Dívida de microcrédito é recorde após Caixa dar empréstimo até para negativados antes das eleições


Especialistas mencionam problemas nos critérios para concessão de crédito; ex-presidente da Caixa nega relação com período eleitoral

Por João Scheller

A inadimplência no microcrédito atingiu nível recorde em maio deste ano, chegando a 21,27% dos valores concedidos. O número é cerca de quatro vezes maior do que a média para toda a série histórica do Banco Central, que começa em 2011. Em setembro, a inadimplência total no microcrédito saltou, de uma média de 3,95% nos 12 meses anteriores, para 9,5%. A partir daí, cresceu até atingir a faixa de 20%. O microcrédito atende trabalhadores informais, MEIs e microempreendedores em geral, que possuem dificuldade de acesso a crédito.

A mudança no padrão visto nos últimos anos ocorreu após a Caixa Econômica lançar um programa de microcrédito com condições extremamente flexíveis, meses antes das eleições. Iniciada em março de 2022, a linha de crédito SIM Digital concedeu empréstimos para pessoas com CPF negativado, com dívidas de até R$ 3 mil. Um mês após o lançamento, cerca de 83% dos contratantes do programa eram de clientes negativados. Só esse programa da Caixa está com inadimplência de mais de 80%, segundo o banco.

Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam relação entre o programa de microcrédito da Caixa e a disparada das taxas de inadimplência, além de mencionarem as dificuldades trazidas pelo pós-pandemia e o fim de programas de assistência social, como o Auxílio Emergencial.

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A atual gestão do banco critica as condições da linha de microcrédito SIM Digital. O ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães nega relação do programa com o período eleitoral e diz que o lançamento ocorreu somente após a criação de um fundo garantidor para as instituições financeiras, aprovado pelo Congresso (mais detalhes abaixo). Procurada, a assessoria do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não se pronunciou.

Caixa concedeu empréstimo para negativados com até R$ 3 mil em dívidas, através de linha de microcrédito Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Empréstimos tinham garantia de fundo com dinheiro do FGTS

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Os empréstimos liberados pela Caixa a partir de março faziam parte do Programa de Simplificação do Microcrédito Digital para Empreendedores (SIM Digital), criado por medida provisória em março de 2022, mesma data de início de operação do programa de crédito da Caixa.

Transformado em lei pelo Congresso em julho, o programa foi criado para incentivar o empreendedorismo e a formalização de pequenos negócios e é voltado para pessoas físicas que exerçam atividade produtiva e microempreendedores individuais (MEIs).

Ele permite que as instituições financeiras que operem no programa contem com seguro do Fundo Garantidor de Microfinanças (FGM), que é administrado pela Caixa, mas suprido com R$ 3 bilhões em recursos do FGTS.

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Apesar da linha poder ser operada por diferente instituições financeiras, a grande maioria dos empréstimos ocorreu por meio da Caixa, via aplicativo Caixa Tem.

Até então, a instituição oferecia a linha Crédito Caixa Tem, lançada em outubro de 2021 e custeada com recursos próprios. Ela era voltada para clientes com nome limpo, emprestando até R$ 1 mil e cobrando juros de 3,99% ao mês.

A partir do SIM Digital, a instituição passou a operar com juros abaixo de 2% e valores de até R$ 1 mil para pessoas físicas e R$ 3 mil para pessoas jurídicas, sem a necessidade de ter o nome limpo. A linha continua disponível para contratação, mas com condições menos flexíveis.

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Presidente da Caixa critica programa

A atual presidente do banco, Maria Rita Serrano, já fez críticas públicas à linha de crédito criada na gestão de Pedro Guimarães, que comandou a instituição até junho de 2022. “Contestável, implementada às vésperas das eleições de 2022 e com um apelo excessivo ao endividamento da população vulnerável,” escreveu em seu perfil no Twitter, no final de maio.

A atual gestão da Caixa afirmou, em nota, que o programa teve inadimplência acima de 80% e que o banco “realiza ações de prevenção à inadimplência enviando mensagem de educação financeira e reforço à importância de manter a prestação em dia.” Foram cerca de 4 milhões de contratos na modalidade, totalizando R$ 3,02 bilhões concedidos.

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Rita Serrano, atual presidente da Caixa, critica linha de microcrédito SIM Digital Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Questionada, a Caixa não informou quais eram as expectativas da instituição no momento da criação da linha, levando-se em conta o risco envolvido e o perfil dos contratantes, tampouco o momento em que as condições se tornaram menos flexíveis, a medida que o nível de inadimplência ia aumentando.

