida com os que têm se apropriado politicamente da nossa bandeira sem se importar com o verde das matas, o amarelo do ouro, o azul do céu e do branco da paz... Queijo é muito político, que ninguém fique enganado!

Os campeões

A dupla que ganhou primeiro lugar, Jean-Jacques Vermeersch Couderc et Alban Rousseau, veio da Auvergne e inovou colocando genciana na fondue. O resultado foi uma fondue muito amarga para meu paladar, mas como os franceses adoram esse sabor, ela agradou bem. O segundo lugar, uma dupla de Grenoble, nos Alpes, usou o licor "chartreuse", feito de uma mistura de mais de cem ervas. Também achei amargo. No final, fiquei felicíssima com o terceiro lugar. A dupla suíça ficou em 4º lugar, imaginem a tristeza delas, que vêm do país da fondue.

 

Dupla suíça. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

As outras duplas apelaram para todos os sabores: fondue com wasabi, com lagosta, com queijos da Normandia e maçã...

 

Dupla da Normandia, fantasiada de vaca Normande, que serviram a fondue com maçã em vez de pão. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromage

 

Outros dois prêmios foram distribuídos: o troféu da Animação, dado para a dupla local que se apresentou de short e torso nu, cantando forte e levando a plateia ao delírio; e o da Originalidade, da dupla Xavier Thuret et Jean-Charles Karman, que fizeram uma massa de profiteroles frita recheada com queijo brie de Meau derretido... Mas só os três primeiros lugares estão classificados para o Mundial de Fondue na Suíça em 2023. Brasiiiil, vamos que vamos!

Foi um desafio quando o organizador do Campeonato Francês de Fondue me telefonou em janeiro para pedir que eu indicasse uma dupla de brasileiros para concorrer ao concurso que ocorreu ontem, 13 de março, na cidade de Montréjeau, nos Pirineus. Ele apelou : "Débora, com todas essas medalhas que vocês ganharam na França, vocês têm obrigação de concorrer a este concurso, se ninguém puder vir vai ser você mesmo!". Como dizemos em Minas: jogou o sapo n'água.

 

Dominique Bouchait, MOF francês e organizador do concurso. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Não sabia de nenhum produtor brasileiro vindo para a França e sei o investimento que isso representa, então convidei para participar comigo Jeanne Lohro, francesa que morou um ano em Natal (RN) e fala português sem sotaque.

 

Eu e Jeanne Lohro recebendo o troféu de bronze. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Fizemos a inscrição da equipe "Neotropical" para fazer a fondue brasileira. Começamos os testes. A primeira tentativa foi um desastre. A partir das dicas de algumas receitas encontradas em livros e na internet, esquentamos o vinho branco com alho e depois colocamos o queijo ralado, virou uma sopa com gordura boiando por cima. Foi urgente a busca de conhecimento teórico... Descobri com ajuda do professor Antônio Fernandes, da Universidade Federal de Viçosa, que uma boa fondue precisa ter queijos bem velhos, cuja caseína já foi bem degradada pela maturação, para dar gosto e tipicidade à mistura, e de queijos mais novos, para dar consistência e não ficar muito líquido. Então usamos dois queijos da Pardinho Artesanal, o Mandala curado 12 meses e o Mandalinha, curado 6 meses, ambos são peças de 10 kg, feitas de um blend de leites de vacas Gir e Jersey, respeitando sempre um mínimo de 50% de leite de vacas Gir.

Mas eu ainda precisava de um queijo mais forte, porque os paladares dos jurados estariam muito saturados de provar tantos queijos. Pedi ajuda aos amigos suíços que me enviaram uma grande peça de gruyère DOP curado 18 meses. A combinação perfeita em textura e sabor! Mas os jurados quiseram saber : "o que um queijo suíço faz em uma receita brasileira?". Resposta fácil: há 500 anos, nem vaca a gente tinha no Brasil. Fomos colonizados primeiro por portugueses, holandeses, franceses, depois vieram os alemães, italianos, japoneses, suíços... e no estado do Rio de Janeiro, temos até Nova Friburgo, cidade onde se desenvolveu uma escola queijeira que ensina os queijos suíços tradicionais.

 

Nossa fondue brasileira! FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para me distinguir das receitas comuns de fondue com vinho branco, escolhi uma boa cerveja. Na França, eu moro em Lille, nos Flandres, onde tem cervejas maravilhosas. Escolhi uma chamada Bon Vivant, envelhecida em barris de champagne. O resultado foi uma fondue mais aerada e com mais gosto de leveduras, sem nenhum amargor. E no lugar da kirsch, que é um destilado de cerejas usado pelos suíços na hora de servir a fondue, usamos cachaça Kapoeira, importada do Brasil e bem aromática, que acrescentamos flambada. Deu a leveza que faltava para digerir a massa forte em gordura.

