Quando se fala em comida portuguesa no Brasil, é uma unanimidade pensar no bacalhau, o ingrediente de origem nórdica que virou um símbolo da gastronomia lusa com raízes católicas e uma infinidade de preparos. Mas, justiça seja feita: o cozido à portuguesa, que entra na ementa da maioria dos restaurantes quando as temperaturas caem, também merece holofotes. Do lado de cá, a despedida, na maioria dos restaurantes, começa logo depois da Páscoa, quando as temperaturas começam a subir.
A última vez que provei essa delícia no Brasil, presente na carta de muitos restaurantes autenticamente lusos, foi no Rio de Janeiro, no Manoel & Juaquim, em Copacabana, em junho de 2022. Quando me mudei para Lisboa, no início de setembro do mesmo ano, qual não foi a decepção ao ser informada pelo garçom (ou, atendente de mesa, como dizem em Portugal). "À essa altura, vai ser difícil a senhora encontrar". É claro: os termômetros ainda passeavam pela casa do 25 graus, se não mais. Em meados de outubro, questão resolvida.
A afeição do prato ao outono e ao inverno faz muito sentido. É um prato com "sustança", feito com toda a sorte de embutidos - ou, enchidos - cozido por horas a fio em um saboroso caldo, onde depois são acrescidos legumes e outros ingredientes, de acordo com a região, já que a receita varia por toda a extensão de Portugal.
Quando decidi escrever sobre o tema, recorri ao gastrônomo Virgílio Nogueiro Gomes, que em seu livro Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional (Editora Marcador) discorre lindamente sobre o tema.
"A primeira receita de cozido escrita em Portugal é publicada na obra Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, em 1680, e tem a designação castelhana de Olla Podrida", explica. Ou seja, fica claro o diálogo com o cozido espanhol, dos quais o mais famoso é o madrilheno, que sempre leva grão-de-bico no preparo.
O curioso é que, lá atrás, o prato era comido nas mesas mais abastadas e levava ingredientes como carne de boi, galinha, adem (da família do pato), perdiz ou pombo, coelho, pernil e lombo de porco, embutidos como chouriço, nabo, alho, pão e grãos, como feijão ou grão-de-bico. "Com o tempo, a receita foi incorporada em outras mesas, de forma mais simplificada, e com adaptação de ingredientes de cada região", diz Virgílio. Atualmente, por exemplo, cenouras, batatas e couve, não a nossa mineira, mas um tipo de repolho.
Em seu livro, ele aponta, por exemplo, o cozido das regiões do Minho, dos Trás-os-Montes, do Barroso, das Beiras, da Estremadura, no Alentejo e nos Açores, onde o cozido é preparado a altas temperaturas, sob a terra aquecida pelas águas termais.
Na nossa Viagem Gastronômica pelo universo do cozido, nos concentramos em Lisboa para provar algumas versões do prato, cada qual com seu diferencial. Aqui, é importante lembrar que a lista é imensa e, inclusive nas tascas mais simples, é possível encontrar o prato, geralmente servido às quintas-feiras ou aos domingos.
O Nobre, por Justa Nobre
No tradicionalíssimo restaurante da chef Justa Nobre, O Nobre, o cozido é servido aos domingos e é preciso reservar com antecedência, pois as mesas são muito concorridas. A receita, como não poderia deixar de ser, é trasmontana, a região de origem da chef. Entre as carnes, tem frango, típico da preparação no Trás-os-Montes. "Colocamos todos os ingredientes e adicionamos a farinheira, que os clientes de Lisboa gostam muito. E optamos por servir os ingredientes separadamente, para que cada um escolha o que mais gosta", afirma Justa.
Para começar, a dica é tomar um fumegante caldo, servido em uma xícara (ou, chávena, como dizem em Portugal). Depois, é só escolher suas carnes, embutidos, legumes e verduras favoritos e se esbaldar, com direito a repeteco.
Planto, por Vítor Adão
O chef, nascido em Chaves, também no Trás-os-Montes, serve um cozido farto em seu restaurante mais acessível, o Planto - ele também está à frente do Plano, dedicado ao fine fining e que faz parte dos restaurantes recomendados do Guia Michelin. "Cuido de perto dos ingredientes, especialmente dos enchidos (embutidos)", garante Adão. Como entrada, tem alheiras com assinatura dele. Na grande travessa levada à mesa, tem o butelo, um enchido de porco, feito com o bucho (estômago) do animal e recheado de ossos e cartilagem das vértebras e costelas e algum tipo de carne.
Harmonia
O Chef Marco Costa aposta na cataplana, uma panela com tampa típica de Portugal, para levar o cozido à portuguesa, na versão tradicional, com feijão encarnado e repolho, à mesa. Assim, a porção fica aquecida à medida que é consumida. A receita tem aquele toque de afeto, já que o chef mantém vivas as tradições da família que sempre esteve ligada à cozinha: ele aprendeu a cozinhar com a mãe. Aliás, o restaurante se chama Harmonia em homenagem ao espaço que os pais tiveram durante décadas na Rua General Roçadas, que se chamava Harmonia das Beiras. O cozido é servido às quintas, na hora do almoço e durante todo o ano.
Lume
Como um bom restaurante tradicional de bairro, o Lume, que fica no Areeiro, serve a versão tradicional de cozido todos os domingos, durante a temporada que vai até abril. Uma porção serve, com fartura, duas pessoas ou até mais, a depender da fome dos comensais. Nos dias de cozido, é possível ver famílias inteiras reunidas para saborear o prato, tal como no passado, quando o cozido se popularizou por toda o Portugal.
Outras versões
O cozido faz tando sucesso entre os portugueses e é embutido de tanto sabor, que, muitas vezes, ultrapassa a tradição e se apresenta de outras maneiras. O chef Luís Gaspar - Sala de Corte, Brilhante e Pica-Pau - tem o cozido nesta última casa, que é dedicada à cozinha tradicional portuguesa. O prato segue no menu até meado de abril e é servido às quintas-feiras, em sua versão tradicional.
Mas, recentemente, durante o festival do Ribatejo e Alentejo, Gaspar aproveitou o jantar a seis mãos no restaurante Mapa, do L'AND, comandado pelo anfitrião David de Jesus, para inovar. E apresentou o prato na verão fining dining, com carne de boi (vaca) alentejana DOP, grãos e exemplares em versão miniatura de cenoura e nabo.
Terrine de Cozido
No Federico, do hotel Palácio Ludovice, em Lisboa, o cozido é apresentado em forma de terrine (ou, terrina, em Portugal). O chef Ricardo Simões se inspirou no preparo feito por sua mãe, considerada por ele a melhor cozinheira do mundo. O prato, criado para o menu de outono-inverno, apresenta todos os nuances e sabores da receita original, com aquele gostinho defumado super característico do prato.
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