Mas fontes ouvidas pela Estadão dizem que a expectativa da Caixa era de que o percentual de inadimplência girasse entre 75% e 80%, considerando os valores assegurados pelo FGM, que oferece cobertura de até 80% do valor desembolsado pela instituição em cada operação.

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Elas dizem ainda que o programa tinha suas condições revistas constantemente, mas que as mudanças começaram a ocorrer a partir do segundo semestre de 2022.

Ex-presidente da Caixa nega relação com eleições

O ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães afirmou ao Estadão que políticas de microcrédito eram prioridade da Caixa desde 2019, mas que as linhas só foram implementadas em 2021, após o desenvolvimento de tecnologia para a concessão do crédito via aplicativo e do fim do Auxílio Emergencial.

Ele disse que as condições flexibilizadas em março de 2022 só puderam ocorrer após mudanças na legislação que permitiram a criação do fundo garantidor voltado para o microcrédito e nega relação com o período eleitoral.

Guimarães afirma ainda que a criação da linha SIM Digital contou com a aprovação de diferentes executivos, alguns deles ainda presentes na atual gestão, e que, no momento em que deixou o banco, as taxas de inadimplência eram “muito diferentes” dos 80% divulgados pela nova administração.

Questionada pelo Estadão, a Caixa afirmou que aprovação de novas linhas de crédito seguem um “rito de governança definido para as tomadas de decisões na empresa” e negou que a atual presidente, Maria Rita Serrano, então integrante do conselho de administração do banco, fizesse parte dos colegiados competentes para a aprovação da operação.

Especialistas apontam relação com aumento da inadimplência

“Faz todo sentido dizer que essa expansão da carteira - possivelmente, ou claramente, visando objetivos eleitorais - pode ter colaborado para o aumento da inadimplência,” afirma Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Ele afirma que fatores macroeconômicos também podem explicar a situação, como a recuperação ainda gradual da economia após a pandemia, além dos juros altos e o crescente nível de endividamento das famílias.

“Há um crescimento muito grande do endividamento por cartão de crédito, por exemplo. As pessoas têm usado o crédito como complemento de renda, e isso respinga no microcrédito,” diz Gonzalez, mencionando que os usuários destas linhas muitas vezes não têm uma delimitação clara entre as finanças pessoais e as voltadas para o próprio negócio.

Segundo ele, a política de microcrédito é importante para mitigar falhas de mercado e, com isso, garantir acesso a crédito a microempreendedores que, de outra maneira, não o teriam. Em geral, a modalidade tende a ter taxas de inadimplência mais baixas - a média, desde o início da série histórica do BC, é de cerca de 5%.

Isso ocorre por conta dos juros menores, que tendem a ser de até 4% ao mês, a depender do programa. Já os valores emprestados, em geral, ficam entre R$ 2,5 mil e R$ 3 mil. Na prática, não há nenhum limite de valores e juros estabelecido pelo Banco Central para se classificar uma linha como microcrédito, mas programas específicos, como o Microcrédito Produtivo Orientado (MPO) - no qual o SIM Digital se enquadra - possui regras específicas.

Efeito do empreendedorismo por necessidade

O aumento de profissionais em situação de vulnerabilidade, que recorrem ao empreendedorismo por necessidade, também pode explicar o aumento de inadimplência no microcrédito, segundo Renê Birochi, professor de administração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e estudioso de microfinanças.

Linha de crédito tem como foco microempreendedores e profissionais informais Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 07/07/2021

“A narrativa leva a crer que o microempreendedor tem uma capacidade de empresariar. Mas é uma narrativa, porque ele não tem os instrumentos, não tem as condições para se colocar como um empresário. Em geral, é um trabalhador em uma situação bastante precária e vulnerável,” afirma.

Para Isabel Baggio, presidente da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred), a situação também passa por uma maneira equivocada na concessão de crédito, refletida nos programas oferecidos pela Caixa.

“Eu penso que isso [linha de microcrédito da Caixa] ajuda a piorar uma situação que já não era boa. Se você oferece crédito para a pessoa que está negativada ela continua negativada,” explica Baggio, que defende um investimento maior no chamado microcrédito assistido, onde há um acompanhamento da situação financeira do tomador de crédito e uma análise da melhor oferta para que se evite ao máximo a inadimplência e o consequente endividamento.

