Há 50 anos, o País perdia Julio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo, que morreu em 12 de julho de 1969, aos 77 anos, após quatro décadas à frente do jornal. No comando do Estado, ele sucedeu ao pai, Julio Mesquita, em 1927. Defensor da democracia liberal, dr. Julio, como também era conhecido, foi preso pela ditadura de Getúlio Vargas e punido com o exílio duas vezes durante o Estado Novo, nos anos 30 – a primeira vez em 1932 e a segunda, em 1938, quando foi expulso para a Europa.
Sem conseguir domar o jornal, o ditador decretou, em março de 1940, a invasão do Estado e a sua interdição, que se estendeu por cinco anos. Mesquita Filho retornou ao País em 1943, mas foi preso e mantido em confinamento na fazenda da família em Louveira, interior paulista. Ele retomou seu jornal somente após a queda de Vargas, em 1945. O neto, Júlio Cesar Mesquita, revela que nas três semanas em que permaneceu detido no Forte de Copacabana, no Rio, esperando o navio que o levaria para a Europa, o avô foi submetido a pesadas agressões físicas.
Julio de Mesquita Filho era casado com Marina Vieira de Carvalho Mesquita. O casal teve três filhos, Julio de Mesquita Neto, que sucedeu ao pai na direção do Estado; Ruy Mesquita, criador do Jornal da Tarde e que viria a suceder ao irmão (morto em 1997) até sua morte em 2013; e Luiz Carlos Mesquita, que morreu em 1970, aos 40 anos. Luiz Carlos idealizou a Edição de Esportes, um projeto ousado de jornalismo especializado que ia para as bancas às segundas-feiras, quando o Estado não circulava e o Jornal da Tarde ainda não existia.
‘Meu avô’. Dr. Julinho teve sete netos. Para o neto Júlio Cesar, filho de Julio Mesquita Neto, o avô “foi um homem com visão de futuro, um homem que pensava o Brasil o tempo todo; queria um País moderno, desenvolvido, que fosse justo e, sobretudo, livre”.
“Meu avô foi exilado duas vezes e expulso do jornal por cinco anos”, resumiu Ruy Mesquita Filho, neto do dr. Julio, no texto “Este foi meu avô”, que abre o livro Irredutivelmente Liberal: política e cultura na trajetória de Julio de Mesquita Filho, de Roberto Salone, pela Albatroz Editora. Editor da obra, Ruy Mesquita Filho destaca a relevância do avô na história brasileira e lembra de sua luta em defesa da democracia. Na ditadura Vargas, Julio de Mesquita Filho foi encarcerado pela primeira fez na Casa de Correição do Distrito Federal em outubro de 1932, após o movimento constitucionalista de 9 de julho. Foi depois expatriado no vapor Siqueira Campos para Portugal, de onde, meses após, se mudaria com a família para a Itália.
Fernão Lara Mesquita, filho de Ruy Mesquita, neto de Mesquita Filho, define o avô como “um desses homens hoje quase extintos que raramente empregava a primeira pessoa do singular”. “Pensava o Brasil. E, às vezes, a humanidade. Tinha o jornalismo como o que ele é: uma ferramenta de educação e um instrumento de luta política com que procurava obsessivamente ajudar a empurrar o Brasil mais para perto da modernidade e mais para longe do atraso. Ou da deseducação... Dizia que um jornalista do mal era muito mais daninho que um traficante de drogas porque prejudicava muito mais gente. Quando teve um tempinho, entre exílios, esqueceu-se de si e criou a primeira universidade do Brasil. Seu único erro foi ter trazido só professores franceses. Se tivesse trazido metade deles ingleses não virávamos os estatólatras que viramos, a história do Brasil teria sido outra e a USP não teria se transformado nisso que fizeram dela.”
USP. Dr. Julio retornou ao Brasil em novembro de 1933. Vargas declarara anistia aos revoltosos de 1932. Na volta ao País, trouxe entre seus propósitos a criação de uma instituição superior de ensino e pesquisa – a Universidade de São Paulo (USP). Formado na Faculdade de Direito de São Paulo, que cursou na segunda década do século 20, depois de ter feito os primeiros estudos na Suíça, ele acreditava que o Brasil deveria se desenvolver pela via do conhecimento e da ciência nos mais elevados padrões, caminhos que valorizava em países onde viveu, como a França, uma de suas paixões.
A USP, um sonho acalentado durante anos, foi finalmente criada pelo Decreto 6.283, de 25 de janeiro de 1934, assinado pelo então interventor federal de São Paulo, Armando Sales de Oliveira, cunhado, amigo e parceiro político de Mesquita Filho. O livro sobre a trajetória histórica de dr. Julio, editado em 2009, para marcar os 40 anos da morte dele, reproduz o discurso do jornalista feito durante homenagem recebida por ele em 1948, na USP.
