ENVIADA ESPECIAL A PETROLINA (PE) - No entorno do Velho Chico, cidades ribeirinhas se distinguem de outras regiões vitivinícolas do Brasil na produção de vinhos. Se antes a qualidade da bebida era questionada por conta do imaginário caricato, que envolvia o determinismo climático, hoje a história é outra. Agora o Vale do São Francisco mantém a reputação como uma das principais produtoras de vinhos finos do País, que vai desde empreendimentos de grande porte a negócios criados em pequena escala. Estas empresas menores têm diferencial competitivo e estão ganhando evidência pela qualidade e trajetória em crescente ascendência.
“Cada região produtora no mundo pode ter suas próprias características. Mas o nosso vinho é realmente diferente, não pode ser comparado com o de outro lugar”, defende a pesquisadora da Embrapa Semiárido Patrícia Leão sobre o Vale, território localizado entre os paralelos 8º e 9º da latitude Sul.
Ao contrário do que é criticado por muitos especialistas da área - que defendem a produção do vinho em regiões com estações do ano bem definidas -, as temperaturas mais quentes do Vale proporcionam janelas climáticas mais favoráveis para o amadurecimento das uvas e período de colheita. No entanto, “não é fácil quebrar esse paradigma”, como aponta a pesquisadora.
Em novembro deste ano, a região recebeu a Indicação de Procedência (IP), colocando o Brasil como o 1º País do mundo a ter uma demarcação geográfica por causa da vitivinicultura tropical, fator relacionado à irrigação e ao clima.
O ecossistema de vinhos do Vale existe há cerca de 50 anos, e abrange cidades dos Estados da Bahia e de Pernambuco. Desde então, a ampliação das áreas cultivadas não avançou muito, mas a bebida alcançou outro patamar de qualidade, explica Patrícia Leão. Atualmente, 13 vinícolas estão em funcionamento na região, oito trabalham diretamente com vinhos, quatro com sucos e uma une os dois produtos, segundo dados do Sebrae do Sertão do Francisco.
Destas, somente duas são de pequeno porte, as demais são classificadas como médias e grandes empresas, levando em consideração o volume de litro do produto distribuído no mercado, além da inserção no comércio nacional e internacional.
A família Bianchetti cultiva uvas em Lagoa Grande, cidade a 660 quilômetros (km) do Recife, desde 1995. A vinícola é a única com produção orgânica na região. Mas até ostentar esse título o caminho foi árduo e cheio de reviravoltas. Izanete Bianchetti, de 57 anos, e o marido Ineldo Bianchetti migraram para Petrolina na década de 80.
Naturais do Rio Grande do Sul, o casal de enólogos percorreu mais de três mil km para trabalhar na vinícola de um empresário do ramo. Após sete anos, o companheiro de Izanete investiu toda a economia na compra de um terreno próximo ao Rio São Francisco. Daí, veio uma adega improvisada. “Não tinha nada, nem energia elétrica”, relembra.
Em uma época em que a relação com mercadores era mais difícil, a dupla decidiu expandir o negócio aos poucos para diminuir o risco de uma falência prematura. Primeiro, dedicaram-se à plantação de uvas de mesa - fruta fresca - para ter um retorno financeiro mais rápido e, em seguida, ter condições de investir na fabricação de vinho. Seis anos após a compra da terra, veio o lançamento da bebida. Mas os recursos escassos dificultavam a chegada da marca aos mercados.
Com apenas dois tanques para a produção e um filtro, faltou dinheiro para comprar garrafas para colocar o vinho. A solução veio com suporte do Sebrae e empréstimo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com o passar de alguns anos, a marca Bianchetti se consolidou na região. Mas o casal ainda almejava um sonho construído lá em 1992: um vinho orgânico. “A gente estava pensando no consumidor, no colaborador, no meio ambiente, e em eliminar o agrotóxico”, conta Izanete.
O processo para conseguir a certificação durou 18 meses. Começou em 2006 e só foi finalizado em meados de 2008. “Foi uma burocracia gigante. Ainda não existia legislação no Brasil”, relata a empresária. Daí em diante, foi preciso se estabelecer como referência no mercado. Além do vinho seco, a vinícola passou a fabricar dois sucos com o selo orgânico: o de uva e o de cana.
Embora o carro-chefe da marca seja a produção orgânica, alguns produtos Bianchetti Tedesco seguem o modelo convencional, a exemplo do vinho suave, de custo mais baixo. “Os suaves são mais populares. Então, temos essas opções, porque se tiver somente produto caro o pessoal não vai comprar”, ressalta Izanete. De modo geral, o processo de produção dos vinhos secos e dos suaves não tem muita diferença. O que há de particular nas bebidas orgânicas é a levedura, que é livre de transgênicos, além do baixo nível de sulfuroso - conservante - utilizado.
Com duas safras no ano, Bianchetti é uma das menores vinícolas do Vale. Mas a miudeza está só na denominação. No local, é colhido cerca de três a sete toneladas de uva por ciclo, o que rende 10 mil litros da bebida orgânica todos os anos. Hoje, o rendimento bruto da marca atinge até R$ 1,3 milhão. Os pequenos negócios são indispensáveis para a economia local, reforça Josiana Ferreira, gerente da unidade do Sebrae do Sertão do São Francisco - Pernambuco.
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Sobre o futuro da empresa, Izanete descarta expansão do negócio, ela quer focar em dois pontos: aprimorar a qualidade dos produtos e realizar o desejo do marido falecido em 2018, uma linha de cachaça orgânica. “Meu interesse é continuar assim e, claro, lançar a cachaça e conseguir atingir o consumidor orgânico”, projeta. Os vinhos da marca custam em média R$ 60 e podem ser encontrados no site oficial, em mercados do Vale, lojas de conveniência e em alguns estabelecimentos de nicho orgânico do País.
