Há dez anos à frente da Rede Mulher Empreendedora (RME), instituição de apoio ao empreendedorismo feminino, Ana Fontes conhece de perto as dificuldades que as mulheres encontram para abrir e manter um negócio no Brasil. Mas, nos últimos meses, os impactos econômicos por conta da pandemia do novo coronavírus, a ainda maior dificuldade no acesso ao crédito, o aumento das tarefas com a casa e com os filhos e, em muitos casos, o crescimento da violência doméstica ergueram barreiras ainda mais desafiadoras para elas.
Uma pesquisa realizada pela RME e o Instituto Locomotiva com 1.165 empreendedoras durante a pandemia apontou que a crise significou a interrupção das atividades para 39% dos negócios comandados por mulheres. Outras 47% seguem em funcionamento, mas já sofreram os impactos negativos dos últimos meses. O problema fica mais grave já que para 21% delas toda a renda familiar vem do negócio.
Com o recorte racial, os números são ainda mais assustadores. Segundo a pesquisa Saúde Financeira de Mulheres Negras - Covid-19, desenvolvida por uma parceria entre ID_BR - Instituto Identidades do Brasil, Comunidade Empodera, EmpregueAfro e Faculdade Zumbi dos Palmares (todas iniciativas voltadas à empregabilidade de pessoas negras e aceleração da igualdade racial no mercado de trabalho), 79% das empreendedoras não têm reserva financeira para sobreviver à pandemia. Quando questionadas qual a principal necessidade durante a quarentena, 48% responderam capital de giro.
Em entrevista ao Estadão PME, Ana Fontes conta que, ao lado de 26 colaboradores, procura novas formas de auxiliar as quase um milhão de mulheres envolvidas tanto na RME quanto no Instituto RME - organização sem fins lucrativos com foco em mulheres em situação de vulnerabilidade social.
“Tenho trabalhado muito mais tentando ajudar as empreendedoras a superar essas crises, a passar com o menor impacto possível. Tem dia que baixa o astral porque as histórias são muito tristes, mas no dia seguinte acordamos com mais vontade para pensar o que fazer”, conta. Confira a seguir a entrevista.
Quais são os desafios mais específicos para as mulheres empreendedoras nessa crise?
Há desafios diretos e indiretos. As mulheres geralmente empreendem na área de conforto, como moda, beleza, estética, alimentação fora de casa e serviços. São esses os segmentos mais afetados na pandemia. Então, os negócios liderados por mulheres foram os mais afetados com a maior clareza.
Outro efeito é que as mulheres têm menos acesso a crédito que os homens no mercado, então seus negócios acabam sendo mais afetados. Tem um ponto importante que é: como são negócios que começaram e ainda são muito pequenos, tem a questão da transformação digital, que não é uma linguagem muito simples.
A pesquisa mostrou que a maioria das empreendedoras estão com dificuldades nisso (para 84% das entrevistadas, assessoria para digitalização, uso de internet e ferramentas online ajudariam a enfrentar a crise). As pessoas falam ‘bota seu negócio nas redes sociais’, mas não é tão simples para a pessoa que não está habituada com a tecnologia.
E tem outros aspectos que são indiretos ao negócio e que afetam as mulheres que estão dentro de casa. Tristemente, 80% do cuidado doméstico ainda são das mulheres. Essa organização que ficou diferente agora durante a pandemia sobrecarregou essa mulher. Ela perdeu a renda, o negócio está com dificuldade, tem criança dentro de casa e os afazeres domésticos, então isso tudo gera também um impacto no negócio. O tempo que ela vai dedicar a ele fica menor e o foco fica mais difícil.
Ainda temos a questão da violência doméstica, que cresceu absurdamente durante a pandemia. Imagina essa mulher dentro de casa, geralmente não mora em uma casa grande, em situação de vulnerabilidade e ainda está sofrendo violência psicológica, patrimonial e física.
E quando falamos de mulheres ainda é um grupo muito heterogêneo. Há recortes dentro desse grupo, certo?
As pessoas pensam sempre em classe média, mesmo que não seja alta, mas numa pessoa que teve acesso, estudo. Mas temos que falar no mais amplo aspecto de mulheres. Hoje são mais de 13 milhões de pessoas que vivem em favelas, imagina a quantidade de mulheres envolvidas.
Muitos dos negócios liderados por mulheres são as únicas fontes de receita das famílias, então o efeito devastador da crise para elas é muito grande. Não ter acesso a crédito e tecnologia é um campo complexo.
Nós, da RME, temos feito muito conteúdo direcionado para essas mulheres, temos ativado rede sociais, criado conteúdos com linguagem acessível prática e rápida. Porque não adianta fazer conteúdo de 1h30 e achar que elas vão ter disponibilidade para isso.
As pesquisas têm mostrado que as PMEs têm tido dificuldade para acessar crédito e as mulheres historicamente já têm mais dificuldade para isso. O que a RME tem feito?
