SAN FRANCISCO - Todas as manhãs, o engenheiro de pesquisa Turtle Brennen, que vive na região de Mission District, compra um café da Ritual Roasters, rede de cafés da área. Desde o início da quarentena do novo coronavírus, ele também leva um pão, para apoiar as padarias com as quais o café trabalha. Ele telefona para os restaurantes e recolhe diretamente seus pedidos, e ainda compra livros na Borderlands, a livraria local que ele visita com regularidade há mais de 20 anos.
"É incrivelmente difícil não recorrer à Amazon quando queremos comprar algo um pouco mais específico", diz Brennen. “Tenho me esforçado para buscar alternativas." Os esforços encontram eco em toda a região da Baía de São Francisco, conforme os consumidores locais tentam lidar com uma pandemia que acentua um relacionamento já complicado com a indústria da tecnologia.
Para ajudar os pequenos negócios locais, muitos dos quais estão à beira do abismo, alguns consumidores estão se esforçando para telefonar para os restaurantes diretamente em vez de recorrer aos aplicativos de entregas, que cobram tarifas. Estão contratando diretamente trabalhadores da economia dos bicos, encontrando lojas locais que oferecem artigos que habitualmente comprariam na Amazon e eliminando os intermediários da tecnologia sempre que possível.
A Baía de São Francisco é lar de muitas das próprias startups que esses clientes tentam evitar, incluindo Uber, DoorDash e Instacart, que criaram novas formas de encomendar e entregar alimentos e mercadorias. Bilhões de dólares em financiamento foram investidos em empresas de tecnologia de todos os tipos na região, fomentando um dos mercados imobiliários mais caros dos EUA. É algo que também suscitou uma reação negativa, conforme a cidade antes conhecida pelos hippies se transformou no coração do universo capitalista da tecnologia.
Esses aplicativos se mostraram muito úteis para um grande número de restaurantes que, de uma hora para a outra, não podem mais operar seus salões, alternando para o modelo das entregas, e também para os funcionários demitidos desesperados para encontrar trabalho. Para as empresas, os aplicativos facilitam o acesso a um público amplo do varejo online mesmo durante a pandemia, colocando instantaneamente à disposição do cliente um equipe de entregadores. Mas essa conveniência tem um custo.
Fregueses e donos de restaurantes de todo o país se tornaram mais conscientes disso durante a crise. Giuseppe Badalamenti, dono da Chicago Pizza Boss e consultor do segmento de restaurantes, publicou uma nota fiscal de outro restaurante com o qual ele trabalha mostrando tarifas aparentemente exorbitantes cobradas pelo Grubhub de Chicago.
Uma soma que começava com US$ 1.042,63 em vendas de comida foram reduzidos a US$ 376,54 depois de subtraídas a comissão, as promoções, as tarifas de entrega e processamento do Grubhub. A empresa disse que os restaurantes escolhem os serviços que desejam contratar e destacou que esse exemplo não representa o funcionamento típico dessa transação.
"Quando você tira os clientes, resta-nos como único cliente esse aplicativo predatório, terceirizado, nascido do capital de investimento", disse Badalamenti. “Esses 30% do valor total mal pagam o custo do alimento. Ainda precisamos manter as luzes acesas e pagar salários."
A polêmica envolvendo os modelos de negócios da economia dos bicos, que oferecem aos trabalhadores pouca proteção e costuma cobrar tarifas que vão de 15% a 30% para mediar as pontas dessa relação, levaram os consumidores a questionar seus hábitos e motivaram medidas adotadas por governos municipais de todo o país.
São Francisco, Seattle e a capital, Washington, aprovaram um limite de 15% para as tarifas de entrega cobradas pelos aplicativos para ajudar os restaurantes em dificuldades, e outras cidades pensam em adotar medidas semelhantes, como Boston. Cada vez mais, os clientes evitam os aplicativos na medida do possível.