O criador e a criatura
Assim como o casal Bianchetti, o sommelier José Figueiredo, de 62 anos, proprietário da Vinum Sancti Benedictus (VSB), aterrissou em terras franciscanas movido pela paixão por vinhos tropicais da região. O ano era 2003. Na época, ele e outros sócios exportavam uvas de mesa. “O meu grande sonho sempre foi fazer o vinho que eu gostaria de tomar”, conta. Foi só em 2015 que ele resolveu migrar para a carreira solo. O destino escolhido para a plantação de um vinhedo de 0,75 hectare - onde as uvas são produzidas - foi Curaçá, cidade baiana a 460 km de Salvador.
O produto fabricado pelo empresário é delicado e estruturado. Para se ter uma ideia, uma garrafa de vinho comum tem aproximadamente um 1,3 quilo de uva, Já a produção de Figueiredo utiliza 1,8 quilo da fruta em cada recipiente. A 1ª safra da VSB saiu em 2017, com 317 unidades e dois tipos de vinhos, o tinto, de frutas vermelhas e negras, e o segundo, branco refrescante. A exclusividade tem a ver não só com a ideia do negócio de produção em pequena escala, como também o formato do empreendimento.
A vinícola, parte onde funciona o setor fabril da marca, resulta de uma parceria com o Instituto Federal do Sertão Pernambucano. Para 2023, Figueiredo está programando uma unidade de produção em seu terreno. Ele prevê uma pequena ampliação do negócio para gerar mais autonomia no processo de produção. “Eu quero continuar fazendo vinho para viver com dignidade”, diz. O faturamento anual da Vinum Sancti Benedictus é de R$ 250 mil.
A estratégia de venda de Figueiredo segue a moda antiga. Só é possível adquirir uma garrafa VSB, que custa entre R$ 90 e R$ 125, através de visita ao vinhedo em Curaçá ou por telefone, mas cada consumidor só pode comprar duas unidades. A tática tem justificativa. “A ideia é não concentrar o produto em poucas pessoas. Queremos alcançar diferentes públicos”, explica o empresário.
A VSB acompanha o mesmo propósito desenvolvido por décadas pela família Bianchetti, investir na qualidade do produto e tornar a visitação pelos vinhedos e adegas uma experiência que foca na simplicidade, mas sem desconsiderar o conforto. Esse conceito é chamado de Turismo Associado, de acordo com Josiana Ferreira, e vem sendo ampliado na região. Mas essa não é a única aposta do setor. Novas tendências também estão surgindo, destaca a gerente do Sebrae, a exemplo da diversificação do produto - frisante em latinhas, que oferece fácil transporte e consumo -, e da maneira em que a bebida está sendo vendida no mercado.
Uma nova forma de falar sobre vinhos
Os novos formatos de negócios exigem jogo de cintura para quem está na direção. A sommelier Paula Theotonio, 35, e o administrador Fábio Reis, 42, entenderam que seria preciso acompanhar as tendências do mercado para conseguir inovar no setor de vinho. Eles não empreendem nos vinhedos, mas nos centros urbanos. Juntos, eles são sócios do 1º bar de vinhos de Petrolina, o Oxe Vinhos, negócio que nasceu em 2021 com o objetivo de facilitar o acesso das pessoas aos produtos brasileiros desse segmento, em especial do Vale do São Francisco. No local, são ofertados mais de 80 rótulos de diferentes regiões do País.
Quem visita o espaço encontra um atendimento empático baseado em escuta, descreve Paula ao citar o diferencial do ambiente. O Oxe Vinhos também faz parte do circuito de economia criativa do município, resultado de uma parceria com o Restaurante O Casarão, espaço coletivo que une lojas na Petrolina Antiga, área histórica da cidade que vivencia uma espécie de revival. Mas antes do espaço físico, o serviço de vinhos estava disponível apenas para delivery em Juazeiro, na Bahia, e na vizinha Petrolina, em Pernambuco. A expansão para o espaço físico foi estimulada por dois fatores: um desejo do casal e uma eminente ausência desse tipo de estabelecimento na região.
Paula comenta que o grande desafio do empreendimento é desmistificar a ideia de que vinho é somente “para quem entende”. O bar quer aproximar o convidado para aquilo que já conhece: o hábito de convidar um amigo para tomar um café ou encontrar colegas de trabalho em um happy hour. Para isso, ela ilustra situações cotidianas para o cliente: ocasião em que a bebida será consumida, valor que está disposto a pagar e temperatura adequada. “Eu vou partindo da pergunta: queria começar a tomar vinho, como faço?’ Aqui a gente quer que o cliente curta tomar vinho”, diz a sommelier.
A maneira descontraída de falar sobre vinhos também rendeu reconhecimento para Paula nas redes sociais. Ela começou a viralizar no Twitter compartilhando dicas de vinhos acessíveis e alertas de possíveis fraudes ao comprar esse tipo de bebida em lojas virtuais. Um dos seus tweets atingiu mais de 60 mil curtidas.
Criar senso de comunidade é importante, segundo o casal. O bar também ocupa espaço nas redes com posts didáticos, em que os sócios convidam os seguidores a experimentarem vinhos “sem regionalismo desmedido ou ufanismo, mas baseados em fatos e muita degustação”, escrevem na publicação.
A meta agora é consolidar a marca na região. “O nosso crescimento não é territorial, no sentido de fazer outro negócio, a gente está pronto para ficar”, salienta. Para a gerente do Sebrae de Petrolina, Josiana Ferreira, o empreendimento tem potencial de atrair “um público mais jovem e consciente”, nova identidade capaz de aproximar a geração milênio da cena do vinho do Vale do São Francisco.