“No começo de todo filme de desastre ambiental sempre há cientistas que são ignorados completamente”. A frase voltou à internet como parte do questionamento sobre as responsabilidades e possibilidades de prever (e evitar) a tragédia no Sul do Brasil. Os eventos climáticos e meteorológicos extremos, que têm sido mais frequentes, deflagam desastres sociais que revelam as desigualdades socioeconômicas e atingem, de maneira desumana, os mais vulneráveis. Diante da emergência de ouvir a ciência e usar dados confiáveis de forma tática para evitar perdas de vidas, surge a necessidade de traduzir esse conhecimento para que sirva de base à transformação.
De acordo com um estudo conduzido pela Universidade de Cambridge, um artigo científico pode levar 17 anos para gerar uma intervenção em saúde pública; apenas 14% deles, inclusive, atingem esse objetivo; 86% das pesquisas em saúde, por exemplo, estão em papers que não são lidos, fazendo com que US$ 200 bilhões em investimentos em pesquisas sejam perdidos anualmente. Entre as possíveis causas está a dificuldade de transformar evidências em soluções práticas, ou seja, em simplificar e traduzir a linguagem do “cientifiquês” para uma língua que as pessoas entendam – e para que possam gerar produtos, inovações e soluções que beneficiem a humanidade.
Nesse panorama, há uma gigante necessidade da chamada Tradução do Conhecimento (Knowledge Translation), uma abordagem focada em comunicar como as pesquisas podem ser aplicadas na prática. De maneira pioneira no Brasil, a startup EasyTelling tem atuado para traduzir, simplificar e comunicar evidências científicas para audiências que possam gerar impacto positivo com elas.
Fundada em 2019 pela jornalista Maria Paola Salvo – especialista há uma década em Knowledge Translation, com certificação da Universidade de Toronto e do Sick Kids Hospital (Canadá) – a EasyTelling teve início como uma consultoria e, desde 2023, a empreendedora tem buscado formas de automatizar o processo de tradução do conhecimento. Com o avanço dos modelos de inteligência artificial, combinado ao método proprietário de seis passos, usado por Paola há quatro anos para treinar mais de 400 pesquisadores no processo de traduzir os dados para uma audiência leiga, a solução se tornou uma plataforma – que estará disponível em junho de 2024 –, com foco em apoiar startups, PME e governos a enfrentarem os desafios da tradução e compreensão de artigos científicos.
Com investimento de R$ 600 mil do fundo Antler, a plataforma está automatizando e escalando a tradução do conhecimento. De um lado, ajuda empresas e governos a encontrarem as pesquisas científicas que respondem aos desafios reais em meio a uma base de 200 milhões de papers e a implementar essas evidências na prática. De outro, em um futuro próximo, oferecerá suporte ao pesquisador para que ele possa comunicar – a empresas, governos e investidores – os resultados da sua pesquisa, especialmente o que pode gerar para o mundo real (produto, política pública, tecnologia), o estágio em que se encontra o estudo e o que precisa para atingir os plenos objetivos, além de indicar instituições que possam aplicá-la na prática. Para tal, usa uma escala da Nasa.
No detalhe do funcionamento, Paola explica que a plataforma B2B recebe a demanda de governos e empresas – em formato de pergunta ou desafio – e ajuda a refinar e tornar mais específica a dúvida; na sequência, a inteligência artificial utiliza os inputs para encontrar os melhores papers de pesquisas científicas, que serão filtradas para gerar um relatório com todas as evidências, conclusões e recomendações em linguagem acessível e clara. Com esse mecânica, o conhecimento é realmente traduzido. “Da linguagem científica para o português, ou qualquer outra língua que possa ser usada pelos tomadores de decisão, sejam eles do governo ou de outras instituições privadas”, afirma.
Paola aponta que, do ponto de vista do pesquisador, além de incentivar a aplicação do conhecimento produzido por ele, a plataforma EasyTelling tem potencial de facilitar o financiamento de estudos que podem se transformar em produtos de impacto, ou seja, funciona como uma vitrine para quem deseja investir neles – funcionalidade, aliás, que resolve um drama do pesquisador: a escassez de financiamento. “É importante salientar que tradução do conhecimento é diferente de divulgação científica. Enquanto a primeira vai direto na audiência que tem o poder de transformar a pesquisa em política pública ou uso efetivo e implementação, a segunda atende ao mero objetivo de difundir”, aponta.
Como visão de futuro, a empreendedora afirma que a ideia é montar uma grande base de pesquisas organizadas sob os mesmos critérios para que seja possível oferecer aos atores certos as soluções prontas para serem implementadas por governos, empresas ou organizações. “A ideia é o impacto social a partir do match da aplicação científica e quem pode implementá-la ou investir nela, desbloqueando mercados e acelerando processos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Queremos, no futuro, remunerar o pesquisador pelo conhecimento e permitir que, a partir da visibilidade das pesquisas, se possa incentivar os investimentos contínuos para que os estudos se transformem em produtos”, pontua.
Entre os cases de sucesso da empresa, a empreendedora destaca a realização, em 2023, de treinamentos em tradução do conhecimento para gestores do Ministério da Saúde – que monitoram pesquisas financiadas pelo órgão. “Por causa do treinamento, eles mudaram a forma de comunicar os resultados de pesquisas financiadas para outros gestores da entidade. Substituíram os longos relatórios por um policy brief de uma única página, listando as evidências e recomendando ações práticas”, salienta.
“Importante destacar que a tradução do conhecimento é essencial para conseguirmos gerar impacto com as pesquisas. Caso contrário, elas morrem em papers que dificilmente serão lidos ou compreendidos”, afirma Paola, convidando profissionais de startups, pequenas e médias empresas, e gestores públicos a acessarem a plataforma para conhecer a primeira ferramenta da solução.
A empresa já atendeu a clientes como Fiocruz, Newton Fund, Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização Mundial da Saúde (OMS), British Council, Organização Pan-Americana da Saúde, Bill & Melinda Gates Foundation, Unicamp, Ministério da Saúde, Instituto Península e Fundação Lemann.