Ele não gostava de usar o peso do sobrenome, Mesquita, da família proprietária do Grupo Estado, como credencial. Nas redações dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde e da Rádio Eldorado, onde trabalhou, Luiz Carlos Mesquita era o Carlão, amável, solidário com colegas e brincalhão. Carlão morreu há 50 anos, em 28 de agosto de 1970, quando tinha 40 anos, deixando a filha, Patrícia Mesquita, atual acionista do Grupo Estado, à época com apenas 9 anos. “Já faz 50 anos, mas não passa”, afirmou Patrícia nesta sexta-feira, 28, lembrando da perda do pai.
Diretor da empresa da família, Carlão deixou imagem de “gente boa” entre as equipes de jornalistas e funcionários. Para o jornalista Quartim de Moraes, que conviveu com Carlão nas redações do Grupo Estado no final dos anos 1960, o então diretor do Estado “era a presença afetiva” dos Mesquita na empresa, que tocava com os irmãos mais velhos Julio Neto e Ruy, liderados pelo pai, Julio de Mesquita Filho. “Os Mesquita sempre foram muito respeitosos com o pessoal da equipe”, afirma Moraes, ex-editorialista do Estadão. “Mas o Carlão era aquele mais afetivo, que gostava de esportes, era torcedor do São Paulo, apreciava a boemia e frequentava o bar do então Hotel Jaraguá, que ficava ao lado da sede do jornal, na Rua Major Quedinho, centro de São Paulo”, recorda Quartim de Moraes. “Convivi com ele por anos.”
Carlão, conta o jornalista, foi também um dos entusiasmados criadores da Edição de Esportes, o suplemento semanal do Grupo, que depois foi transformado no projeto do Jornal da Tarde, liderado então pelo irmão dele, Ruy Mesquita, a partir de 1966.
Seguindo a trilha dos irmãos Julio Neto e Ruy Mesquita, Carlão fez estágio no jornalismo na empresa em várias seções, para aprender o ofício, como queria o pai, Julio de Mesquita Filho, informa texto sobre o diretor publicado no Estadão pelo jornalista José Maria Mayrink, em 2010, em perfil elaborado para a data dos 40 anos da morte de Carlão.
No texto que serve de referência histórica à filha, Patrícia, Mayrink conta que Carlão passou pelas editorias de Internacional e Geral, para em seguida se dedicar mais ao Esporte e ao Turfe, as duas áreas de sua preferência. Mais tarde, Carlão participou do lançamento e dirigiu a Edição de Esportes, o projeto inovador que saía às segundas-feiras, quando o Estadão não circulava e o JT ainda não existia, como lembra também Quartim de Moraes.
Carlão participou de outras iniciativas de sucesso no Grupo Estado, como a criação da Rádio Eldorado e do Suplemento Feminino. Ainda no início dos anos 1960, foi Carlão quem convidou a prima, Maria Cecília Vieira de Carvalho Mesquita, para dirigir o Suplemento Feminino, publicação que passaria por uma reformulação. "Quero que você venha trabalhar no jornal", convocou a prima pelo telefone, segundo a biografia escrita por Mayrink.
A personalidade de sujeito bonachão de Carlão é lembrada também na memória de profissionais que atuaram próximos dele nas redações. “Muitas vezes, Carlão tirou dinheiro do bolso para ajudar funcionários em dificuldades que recorriam a ele nos corredores”, diz o texto de memória redigido por Mayrink, relatando episódio de 1967, quando a Carlão foi apresentado o jornalista Ricardo Kotscho, autor de um dos textos da cobertura da tragédia de Caraguatatuba, cidade do litoral paulista arrasada por enchentes e deslizamentos na região.
Mayrink relata que um editor do jornal comentou que o repórter, ainda estagiário, não era registrado e não tinha salário fixo. "Meio sem graça, Carlão puxou a carteira e me passou umas notas, que enfiei no bolso sem contar", escreveu Kotscho no livro Do Golpe ao Planalto (Companhia das Letras), quase 40 anos depois. "Era um dinheirão, só descobriria ao voltar de ônibus para casa, já de madrugada”, conta Kotscho.