Jeremy, de 32 anos, que trabalha fazendo entregas para o aplicativo Postmates desde antes do coronavírus, diz normalmente receber apenas US$ 5 por entrega, excluída a gorjeta. Mas, conforme explodiu a demanda por entregas nos dois meses mais recentes, Jeremy, que não quis revelar o sobrenome porque ainda trabalha para a Postmates, reuniu uma agenda de cerca de 20 clientes que o pagam entre US$ 10 a US$ 50 por entrega de supermercado. O entregador está até anunciando seus serviços no site de classificados Craigslist.
Ele diz que, como os clientes gostaram do seu serviço, perguntaram, "Há alguma forma de escolhê-lo pessoalmente como entregador?"
Para ajudar a remediar essas preocupações, muitas empresas de entregas estão mudando temporariamente suas tarifas ou oferecendo auxílio extra às empresas e aos funcionários. A DoorDash e sua subsidiária Caviar estão reduzindo em 50% a comissão cobrada dos restaurantes até o fim de maio, e o Grubhub anunciou que abriria mão de até US$ 100 milhões em comissões cobradas dos restaurantes, mas não as reduziria nem cancelaria. O Uber Eats decidiu abrir mão das comissões de entregas e retiradas para consumidores de restaurantes independentes.
As empresas, que tiveram uma alta no movimento de entregas nos dois meses mais recentes, também defenderam suas tarifas. Dizem que a cobrança é necessária para manter os serviços funcionando e remunerar os entregadores, e seu trabalho ajuda os restaurantes conforme os negócios são transferidos para as entregas. Afirmam que ajudam as pequenas empresas a se manter vivas durante a pandemia.
"A redução das comissões que financiam nosso mercado, ainda mais durante esse momento sem precedentes, nos obrigaria a alterar radicalmente nossa forma de fazer negócios, e o resultado seria danoso para aqueles que tentamos ajudar: fregueses, pequenas empresas e entregadores", disse em comunicado a porta-voz do Uber Eats, Meghan Casserly.
Na Baía de São Francisco, onde as primeiras ordens regionais de quarentena foram anunciadas no dia 17 de março, membros de grupos de bairro no Facebook e no Nextdoor estão compartilhando dicas de restaurantes locais que precisam de mais movimento e onde fazer compras nos mercados e lojas da região, em vez de recorrer às grandes redes de varejo.
Para ajudar os agricultores da área, esses grupos compram juntos parte da colheita de mirtilos e morangos no atacado, ou compram cestas da agricultura comunitária em vez de ir aos mercados maiores. E, para as empresas que não podem seguir funcionando no momento, eles criam campanhas de solidariedade para os empregados impedidos de trabalhar.
Tudo isso remete ao movimento de dez anos atrás, quando os aplicativos de entregas ainda não eram onipresentes e, para fazer um pedido de restaurante, o normal era usar o telefone.
"Temos pedido mais comida do que precisamos", diz Amanda Rubin, advogada do ramo de biotecnologia e moradora de São Francisco. "Estamos tentando fazer mais, tornando as compras pessoais, na medida do possível."
Quando a quarentena entrou em vigor na cidade, a própria Amanda se viu diante de algum tempo livre e quis ajudar. Criou uma planilha de negócios do seu bairro de São Francisco para mostrar quais seguiam abertos e quais ofereciam entregas, incluindo seus telefones sempre que possível, e então compartilhou o documento com a comunidade para que todos pudessem atualizar a lista. Já são 96 empresas relacionadas, e há sessões para doações e a compra de vale-presentes. Ela observa que muitas pessoas acessam o documento, mas é impossível saber o total de acessos que a lista já teve.
Não se trata apenas de comida. No grupo do Facebook de um bairro da Baía de San Francisco, uma mulher publicou o nome e o número de contato de um taxista experiente, para quem quisesse deixar de lado o Uber ou o Lyft. Os consumidores estão usando as redes sociais para pedir dicas de lojas de roupas únicas como alternativa às compras rápidas de sempre na internet, ou dos melhores lugares para se comprar flores ou quebra-cabeças. Com tanto tempo livre nas mãos de tanta gente, as livrarias de bairro têm muita demanda a atender.