A inadimplência no microcrédito atingiu nível recorde em maio deste ano, chegando a 21,27% dos valores concedidos. O número é cerca de quatro vezes maior do que a média para toda a série histórica do Banco Central, que começa em 2011. Em setembro, a inadimplência total no microcrédito saltou, de uma média de 3,95% nos 12 meses anteriores, para 9,5%. A partir daí, cresceu até atingir a faixa de 20%. O microcrédito atende trabalhadores informais, MEIs e microempreendedores em geral, que possuem dificuldade de acesso a crédito.

A mudança no padrão visto nos últimos anos ocorreu após a Caixa Econômica lançar um programa de microcrédito com condições extremamente flexíveis, meses antes das eleições. Iniciada em março de 2022, a linha de crédito SIM Digital concedeu empréstimos para pessoas com CPF negativado, com dívidas de até R$ 3 mil. Um mês após o lançamento, cerca de 83% dos contratantes do programa eram de clientes negativados. Só esse programa da Caixa está com inadimplência de mais de 80%, segundo o banco.

Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam relação entre o programa de microcrédito da Caixa e a disparada das taxas de inadimplência, além de mencionarem as dificuldades trazidas pelo pós-pandemia e o fim de programas de assistência social, como o Auxílio Emergencial.

A atual gestão do banco critica as condições da linha de microcrédito SIM Digital. O ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães nega relação do programa com o período eleitoral e diz que o lançamento ocorreu somente após a criação de um fundo garantidor para as instituições financeiras, aprovado pelo Congresso (mais detalhes abaixo). Procurada, a assessoria do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não se pronunciou.

Caixa concedeu empréstimo para negativados com até R$ 3 mil em dívidas, através de linha de microcrédito Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Empréstimos tinham garantia de fundo com dinheiro do FGTS

Os empréstimos liberados pela Caixa a partir de março faziam parte do Programa de Simplificação do Microcrédito Digital para Empreendedores (SIM Digital), criado por medida provisória em março de 2022, mesma data de início de operação do programa de crédito da Caixa.

Transformado em lei pelo Congresso em julho, o programa foi criado para incentivar o empreendedorismo e a formalização de pequenos negócios e é voltado para pessoas físicas que exerçam atividade produtiva e microempreendedores individuais (MEIs).

Ele permite que as instituições financeiras que operem no programa contem com seguro do Fundo Garantidor de Microfinanças (FGM), que é administrado pela Caixa, mas suprido com R$ 3 bilhões em recursos do FGTS.

Apesar da linha poder ser operada por diferente instituições financeiras, a grande maioria dos empréstimos ocorreu por meio da Caixa, via aplicativo Caixa Tem.

Até então, a instituição oferecia a linha Crédito Caixa Tem, lançada em outubro de 2021 e custeada com recursos próprios. Ela era voltada para clientes com nome limpo, emprestando até R$ 1 mil e cobrando juros de 3,99% ao mês.

A partir do SIM Digital, a instituição passou a operar com juros abaixo de 2% e valores de até R$ 1 mil para pessoas físicas e R$ 3 mil para pessoas jurídicas, sem a necessidade de ter o nome limpo. A linha continua disponível para contratação, mas com condições menos flexíveis.

Presidente da Caixa critica programa

A atual presidente do banco, Maria Rita Serrano, já fez críticas públicas à linha de crédito criada na gestão de Pedro Guimarães, que comandou a instituição até junho de 2022. “Contestável, implementada às vésperas das eleições de 2022 e com um apelo excessivo ao endividamento da população vulnerável,” escreveu em seu perfil no Twitter, no final de maio.

A atual gestão da Caixa afirmou, em nota, que o programa teve inadimplência acima de 80% e que o banco “realiza ações de prevenção à inadimplência enviando mensagem de educação financeira e reforço à importância de manter a prestação em dia.” Foram cerca de 4 milhões de contratos na modalidade, totalizando R$ 3,02 bilhões concedidos.

Rita Serrano, atual presidente da Caixa, critica linha de microcrédito SIM Digital Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Questionada, a Caixa não informou quais eram as expectativas da instituição no momento da criação da linha, levando-se em conta o risco envolvido e o perfil dos contratantes, tampouco o momento em que as condições se tornaram menos flexíveis, a medida que o nível de inadimplência ia aumentando.

