E se o super emblemático Penicillium camemberti desaparecesse da paisagem? Na verdade, este mofo, que deve o seu sucesso à sua bela feltragem branca e imaculada, nunca existiu na natureza: só se encontra nos produtos lácteos, pois é fruto da domesticação do homem. Mas até quando poderemos usar? "Não por toda a eternidade, ele está condenado", disse Jeanne Ropars, uma jovem pesquisadora do CNRS, na França, que começou a explorar sua história evolutiva. Trabalho sem precedentes que nunca havia sido feito antes. "O homem o selecionou e domesticou", explica ela, em seu escritório na Universidade de Paris-Saclay. Tanto que hoje "todos os fabricantes usam a mesma linha clonal única. Mas, de acordo com nosso trabalho, ela está se degenerando, o cenário de sua total extinção é possível."
Graças aos Briards
O camembert privado do Penicillium camemberti ? Inimaginável! Jeanne Ropars reconstruiu pacientemente as causas da evolução desse cenário inesperado, valendo-se da exploração do DNA do mofo e relacionando isto com dados históricos. Até voltar à cena original que vai acionar a engrenagem que a pesquisadora considera fatal. "Tudo começou na região de Brie, onde os Briards faziam queijos que não tinham cascas uniformes. Às vezes bries brancos, mas mais frequentemente azuis, cinzas, verdes... Isso pode ser visto muito claramente em uma pintura de Marie-Jules Justin, "Sinfonia de Queijos em Brie Maior", exibida em 1888 no Salão de Paris, com um queijo brie expondo seus tons esverdeados, laranjas, cinzentos, onde é difícil distinguir a mais ligeira mancha branca. Essa irregularidade representava problemas para os fabricantes de queijo. A flora branca era mais bem valorizada. Quando ela desaparecia, os fabricantes desinfetavam suas instalações e buscavam nos vizinhos um pouco de boa flora. Com mais ou menos sucesso," disse ela.
A Sociedade Agrícola de Meaux finalmente se mobilizou sobre o assunto no final do século XIX. Desde o trabalho de Pasteur, o conhecimento do papel dos micróbios só cresceu. Há grande esperança de que sejamos capazes de superar os caprichos do acaso por meio de um melhor controle dos micróbios, que agora entendemos serem os principais atores na aparência dos queijos.
"Aparência instável"
Foi um Briard, aposentado há um ano, que deu o passo decisivo em 1897. A história é conhecida, foi atualizada e recontada em detalhes por Pierre Boisard em seu livro publicado em 1992, "O camembert, mito nacional", e por Claire Delfosse em sua "História de bries", publicada em 2008.
O messias dos queijos bries, Georges Roger, era ex-chefe de um moinho de grãos em La Ferté-sous-Jouarre, vila na região de Seine-et-Marne, pertinho de Paris. "Este homem curioso decidiu começar a estudar microbiologia na sua aposentadoria, até o dia em que a associação de agricultores de Meaux pediu a ele para ajudar a melhorar a fermentação de seus queijos, pois a qualidade e aparência eram instáveis. Georges Roger procurou Emile Duclaux, diretor do Instituto Pasteur, e, aconselhado por ele, começou a cultivar os microrganismos retirados da casca dos queijos de Brie. Foi assim que ele conseguiu em 1897 isolar Penicillium candidum [nota do editor: que mais tarde seria rebatizada de P. camemberti] e, em seguida, estabelecer um método racional de inoculação de queijos".
Em 1897, na região de Brie, na França, um aposentado debutante em micro-biologia isolou a cêpa que deu o mofo totalmente branco.
"Guardar bem o segredo"
O aprendiz de microbiologia começou a produzir culturas puras em seu laboratório e a comercializá-las. O sucesso foi imediato e levou à criação dos Laboratórios Roger, que foram adquiridos, ao longo das décadas, pela SKW bio Système, Sanofi, Degussa, Cargill, DSM e depois por Lallemand que agora é dona da sede inicial da empresa em La Ferté-sous-Jouarre.
Há pouco mais de um século, os Briards se maravilharam por conseguir pela primeira vez terem queijos de brancura garantida! Encontramos no site do Museu Seine-et-Marne, uma citação de George Roger, perfeitamente ciente do que estava em jogo: "Será que vou precisar contar para vocês as consequências desses estudos para nossa região? Espero que o segredo seja guardado o maior tempo possível, para que vocês possam ficar à frente da concorrência."
