Com a sensação de ser um cometa atravessando a via láctea, passei 17 dias no Brasil, dez na companhia do amigo queijeiro francês Pierre Coulon, da Lateirie de Paris. Uma viagem para dar formações sobre fabricação, cura e análise sensorial de queijo, mas também principalmente para conhecer novos queijos e novos produtores geniais que tem movimentado a via láctea brasileira. Conto tudo para vocês neste diário de viagem, divido em fatias:
blockquoteCampo das Vertentes, revisitando o queijo minas artesanal
A nossa ida a charmosa cidade de Coronel Xavier Chaves, de pouco mais de 3 mil habitantes, ao ladinho de Tiradentes foi motivada pelo convite da Associação dos Produtores de Queijos Artesanais de Minas do Campo das Vertentes-Aqmav, que reúne 17 produtores.
"A gente queria aprender novas formas de agregar valor ao queijo, partindo da receita do queijo minas artesanal," disse Mariana Resende, 3ª geração do queijo catauá, delícia conhecida pelos suas pequenas olhaduras que dão gosto e sabor à massa e pela rendinha que envolve caprichosamente o queijo. Foram dois dias de cursos onde explicamos o que fazer, em termos de fabricação ou de cura, para deixar o queijo minas mais macio, mais complexo em sabores e com cascas originais. Para os produtores, o Festival do Queijo e da Cachaça foi uma excelente oportunidade de vender queijos para uma multidão gulosa de turistas e ainda curtir um programa cheio de atividades, como a degustação comentada de Eduardo Tristão Girão.
Queijo picante, cachaça ardente
A particularidade do queijo minas artesanal que usa pingo, um fermento nativo feito do soro salgado da fabricação do dia anterior, é que a massa fica quebradiça devido a uma acidez muito forte. A cura em temperatura ambiente colabora para a formação de uma casca grossa e amarelada, deixando o interior mais duro e branco (veja esquema abaixo).
"Nunca tinha visto uma receita parecida," disse o francês, "é incrível que ela tenha surgido há mais de 300 anos como forma de conservar o leite em uma região de difícil acesso. É curioso também observar que no Brasil, por ser um país quente, as pessoas adoram queijo bem secos, de sabores picantes e ardentes, e apreciam mesmo o gosto de oxidado quando o queijo transpira gordura, bom para comer com uma cachaça".
Vontade de inovar
"Nosso carro chefe é o queijo minas artesanal, mas o mercado está muito competitivo, estamos vendo produtores que inovam em formatos, cores e sabores de queijo e isso nos inspira," disse a produtora Tereza Rodrigues, da Fazenda Saudade, que além do queijo minas artesanal faz o queijo lasquinha, bem curado, para comer em aperitivos.
Por isso convidamos a produtora paulista Carolina Vilhena, da Bela Fazenda, para testar protocolos de cura no Brasil dois meses antes do curso, e levamos os queijos curados para os produtores mineiros degustarem. "Foi a primeira vez que fiz queijo tipo minas de leite cru, dá bastante trabalho apertar o queijo com o tecido para espremer, como os mineiros fazem," disse ela. Na parte da fabricação, nós demos dicas como cortar o grão maior ou lavar a massa com água na mesma temperatura da coalhada, a fim de ter queijos mais úmidos e menos quebradiços.
O antes e o depois do queijo minas artesanal
A região do Campo das Vertentes fica na Serra da Mantiqueira e há registros de produção de queijo desde o século XVIII. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire citou a prática em seu livro Viagem às Nascentes do Rio São Francisco, publicado em Paris em 1848, "tão logo o leite é tirado, coloca-se nele o coalho. As formas são de madeira e de feitio circular...".
Hoje não pode mais usar forma de madeira, nem mesa de dessorar de madeira, como na época de Saint-Hilaire, são itens proibidos pelos fiscais sanitários. Outra dificuldade dos produtores mineiros é que a legislação não permite que eles experimentem novos queijos nas suas queijarias certificadas. "Fica difícil poder criar novas receitas fora da queijaria," confessou uma produtora, que costuma curar queijos diferentes em uma geladeira com temperatura e higrometria controladas de forma improvisada.
O professor Antonio Fernandes (UFV/SerTãoBras) se juntou a nós na aula de análise sensorial que aconteceu na praça da cidade, no encerramento do evento, com queijos locais, dos mais frescos aos mais curados. “É importante ensinar aos produtores o queijobulário, para que eles aprendam a falar melhor dos próprios queijos, criando argumentos de venda,” disse ele. O Festival aconteceu com a ajuda da prefeitura da cidade e do Sebrae.