Artigo assinado por Saulo Ramos lembra ainda episódio de viagem de Carlão a Cuba. “Jânio Quadros era candidato a presidente da República e me telefonou dizendo que faria uma viagem a Cuba, cuja revolução vitoriosa fascinara a nossa geração. E me convidou. Muita gente boa na comitiva: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo de Tarso Santos e, entre outros, o Carlão Mesquita, que foi a alegria da turma tanto nos voos como nos hotéis e nas repetidas reuniões com os políticos cubanos, naquela época todos americanistas convictos desde o dia em que Fidel Castro desfilou triunfante em Nova York sob chuva de papel picado, posto que a revolução contra Fulgencio Batista foi consentida (e financiada) por Washington.”
No texto, Ramos conta que “Fidel era mais posudo, ostentando a farda militar e, ao entrar (chegou depois do Che), deixou o revólver no banheiro da entrada da embaixada, como nos tempos de baile do faroeste americano”. Segundo o autor, daquela reunião, dois fatos ficaram registrados na memória dele: “a inveja, sem disfarce, que Fidel tinha de Guevara” e o sumiço do revólver do Fidel”. Ramos conta que na volta ao hotel caíram em cima do Carlão. “Só podia ser ele. Jurou inocência. E ninguém ficou sabendo quem foi."
Relatos contidos no Acervo do Estadão mostramtambém a paixão de Carlão por animais. “Carlão gostava de bichos, como galinhas, canários e cachorros, que costumava criar desde menino na fazenda da família em Louveira, onde passava semanas de férias”, afirma a publicação de Mayrink, citando depoimento sobre a promessa do pai de Carlão, Julio de Mesquita Filho. O pai havia prometido "um cachorro daqueles de raça, de orelha grande e cabeça de perdigueiro", como presente de fim de ano, se continuasse "a ser o excelente estudante que até aqui tem sido", como escreveu em carta de 21 de julho de 1940.
Anos mais tarde, já trabalhando no jornal, Carlão surpreendeu os companheiros com animais raros e exóticos que mandava comprar ou ganhava de amigos, conta documento que consta do Acervo do Estadão. Um dos antigos redatores do Estadão, Antonio Carvalho Mendes, o Toninho, também já falecido, gostava de contar que ele próprio certa vez foi ao Rio de Janeiro buscar uma encomenda do diretor do Estadão: era um cão Yorkshire Terrier que Carlão deu de presente à filha, Patrícia.
Leia abaixo texto original publicado no Jornal da Tarde em 9 de setembro de 1970 à época da morte de Carlão:
O polegar para baixo
Arnaldo Pedroso d'Horta
Como na mais besta das mágicas, éle nos foi subtraído quando se encontrava ao alcance de nossos braços e o olhávamos de olhos bem abertos, atentamente. O sentimento em que ficamos é de que fomos todos ludibriados, estúpidamente confundidos enquanto se operava o golpe de escamoteação do amigo precioso. E como foi possível que assim nos deixássemos embair, e que éle na verdade se estivesse esvaindo, no mesmo momento em que pensávamos estar acompanhando a sua recuperação?
Êle mesmo conduziu o espetáculo. Recebia os que o visitavam como se os visitantes é que estivessem necessitando de conforto e atenção — que êle a cada um dispensava. Brincava. Fazia com que o enfermeiro se transformasse em garçon e providenciasse o aperitivo. Sabia distinguir a cada um, com a sua nobreza toda especial: deitado na cama, engessado da ponta do pé à cintura, forçado a uma rigidez de postura que tornava o leito um instrumento de permanente tortura, fazia sala para todos, como numa autentica recepção. E a cada um perguntava pelos amigos comuns, interessava-se pelos respectivos problemas mas, chegava mesmo a encaminhar providencias que interessavam a terceiros, no mundo lá fora.
Depois dos primeiros dias não se queixava mais, sequer, de dor na perna fraturada. Era apenas indiretamente que vínhamos a saber que na verdade dormia pouco e mal, que a flatuléncia o incomodava, que a imobilidade lhe tirava o apetite. Mas a sua capacidade de resistência às dores físicas e morais — não quis ser anestesiado no momento em que os ossos quebrados deviam ser repostos no lugar, suportando a frio esses minutos infindáveis — mantinha os que se reuniam à sua volta na ilusão de que o tratamento seguia normalmente.