Mas a notícia não demorou muito para chegar à Normandia. Um de seus ex-colaboradores, Émile Louïse, que se tornou diretor da estação agronômica de Caen, propôs introduzir a nova prática nas terras do camembert. Ou pelo menos tentar introduzir, porque a resistência foi grande. Mazé, um pesquisador do Instituto Pasteur, publicou um artigo pouco convidativo em 1905: "Os queijos que contêm P. candidum são muito difíceis de curar e não têm a finesse dos queijos brie e camembert reais. Eles são cobertos por uma espessa camada de esporos brancos que mais parece uma camada de gesso."
Relutância da Normandia
Os normandos foram cedendo aos poucos. "Durante vários anos, o Instituto Pasteur forneceu sob demanda as duas cepas, album (o Penicillium que fica azul esverdeado) e candidum. A mudança de cor não aconteceu de forma abrupta. Os primeiros camemberts brancos apareceram na virada do século, mas até 1930 os camembert azuis ainda eram produzidos. Levará entre vinte e cinco e trinta anos para que o branco reine supremo sobre as cascas. O mercado fez sua escolha," disse Pierre Boisard.
Voltamos para a Universidade de Saclay, em Paris. "Desde essa época, nunca mais paramos de inocular a linhagem isolada por Georges Roger em camemberts e bries", disse Jeanne Ropars, cujo trabalho tem como foco a domesticação de fungos. "Do ponto de vista científico, muito pouco se sabia até agora sobre a história evolutiva do P. camemberti, como surgiu esta cepa, como conseguiu se adaptar a este ambiente tão particular que é um queijo, longe do ambiente natural de um Penicillium," disse ela.
Mutante branco
A pesquisadora começou comprando e coletando cepas de cascas de queijos brie e camembert e outros queijos de casca florida, como o saint-marcellin e rigottes de condrieu, em lojas e em coleções públicas de cepas. "Nós sequenciamos todo o seu DNA para obter o genoma completo e poder rastrear sua história evolutiva. E, portanto, entender como os humanos conseguiram domesticar esse fungo. Os genomas de 19 cepas de P. camemberti foram sequenciados. Ao mesmo tempo, mergulhei em arquivos e literatura. Isso nos permitiu entender desde quando começamos a usar este mutante branco".
Um mutante? "Sim", ela responde. "Descobrimos que se trata de uma espécie que era cinza azulada. Esse fenômeno também é observado em cepas de P. roqueforti, que geralmente são muito verdes. Às vezes, um mutante branco aparece. Se for selecionado, transplantado, transplantado, o Penicillium isolado será sempre branco..."
Outra lição importante: "Este Penicillium camemberti é uma linha clonal. Em todos os queijos do tipo brie ou camembert coletados, não encontramos praticamente nenhuma variabilidade genética: Penicillium camemberti var. Camemberti [nota: como o Homo sapiens sapiens, a repetição não é um erro]. O estudo dos genomas nos mostra que houve uma seleção muito forte, tão forte que hoje apenas um clone é usado e replicado."
Esta seleção foi feita visando seu traço distintivo, que lhe confere o aspecto tão apetitoso: "a sua cor branca, a sua textura muito felpuda e aveludada - os outros Penicilliums são muito mais rasos. O homem também selecionou uma linha que cresceu pouco radialmente, mas muito verticalmente, o que era bom para excluir contaminantes...Nós identificamos outra variedade de Penicillium camemberti, a variedade caseifulvum, muito próxima geneticamente a P. camemberti var. Camemberti (mais de 99,998% de identidade entre as duas variedades em todo o seu genoma!) Que parece ser usado para outros tipos de queijo, como rigotte de condrieu ou saint-marcellin. Esta variedade também é felpuda, mas menos do que P. camemberti var. camemberti, e não é branca, mas cinza-azulada, cresce muito mais rápido do que P. camemberti var. camemberti. Também é uma linha clonal, derivada do mesmo mutante inicial, usada apenas na fabricação de queijos. Pode haver outras variedades, mas não isolei nenhuma nos queijos coletados. Talvez os industriais produtores de fermentos tenham outros em suas coleções," espera a pesquisadora.
" P. camemberti var. camemberti agora está completamente degenerado. Ele perdeu funções, não sabemos se ele ainda é capaz de se reproduzir sexualmente, seu nível de produção de esporos é dramaticamente baixo"
"Completamente degenerado"
Fomos longe demais? "No mundo dos vivos", Jeanne responde, "sabemos que deve haver diversidade genética e fenotípica [nota do editor: características de aparência]. Neste caso, de fato, erradicamos essa diversidade. Como resultado, P. camemberti var. Camemberti agora está completamente degenerado. Ele perdeu funções, como a capacidade de crescer em condições adversas.