Alan Beatts, fundador da livraria Borderlands, diz que está recebendo pedidos pelo site, pelo telefone e por e-mail. Alguns clientes conferem o catálogo da loja no site da empresa, que usa um serviço chamado Biblio, e então telefonam para a loja diretamente, evitando as tarifas intermediárias. A loja conseguiu manter todos os seus funcionários.
"Nossa, tivemos muito movimento", disse Beatts. Normalmente, 95% das vendas são feitas na loja, mas, em abril, dois terços do movimento chegaram pela internet. “Acho que, em São Francisco, as pessoas sempre entenderam que somos uma comunidade e que afetamos uns aos outros."
Para muitos restaurantes da Baía de São Francisco, é difícil abrir mão dos aplicativos. Normalmente, esses estabelecimentos não dispõem de infraestrutura própria para chegar à freguesia. Em situação comum, quando as entregas são apenas parte da renda, isso não é problema. Mas, com os salões fechados, pedidos e entregas se tornaram a principal fonte de renda dos restaurantes.
"No geral, temos mais movimento, porque agora participamos de uma plataforma cujo alcance é muito maior do que aquele que conseguiríamos sozinhos", diz o chef Ryan Stagg, que trabalha na pizzaria Pollara, em Berkeley. “Mas, com isso, trabalhamos muito mais, e ganhamos muito menos pelo trabalho."
Presos em casa com seus respectivos restaurantes fechados, Stagg e a noiva, a chef Daniella Banchero, decidiram começar a vender pão aos vizinhos do seu bairro de São Francisco. Eles preparam diferentes pães frescos, que descem em uma cesta da janela de sua casa em São Francisco, proporcionando uma entrega diferente e livre de contato humano. Um vizinho, soldador, se ofereceu para construir um sistema de roldanas melhor.
Outro vizinho é artista, e fez uma placa personalizada com o nome do negócio deles, Bernal Bakery. Agora, o restaurante local Foreign Cinema ofereceu-lhes o uso gratuito do espaço da sua cozinha para que possam fazer ainda mais pães. Trata-se de um negócio básico que ainda usa a tecnologia: os pagamentos são feitos pela plataforma Venmo, e o casal acaba de lançar uma página no Squarespace para receber pedidos online.
Outros estão adotando uma postura diferente. Vega Freeman-Brady, dona de um restaurante em San Francisco, diz que consegue manter o emprego da maioria dos funcionários porque não usa serviços de entrega. Na impossibilidade de atender aos fregueses no salão de seus restaurantes Vega e Bernal Star durante a quarentena, ela recebe pedidos pelo telefone e pessoalmente. Ajudantes gerais levam os pedidos e garçons operam os telefones. Ela diz ainda receber cerca de 15 e-mails diários das empresas de entregas convidando-a para suas plataformas, mas não se sente tentada.
"Pagamos 30% a esses serviços de entregas, sendo que nossa margem é de 10%: a conta não faz sentido", disse Vega. “Não queremos aumentar o preço. Prefiro pagar mais aos meus funcionários."
Patricia De Fonte é outra moradora de São Francisco que se esforça para ajudar os pequenos negócios locais. Ela entra em contato diretamente com as lojas menores, retira os próprios pedidos e evita as grandes redes de varejo para favorecer os estabelecimentos independentes do bairro onde mora, Excelsior. Ela ainda usa alguns aplicativos, como o Instacart, para as entregas do mercado, mas mesmo nesse caso ela faz questão de escolher mercadinhos do bairro e oferecer uma gorjeta generosa.
"Meu interesse é evitar encher os bolsos das grandes corporações no momento", disse a advogada do ramo patrimonial. "Quando sairmos dessa, quero ter um bairro ao qual voltar, e quero retomar as compras na rua, na vida real." / Tradução de Augusto Calil
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