 

Bebidas usadas na fondue Neotropical. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Para provocar as papilas dos jurados, fiz um blend de pimentas-do-reino moídas no pilão, colocadas antes de servir, e acrescentei umas gotinhas de caldo de pimenta malagueta, para ficar bem suave, porque sei que os europeus não gostam de nada muito picante. Para dar o golpe final da gostosura, assei pães de queijo do Monsieur Pão de Queijo e tirei a parte superior e miolo de cada um para encher de fondue.

 

Um público de 800 pessoas assistiu ao campeonato. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

Uma semana antes do concurso, uma surpresa: mudaram o regulamento e pediram para cada dupla vir vestida à caráter, de acordo com sua cultura e região. Liguei para o organizador para saber mais, ele me disse: "Fácil Débora! Você vem vestida de passista de escola de samba, com o corpo melado de purpurina, fio dental, salto alto e plumas na cabeça!" Oi? Produção, é isso mesmo? Imaginei logo a cara da minha mãe. Incrível como o imaginário dos europeus apela sempre para essa imagem da mulher brasileira. Nada contra as lindas passistas de escola de samba, mas eu sou uma filha dos montes de Minas Gerais e não ia pagar esse mico, ainda por cima no inverno francês.

Antes de eu ser abduzida pelo mundo do queijo, eu já tinha trabalhado no Acre para a gestão da mitigação dos povos indígenas dos territórios por onde passa a rodovia que liga Rio Branco a Cruzeiro do Sul. Nessa época, em 2009, eu fiz grandes amigos na Amazônia. Ganhei de presente cocares que são sagrados para mim, ficam guardados no meu altar ao lado de Santo Uguzon, protetor dos queijeiros. Eles são de uma beleza que deixa as pessoas emocionadas, são artefatos pelos quais eu tenho um respeito imenso.

Explico tudo isso porque recebi alguns cancelamentos no Instagram depois que publiquei o vídeo da minha apresentação: "como pode alguém ainda usar um cocar para representar o Brasil?". A resposta é fácil, neste momento onde os brasileiros têm uma péssima reputação na Europa, prefiro mil vezes me decorar de plumas em homenagem aos povos indígenas, que de "garimpeiro artesanal" ou de fazendeiro que desmata para plantar soja. Também me pediram para cantar cantos indígenas brasileiros, sorte que eu me lembrava de alguns, cantei forte e na mesma hora desceu a maior chuva. A fondue da pajelança vibrou!

Também fiz uma modificaçãozinha na bandeira do Brasil: escrevi "amor" em tinha vermelha, antes de "ordem e progresso". Para não ser confundida com os que têm se apropriado politicamente da nossa bandeira sem se importar com o verde das matas, o amarelo do ouro, o azul do céu e do branco da paz... Queijo é muito político, que ninguém fique enganado!

Os campeões

A dupla que ganhou primeiro lugar, Jean-Jacques Vermeersch Couderc et Alban Rousseau, veio da Auvergne e inovou colocando genciana na fondue. O resultado foi uma fondue muito amarga para meu paladar, mas como os franceses adoram esse sabor, ela agradou bem. O segundo lugar, uma dupla de Grenoble, nos Alpes, usou o licor "chartreuse", feito de uma mistura de mais de cem ervas. Também achei amargo. No final, fiquei felicíssima com o terceiro lugar. A dupla suíça ficou em 4º lugar, imaginem a tristeza delas, que vêm do país da fondue.

 

Dupla suíça. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromager

 

As outras duplas apelaram para todos os sabores: fondue com wasabi, com lagosta, com queijos da Normandia e maçã...

 

Dupla da Normandia, fantasiada de vaca Normande, que serviram a fondue com maçã em vez de pão. FOTO: Arnaud Sperat Czar/Profession Fromage

 

Outros dois prêmios foram distribuídos: o troféu da Animação, dado para a dupla local que se apresentou de short e torso nu, cantando forte e levando a plateia ao delírio; e o da Originalidade, da dupla Xavier Thuret et Jean-Charles Karman, que fizeram uma massa de profiteroles frita recheada com queijo brie de Meau derretido... Mas só os três primeiros lugares estão classificados para o Mundial de Fondue na Suíça em 2023. Brasiiiil, vamos que vamos!

Opinião por Débora Pereira

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