Não sabemos se ele ainda é capaz de se reproduzir sexualmente, seu nível de produção de esporos é dramaticamente baixo, o que são problemas para a preservação, transplante e inoculação das cepas no leite no início do processo de fabricação. Em laboratório, observa-se que P. camemberti var. camemberti cresce muito mal em placas de Petri e dificilmente produz esporos. Isso deve ser um problema para os fornecedores de fermentos, pois os fabricantes de queijo precisam usar mais quantidade do que antes. Ou seja, seu fim é inevitável, virá um dia ou outro." Como tal cenário poderia acontecer? "Essa domesticação", continua ela, "leva à perda de certas capacidades de viver em outros ambientes. Assim como os humanos domesticaram o cão a partir do lobo, selecionando comportamentos e aparências específicos, mofos foram domesticados para escolher aqueles que produziam o melhor queijo. Mas um cão domesticado que abandonamos na natureza certamente não sobreviverá, não saberá como se defender, como se alimentar ... Mofos de queijo foram selecionados para crescer neste ambiente rico que são os queijos e perderam a habilidade de crescer em um ambiente pobre.
Normalmente, quando temos uma diversidade de cepas na natureza, elas vão, graças à reprodução sexuada, se misturar, misturar seu material genético e vamos manter uma certa diversidade. Se você esgotar essa diversidade, se você selecionar apenas um único mutante, deixá-lo sozinho, sem nenhuma outra cepa para se misturar, ele irá evoluir, fazer mutações.
Sem a reprodução sexuada, surgem mutações deletérias, que inexoravelmente se acumulam, sem poderem ser reparadas ou substituídas. A espécie não conseguirá sobreviver. Este é o cenário provável com as duas variedades clonais de Camemberti. Se as mutações deletérias se acumularem, elas irão degenerar até que a cepa se torne inutilizável". A pesquisadora está realizando um estudo específico para quantificar essas mutações deletérias.
" O Penicillium camemberti utilizado hoje vem de uma espécie que era cinza-azulada. Um mutante branco foi isolado."
Os medos dos profissionais
Na região francesa da Normandia, cidade de Caen, a professora de microbiologia da Universidade de Caen-Normandia Nathalie Desmasures, descobriu com interesse o trabalho de Jeanne Ropars.
Nathalie gerencia uma coleção de cepas microbianas de interesse alimentar, incluindo cerca de 5.000 vindas do ambiente leiteiro da Normandia, batizada Conobial. "Isso inclui bactérias, bem como mofos e leveduras ... Temos cerca de quinze cepas de P. camemberti: 3 de coleções internacionais, 11 correspondendo a fermento comercial, a maioria das quais coletadas em 1986, 1 cepa isolada de queijo de cabra em 1996 (portanto, a priori uma cepa comercial). Mas trabalhamos muito pouco nisso", disse ela.
As conclusões da colega Jeanne confirmam o que escuta em seus trabalhos de campo: "alguns profissionais do setor de queijos DOP estão preocupados em ver a oferta de culturas de Penicillium camemberti vendidas no mercado diminuir gradualmente, com um número muito pequeno de cepas que ganham adesão e algumas outras, que existiam nos catálogos, que parecem desaparecer aos poucos. Para os fabricantes de queijo, isso se traduz em uma gama cada vez menos diversificada de fermentos. Talvez a longo prazo, não haverá opção de grupos microbianos que hoje contribuem para a definição de certos queijos. Os produtos serão menos típicos, menos diversificados de uma queijaria para outra, são medos que ouvimos regularmente."
O exemplo dos lactococcus
A pesquisadora normanda traça um paralelo com trabalhos anteriores que realizou com lactococcus em leite cru da Normandia. "Com o tempo, certas propriedades de interesse tecnológico que haviam sido detectadas em cepas da coleção formada há 30-40 anos na Normandia não foram mais encontradas nas cepas isoladas nos anos 1990-2000 em leite cru. Em vinte anos, certos traços de expressão desapareceram. A hipótese é que as pressões antrópicas exercidas pelo meio ambiente teriam elegido as cepas mais competitivas em detrimento das demais."
A microbiologista traça o processo de seleção que ocorre, de fato, nas queijarias: "Restrições muito variadas podem ser exercidas sobre grupos de cepas. Elas podem ser associados ao processo (concentração de sal, pH, etc.), mas também a certas práticas de agropecuária: o uso de produtos de desinfecção para máquinas de ordenha, temperaturas de refrigeração do leite e, provavelmente, também a forma de manejo de pastos, feno e ração animal. Essas restrições vão agir gradualmente, selecionando as variedades mais fortes capazes de ganhar esta competição. Os mais fracos ficam no caminho. Gradualmente, a diversidade diminui até, talvez, o desaparecimento de algumas espécies".