Mas fontes ouvidas pela Estadão dizem que a expectativa da Caixa era de que o percentual de inadimplência girasse entre 75% e 80%, considerando os valores assegurados pelo FGM, que oferece cobertura de até 80% do valor desembolsado pela instituição em cada operação.

Elas dizem ainda que o programa tinha suas condições revistas constantemente, mas que as mudanças começaram a ocorrer a partir do segundo semestre de 2022.

Ex-presidente da Caixa nega relação com eleições

O ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães afirmou ao Estadão que políticas de microcrédito eram prioridade da Caixa desde 2019, mas que as linhas só foram implementadas em 2021, após o desenvolvimento de tecnologia para a concessão do crédito via aplicativo e do fim do Auxílio Emergencial.

Ele disse que as condições flexibilizadas em março de 2022 só puderam ocorrer após mudanças na legislação que permitiram a criação do fundo garantidor voltado para o microcrédito e nega relação com o período eleitoral.

Guimarães afirma ainda que a criação da linha SIM Digital contou com a aprovação de diferentes executivos, alguns deles ainda presentes na atual gestão, e que, no momento em que deixou o banco, as taxas de inadimplência eram “muito diferentes” dos 80% divulgados pela nova administração.

Questionada pelo Estadão, a Caixa afirmou que aprovação de novas linhas de crédito seguem um “rito de governança definido para as tomadas de decisões na empresa” e negou que a atual presidente, Maria Rita Serrano, então integrante do conselho de administração do banco, fizesse parte dos colegiados competentes para a aprovação da operação.

Especialistas apontam relação com aumento da inadimplência

“Faz todo sentido dizer que essa expansão da carteira - possivelmente, ou claramente, visando objetivos eleitorais - pode ter colaborado para o aumento da inadimplência,” afirma Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Ele afirma que fatores macroeconômicos também podem explicar a situação, como a recuperação ainda gradual da economia após a pandemia, além dos juros altos e o crescente nível de endividamento das famílias.

“Há um crescimento muito grande do endividamento por cartão de crédito, por exemplo. As pessoas têm usado o crédito como complemento de renda, e isso respinga no microcrédito,” diz Gonzalez, mencionando que os usuários destas linhas muitas vezes não têm uma delimitação clara entre as finanças pessoais e as voltadas para o próprio negócio.

Segundo ele, a política de microcrédito é importante para mitigar falhas de mercado e, com isso, garantir acesso a crédito a microempreendedores que, de outra maneira, não o teriam. Em geral, a modalidade tende a ter taxas de inadimplência mais baixas - a média, desde o início da série histórica do BC, é de cerca de 5%.

Isso ocorre por conta dos juros menores, que tendem a ser de até 4% ao mês, a depender do programa. Já os valores emprestados, em geral, ficam entre R$ 2,5 mil e R$ 3 mil. Na prática, não há nenhum limite de valores e juros estabelecido pelo Banco Central para se classificar uma linha como microcrédito, mas programas específicos, como o Microcrédito Produtivo Orientado (MPO) - no qual o SIM Digital se enquadra - possui regras específicas.

Efeito do empreendedorismo por necessidade

O aumento de profissionais em situação de vulnerabilidade, que recorrem ao empreendedorismo por necessidade, também pode explicar o aumento de inadimplência no microcrédito, segundo Renê Birochi, professor de administração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e estudioso de microfinanças.

Linha de crédito tem como foco microempreendedores e profissionais informais Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 07/07/2021

“A narrativa leva a crer que o microempreendedor tem uma capacidade de empresariar. Mas é uma narrativa, porque ele não tem os instrumentos, não tem as condições para se colocar como um empresário. Em geral, é um trabalhador em uma situação bastante precária e vulnerável,” afirma.

Para Isabel Baggio, presidente da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred), a situação também passa por uma maneira equivocada na concessão de crédito, refletida nos programas oferecidos pela Caixa.

“Eu penso que isso [linha de microcrédito da Caixa] ajuda a piorar uma situação que já não era boa. Se você oferece crédito para a pessoa que está negativada ela continua negativada,” explica Baggio, que defende um investimento maior no chamado microcrédito assistido, onde há um acompanhamento da situação financeira do tomador de crédito e uma análise da melhor oferta para que se evite ao máximo a inadimplência e o consequente endividamento.