Era uma evidência contra outra evidência, pois efetivamente emagrecera, e nos últimos quinze dias o rosto mostrava sinais indudíveis de abatimento. Mas tinha junto a si, vinte e quatro horas por dia, enfermeiros que éle soubera, como sempre, transformar em amigos, e periodicamente era submetido aos exames devidos, e visitavam-no os médicos que déle cuidavam. E, entretanto, no centro do círculo dos olhares carinhosos que o cercavam, éle verdadeiramente se estava dissipando, e por isso, repentinamente, perplexos, afrontados e incrédulos, fomos atirados contra o fato brutal de que éle já não era. Carlão passara.
Êle conduziu o espetáculo, com a elegância de que nunca se departiu, com a superioridade que sempre foi a sua marca. Nós não víamos o seu corpo sob o lençol, mas êle sentia-o, e sabia. E disfarçava. Mantinha sempre diante de nossos olhos a cortina de fumaça de sua bonomia, de sua paciência sem intervalo, de sua atenção às pessoas, às palavras e aos problemas alheios. Como se o seu fosse um problema já resolvido. E eis que era.
O que há de escandaloso, de insensato, de inadmissível nessa morte, é que, como se fôsse uma outra qualquer, diante dela temos que comportar-nos como em face de qualquer outra notícia de que uma vida qualquer deixou um qualquer outro corpo. E isso não é verdade, isso é uma terrível mentira.
Êle sempre aparentou brincar com a vida, essa era a sua maneira de afugentar o convencionalismo Sua incompatibilidade com o formalismo era visceral, e, sem embargo disso, ninguém mais refinadamente delicado, ninguém mais percuciente para apanhar, num relance, a existência, num circunstante, de uma qualquer preocupação íntima. Sua desinibição, de palavras, de gestos, de comportamento, não se fazia ofensiva, porque era desde iogo evidente que ele todo era um imenso poço de inocência. Forrado de uma sensibilidade em carne viva, que o fazia sentir como uma ferroada a menor desatenção, tinha, entretanto, uma invulgar capacidade de sofrer sozinho, extrovertido em comentários divertidos sobre a situação. Sua maneira de falar era sua maneira de caiar os problemas que mais o preocupavam, e embora muitos o conhecessem assim, desde há muito tempo, ainda desta vez êle soube esconder-nos o que lá por dentro se estava passando. Pois, que êle o sabia — isso já estava no seu olhar de despedida, quatro dias antes da crise final.
Tinha uma espécie de senso de premunição, que lhe permitia, com a maior segurança, avaliar imediatamente cada pessoa. Debaixo de sua aparente imprudência havia um firme juízo sobre as mais diversas situações — numa palavra ou num gesto êle era capaz de resumir todo um relatório. Estava sempre a par do que se passava por perto e ao longe, embora os menos avisados pudessem supô-lo desatento ou desinteressado.
Mas não gostava de mostrar-se, nem queria competir com ninguém, e por isso reservara-se um comportamento capaz de desarvorar quem pretendesse reduzi-lo aos têrmos comuns. Um dos truques pelos quais costumava encobrir a afetividade que o ligava às pessoas, era dar a cada uma delas um apelido, e, quando não as alcunhava, crismava-as de outro nome, que ficava sendo o nome da relação exclusiva. Com o outro, e especialmente a outra, e tal era o seu modo I gracioso de afirmar a posse afetiva — uma nominação de uso singular.
Como não escondesse as próprias — que, ao contrário, ridicularizando, acentuava — tinha inalterável compreensão pelas fraquezas alheias, numa disposição para perdoar, uma incapacidade para odiar, uma tal agilidade em fingir de bôbo, que muita gente supunha o estar enganando. Ele permanecia atento, algumas vêzes sofria com isso, mas não desfazia o equívoco.Enquanto nos iludíamos com o que era uma demonstração de incomum força moral — que no caso confundíamos com resistência física — ele sabia, ainda desta vez, o que estava acontecendo. Na última oportunidade em que o vimos, e enquanto conversava com um grupo de pessoas postadas do outro lado do quarto, deu-nos um olhar de relance, pôs a mão direita para fora da cama, e apontou com o polegar para baixo.