Chamada para doadores
"Se o P. camemberti for muito degenerado", disse Jeanne Ropars, "ele perde a capacidade de se reproduzir sexualmente. Conseguimos reproduzir o Penicillium roqueforti sexualmente, mas não o P. camemberti. Podemos nunca mais conseguir. Ele pode ter perdido essa habilidade.
Muito próximo geneticamente ao Penicillium camemberti, também existe o Penicillium biforme. Esta espécie é própria do ambiente queijeiro, encontra-se em muitos queijos, principalmente na casca de queijos azuis. Observamos uma diversidade de cores entre as cepas de P. biforme, de branco a azul-cinza. Este não é um clone, temos grande diversidade genética e fenotípica. Comparado com as espécies selvagens mais próximas, possui genes e aparência que o diferenciam. Ele também foi domesticado, uma particularidade que atribuímos a uma cepa quando duas condições são satisfeitas: diferenças genéticas e fenotípicas (ou seja, aspecto) com cepas selvagens."
Jeanne Ropars gostaria de trabalhar com produtores de fermento a partir de agora. "Talvez não tenhamos isolado queijos diferentes o suficiente", admite ela. Gostaríamos de poder estudar as cepas presentes em seus catálogos". Para bom entendedor, meia palavra basta.
Olhando para o futuro, a pesquisadora aponta para o perigo da perda de biodiversidade. "Preservar é muito importante! Antes, gostávamos de diversidade. Para ter queijos mais vendáveis, mais apetitosos, queijos perfeitos, os queijeiros padronizaram a oferta. Isso levou à perda da diversidade. Mas uma baixa diversidade genética impede a continuação do processo de melhoramento e diversificação variável, de adaptação a novos usos, condições ou substratos, e ainda leva a termo uma degeneração da espécie, principalmente em uma que se multiplica de forma assexuada."
O caso especial de Penicillium roqueforti
Devemos ter medo de perder P. camemberti? Certamente, a notícia lançaria uma mancha sobre o veludo branco do mais icônico queijo francês. Mas os fornecedores de fermento já têm uma alternativa a oferecer: Geotrichum candidum, com centenas de cepas disponíveis e uma ampla gama de recursos. Este tem a qualidade de ser mais gentil que o P. camemberti: mais fino, menos proteolítico ... Já está vestindo os bries e camemberts modernos.
"Não temos os mesmos problemas com o Geotrichum Candidum que temos com o P. camemberti", comenta Nathalie Desmasures: "é uma espécie de levedura muito presente no meio ambiente, nos suportes das plantas, no solo, nas plantas, no leite cru, nos queijos e ambientes leiteiros. É onipresente, é um microrganismo ubíquo. Há uma diversidade a nível das cepas, que vão se traduzir, no mundo dos queijos, em diferenças em termos de aspecto - do liso e cremoso ao branco textura de feltro - com propriedades enzimáticas, capacidade de desacidificar a massa e produzir compostos aromáticos..."
Fermento de segurança
O Geotrichum é o novo sujeito de estudo de Jeanne Ropars. "Sequenciamos mais de 70 genomas de cepas isoladas em diferentes ambientes, não apenas em queijos. Existe uma grande diversidade genética. Certamente existe um clone que pode ser encontrado em muitos queijos, mas ainda existe uma grande diversidade. Esta espécie não segue o caminho do P. camemberti."
O caso do Penicillium camemberti não é único, segundo Jeanne Ropars. "Temos o mesmo fenômeno com os queijos azuis, com o P. roqueforti. Azuis do mundo todo usam o mesmo clone, a mesma cepa, seja o queijo cabrales, a fourme d'Ambert ou o stilton ... Com uma grande exceção: os fabricantes de Roquefort conseguiram preservar a diversidade, cada um usa as suas cepas específicas."
Existem ainda algumas vias para "salvar o PC": "em vez de sempre cultivá-lo em um meio que promova seu crescimento sem mistura genética", diz Jeanne Ropars, "devem ser identificadas condições para estimular sua reprodução sexuada e, assim, gerar variabilidade genética. Isso ocorre porque os mofos geralmente são capazes de se reproduzir sexualmente ou assexuadamente, dependendo das condições, e "seria suficiente" identificar as condições certas para estimular a reprodução sexual do Penicillium camemberti". Contanto que ele não tenha perdido essa habilidade para sempre...
Caso contrário, "teria que ser misturado com Penicillium biforme por exemplo, alguns dos quais são brancos. Pode-se tentar regenerar a diversidade genética dessa forma, induzindo sua reprodução sexual". Bom, o P. Camemberti ainda não disse sua última palavra.
Texto de Arnaud Sperat Czar, da revista Profession Fromager traduzido livremente do francês