A inadimplência no microcrédito atingiu nível recorde em maio deste ano, chegando a 21,27% dos valores concedidos. O número é cerca de quatro vezes maior do que a média para toda a série histórica do Banco Central, que começa em 2011. Em setembro, a inadimplência total no microcrédito saltou, de uma média de 3,95% nos 12 meses anteriores, para 9,5%. A partir daí, cresceu até atingir a faixa de 20%. O microcrédito atende trabalhadores informais, MEIs e microempreendedores em geral, que possuem dificuldade de acesso a crédito.

A mudança no padrão visto nos últimos anos ocorreu após a Caixa Econômica lançar um programa de microcrédito com condições extremamente flexíveis, meses antes das eleições. Iniciada em março de 2022, a linha de crédito SIM Digital concedeu empréstimos para pessoas com CPF negativado, com dívidas de até R$ 3 mil. Um mês após o lançamento, cerca de 83% dos contratantes do programa eram de clientes negativados. Só esse programa da Caixa está com inadimplência de mais de 80%, segundo o banco.

Especialistas ouvidos pelo Estadão apontam relação entre o programa de microcrédito da Caixa e a disparada das taxas de inadimplência, além de mencionarem as dificuldades trazidas pelo pós-pandemia e o fim de programas de assistência social, como o Auxílio Emergencial.

A atual gestão do banco critica as condições da linha de microcrédito SIM Digital. O ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães nega relação do programa com o período eleitoral e diz que o lançamento ocorreu somente após a criação de um fundo garantidor para as instituições financeiras, aprovado pelo Congresso (mais detalhes abaixo). Procurada, a assessoria do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não se pronunciou.

Caixa concedeu empréstimo para negativados com até R$ 3 mil em dívidas, através de linha de microcrédito Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Empréstimos tinham garantia de fundo com dinheiro do FGTS

Os empréstimos liberados pela Caixa a partir de março faziam parte do Programa de Simplificação do Microcrédito Digital para Empreendedores (SIM Digital), criado por medida provisória em março de 2022, mesma data de início de operação do programa de crédito da Caixa.

Transformado em lei pelo Congresso em julho, o programa foi criado para incentivar o empreendedorismo e a formalização de pequenos negócios e é voltado para pessoas físicas que exerçam atividade produtiva e microempreendedores individuais (MEIs).

Ele permite que as instituições financeiras que operem no programa contem com seguro do Fundo Garantidor de Microfinanças (FGM), que é administrado pela Caixa, mas suprido com R$ 3 bilhões em recursos do FGTS.

Apesar da linha poder ser operada por diferente instituições financeiras, a grande maioria dos empréstimos ocorreu por meio da Caixa, via aplicativo Caixa Tem.

Até então, a instituição oferecia a linha Crédito Caixa Tem, lançada em outubro de 2021 e custeada com recursos próprios. Ela era voltada para clientes com nome limpo, emprestando até R$ 1 mil e cobrando juros de 3,99% ao mês.

A partir do SIM Digital, a instituição passou a operar com juros abaixo de 2% e valores de até R$ 1 mil para pessoas físicas e R$ 3 mil para pessoas jurídicas, sem a necessidade de ter o nome limpo. A linha continua disponível para contratação, mas com condições menos flexíveis.

Presidente da Caixa critica programa

A atual presidente do banco, Maria Rita Serrano, já fez críticas públicas à linha de crédito criada na gestão de Pedro Guimarães, que comandou a instituição até junho de 2022. “Contestável, implementada às vésperas das eleições de 2022 e com um apelo excessivo ao endividamento da população vulnerável,” escreveu em seu perfil no Twitter, no final de maio.

A atual gestão da Caixa afirmou, em nota, que o programa teve inadimplência acima de 80% e que o banco “realiza ações de prevenção à inadimplência enviando mensagem de educação financeira e reforço à importância de manter a prestação em dia.” Foram cerca de 4 milhões de contratos na modalidade, totalizando R$ 3,02 bilhões concedidos.

Rita Serrano, atual presidente da Caixa, critica linha de microcrédito SIM Digital Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Questionada, a Caixa não informou quais eram as expectativas da instituição no momento da criação da linha, levando-se em conta o risco envolvido e o perfil dos contratantes, tampouco o momento em que as condições se tornaram menos flexíveis, a medida que o nível de inadimplência ia aumentando.