Esse é um ponto para políticas públicas. Entendemos que sozinhos, como instituição, não conseguimos resolver o problema de crédito até porque é uma questão estrutural, é um problema do Brasil. Deveria haver políticas públicas que chegassem na ponta e dessem oportunidade para mulher terem acesso a crédito. Temos uma série de programas lançados pelo governo, mas não temos nenhuma política focada em negócios para mulheres.
Nós, da RME, fizemos duas parcerias de corealização. Tem o Estímulo 2020, que é um grupo de empresários que captaram recursos e criaram um fundo para ajudar pequenos negócios. Como parte da ação, eu fico o tempo inteiro explicando as condições e características de negócios de mulheres.
Outra iniciativa, em parceria com o Grupo Mulheres do Brasil e o Banco Pérola, é o Fundo Dona de Mim, com o objetivo de dar microcrédito para mulheres microempreendedoras individuais (MEI). Foi lançado no dia 1º de julho e em 24 horas já tinha todo o crédito tomado, então já acabou o recurso. Agora, estamos fazendo captação para uma segunda onda.
Você falou em parcerias com empresas. Como elas podem ajudar o empreendedorismo feminino neste momento?
Nós criamos projetos para as empresas. Tem aquelas que fazem doações diretas, que vendem produtos e destinam parte da renda ao Instituto Rede Mulher Empreendedora. Por exemplo, ela está produzindo uma blusa ou uma joia e uma parte do que ela vende disso vem para a gente.
Outra forma são empresas que patrocinam eventos, ações e redes sociais. Também existem os projetos e programas especiais. Temos o programa Heróis usam Máscara, parceria com os três maiores bancos do Brasil. Três concorrentes se uniram, Bradesco, Santander e Itaú, e fizeram doação de mais de R$ 30 milhões para que a gente gerenciasse e fizesse a produção de máscaras.
Nós selecionamos várias ONGs no Brasil inteiro com costureiras ou cooperativas. A gente compra essas máscara delas, gera renda para as costureiras e as máscaras são doadas para instituições que precisam. É um projeto cheio de desafios porque ocorre no Brasil inteiro e a gente desenvolveu do começo ao fim junto com os três bancos. Já estamos quase chegando nas 12 milhões de máscaras.
Esse é um modelo que a gente trabalha muito, entendemos a dinâmica, a necessidade das mulheres e, em cima disso, procuramos parcerias que fazem sentido.
Apesar de todo o lado negativo, a pandemia tem impulsionado os negócios positivamente de alguma forma?
Com muito cuidado ao dizer ‘positivo’, sim, tem. A gente como instituição teve que se reinventar e as mulheres têm feito a mesma coisa. O que temos recomendado é que, se você tinha um negócio antes da pandemia, reveja seu negócio durante a pandemia porque a gente não sabe o que vai acontecer no pós-pandemia. Entendemos que a perspectiva do consumidor vai ser diferente, que vai mudar o modelo de consumo, mas não sabemos de verdade como vai ser.
Então, o conselho é para que façam tudo o que for possível para manter o seu negócio de pé. Temos costureira fazendo máscara, gráfica fazendo face shield. Também tem que pensar quais são as alternativas para o negócio existir após a pandemia porque vamos ter uma faixa de negócios que, tristemente, não vão sobreviver. Todo mundo vai ter que pensar em como transformar seu negócio em digital no fórceps, porque está todo mundo fazendo e não há opção.
Mas também tem que se repensar os relacionamentos. Ninguém está comprando o que comprava antes, estamos olhando para as empresas de um jeito diferente. As pessoas estão comprando mais do bairro, dos pequenos negócios. A pandemia fez com que elas percebessem que os pequenos são fundamentais na economia, são eles que geram 70% dos empregos.
É preciso entender que comprar do bairro é fundamental para manter a economia, entender que os negócios de mulheres tem impacto social maior e que transformação digital não é algo para botar no caderninho para fazer um dia.
Nas últimas semanas também se tornou uma questão abrir ou não reabrir as portas dos negócios. Vocês têm feito alguma recomendação?
O que temos dito é para terem muito cuidado. Na estética, por exemplo, não é todo mundo que tem recurso para fazer a adaptação do salão, colocar acrílico nos lavatórios e fornecer material de proteção individual para os trabalhadores.
A gente entende que todo mundo tem necessidade de voltar a abrir os negócios porque precisam sobreviver, mas não adianta abrir, não ter esse cuidado e daqui um mês ter que fechar por algo mais grave, como funcionários contaminados. Já temos casos de empresas grandes que retomaram e tiveram que dar dois passos para trás porque funcionários pegaram a covid-19.
Eu não sou psicóloga, mas tenho visto que as pessoas têm perdido um pouco o medo. Então, para quem for possível a gente pede que continue sem abrir e procure soluções alternativas, como entrega, voucher futuro. Não pode baixar a guarda em relação à saúde de colaboradores e da própria empreendedora. Não somos pessimistas porque empreendedor não pode ser, mas falamos que é muito importante não criar um problema maior para frente.
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