Mas fontes ouvidas pela Estadão dizem que a expectativa da Caixa era de que o percentual de inadimplência girasse entre 75% e 80%, considerando os valores assegurados pelo FGM, que oferece cobertura de até 80% do valor desembolsado pela instituição em cada operação.

Elas dizem ainda que o programa tinha suas condições revistas constantemente, mas que as mudanças começaram a ocorrer a partir do segundo semestre de 2022.

Ex-presidente da Caixa nega relação com eleições

O ex-presidente da Caixa Pedro Guimarães afirmou ao Estadão que políticas de microcrédito eram prioridade da Caixa desde 2019, mas que as linhas só foram implementadas em 2021, após o desenvolvimento de tecnologia para a concessão do crédito via aplicativo e do fim do Auxílio Emergencial.

Ele disse que as condições flexibilizadas em março de 2022 só puderam ocorrer após mudanças na legislação que permitiram a criação do fundo garantidor voltado para o microcrédito e nega relação com o período eleitoral.

Guimarães afirma ainda que a criação da linha SIM Digital contou com a aprovação de diferentes executivos, alguns deles ainda presentes na atual gestão, e que, no momento em que deixou o banco, as taxas de inadimplência eram “muito diferentes” dos 80% divulgados pela nova administração.

Questionada pelo Estadão, a Caixa afirmou que aprovação de novas linhas de crédito seguem um “rito de governança definido para as tomadas de decisões na empresa” e negou que a atual presidente, Maria Rita Serrano, então integrante do conselho de administração do banco, fizesse parte dos colegiados competentes para a aprovação da operação.

Especialistas apontam relação com aumento da inadimplência

“Faz todo sentido dizer que essa expansão da carteira - possivelmente, ou claramente, visando objetivos eleitorais - pode ter colaborado para o aumento da inadimplência,” afirma Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Ele afirma que fatores macroeconômicos também podem explicar a situação, como a recuperação ainda gradual da economia após a pandemia, além dos juros altos e o crescente nível de endividamento das famílias.

“Há um crescimento muito grande do endividamento por cartão de crédito, por exemplo. As pessoas têm usado o crédito como complemento de renda, e isso respinga no microcrédito,” diz Gonzalez, mencionando que os usuários destas linhas muitas vezes não têm uma delimitação clara entre as finanças pessoais e as voltadas para o próprio negócio.

Segundo ele, a política de microcrédito é importante para mitigar falhas de mercado e, com isso, garantir acesso a crédito a microempreendedores que, de outra maneira, não o teriam. Em geral, a modalidade tende a ter taxas de inadimplência mais baixas - a média, desde o início da série histórica do BC, é de cerca de 5%.

Isso ocorre por conta dos juros menores, que tendem a ser de até 4% ao mês, a depender do programa. Já os valores emprestados, em geral, ficam entre R$ 2,5 mil e R$ 3 mil. Na prática, não há nenhum limite de valores e juros estabelecido pelo Banco Central para se classificar uma linha como microcrédito, mas programas específicos, como o Microcrédito Produtivo Orientado (MPO) - no qual o SIM Digital se enquadra - possui regras específicas.

Efeito do empreendedorismo por necessidade

O aumento de profissionais em situação de vulnerabilidade, que recorrem ao empreendedorismo por necessidade, também pode explicar o aumento de inadimplência no microcrédito, segundo Renê Birochi, professor de administração da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e estudioso de microfinanças.

Linha de crédito tem como foco microempreendedores e profissionais informais Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 07/07/2021

“A narrativa leva a crer que o microempreendedor tem uma capacidade de empresariar. Mas é uma narrativa, porque ele não tem os instrumentos, não tem as condições para se colocar como um empresário. Em geral, é um trabalhador em uma situação bastante precária e vulnerável,” afirma.

Para Isabel Baggio, presidente da Associação Brasileira de Entidades Operadoras de Microcrédito e Microfinanças (Abcred), a situação também passa por uma maneira equivocada na concessão de crédito, refletida nos programas oferecidos pela Caixa.

“Eu penso que isso [linha de microcrédito da Caixa] ajuda a piorar uma situação que já não era boa. Se você oferece crédito para a pessoa que está negativada ela continua negativada,” explica Baggio, que defende um investimento maior no chamado microcrédito assistido, onde há um acompanhamento da situação financeira do tomador de crédito e uma análise da melhor oferta para que se evite ao máximo a inadimplência e o consequente endividamento.

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