Na declaração, dr. Julio deixa claro mais uma vez sua luta de um liberal contra os totalitarismos que marcariam a história mundial. A obra revela ainda (na pág. 155) que a estada na Itália “serviria para consolidar o tipo de intelectual incorporado por Mesquita: o livre-pensador humanista” (...) “Um homem nem intransigente nem sectário”, como o definiu o escritor Jorge Amado, na época “seu adversário político e amigo”.
Depois de retomar o controle de seu jornal, em 1945, dr. Julinho encontra as contas da empresa saneadas. Nesse período, o irmão dele, Francisco Mesquita, gestor talentoso encarregado das áreas administrativa, comercial e financeira do jornal, iniciava o planejamento da transferência da sede do jornal da Rua Boa Vista, 186, esquina com a Ladeira Porto Geral, para a Rua Major Quedinho, onde foi construída a nova sede. A virada da década de 1940 para 1950 era de um ambiente de forte crescimento econômico. O edifício-sede do Estado passou a ser considerado um dos símbolos da arquitetura modernista de São Paulo, com fachada de pastilhas de vidro de Emiliano Di Cavalcanti. No saguão da entrada, um painel do pintor Clóvis Graciano. Mais tarde, o prédio foi tombado pelo patrimônio histórico da cidade por sua relevância na escola modernista.
Convicções. O período que se segue com ele à frente do jornal é de progresso e de intensa renovação. É um tempo que também afirma a tolerância de dr. Julio com pensadores de posições divergentes de suas próprias convicções. Mesquita Filho, um liberal conservador, traz da Europa para São Paulo profissionais como o jornalista Miguel Urbano Rodrigues, membro do Partido Comunista Português, perseguido pelo regime de Salazar.
Durante a fase de crescimento acelerado do jornal, nos anos 1950, ele incentivou mais um projeto que marcaria a história do jornalismo nacional: a criação do Suplemento Literário, projeto elaborado por Antônio Cândido, professor da USP, entregue depois à direção de Décio de Almeida Prado.
Em depoimento, Décio de Almeida Prado definiu o jornalista como “um aristocrata de temperamento autoritário”, mas “também um liberal capaz de colocar o mundo da cultura (...) muito acima de qualquer interesse particular”, um homem que acreditava na ideia de uma “missão formadora” das elites brasileiras. Julio Filho foi autor de diversos ensaios, como A Crise Nacional (1925); Ensaios Sul-Americanos (1956); A Europa que eu vi (1953); Memórias de um revolucionário (1954); e Nordeste (1963).
Crise. Mais uma vez, o País vivia uma fase de instabilidade institucional na segunda metade dos anos 1950, com a crise política que culminou com o suicídio de Vargas e, depois, no fracasso do governo de Café Filho e a derrota da União Democrática Nacional (UDN). O candidato da UDN, general Juarez Távora, perdeu o governo para a aliança política de Juscelino Kubitschek. Mesquita Filho publica então uma série de editoriais tomando posição ao lado da UDN.
Em 1959, posicionou-se contra a construção de Brasília. Entretanto, terminada a obra de JK, determinou aos editores do jornal uma ampla cobertura da inauguração da nova capital, em abril de 1960. Também estabeleceu que o jornal instalasse na cidade uma ampla sucursal. Na eleição daquele ano, Mesquita Filho apoiou a candidatura de Jânio Quadros.
Porém, rompeu com o presidente eleito já em março de 1961, quando Jânio usou cadeia nacional de TV para criticar os subsídios governamentais na importação de papel de imprensa. “O presidente não deveria meter-se com a iniciativa privada”, escreveu em suas Notas e Informações, espaço dos editoriais da casa que mantinha sob sua pena.
No princípio dos 60, dr. Julio viu-se mais uma vez na linha de frente das ações de resistência ao autoritarismo e intervencionismo do governo. Documentos mostram que durante encontro da Comissão de Liberdade de Imprensa da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), em 1963, rejeitou uma eventual intervenção dos EUA no País. “Este é um assunto nosso e é necessário que nos deixem sós para resolvermos nossos problemas”, afirmou em uma entrevista em Miami. Um mês depois, com o agravamento da crise, resumiria sua posição: “Em defesa da democracia, sou um conspirador”.
‘Instituições em frangalhos’. O mesmo princípio volta a se fazer presente com força após a crise político-militar que se seguiu, com a Revolução de 31 de Março de 1964. Apoiada inicialmente por dr. Julio, acabou rompida diante do endurecimento da posição dos militares nos anos seguintes – a começar pela quebra do compromisso de realizar eleições em 1965 –, culminando com a série de atos de força e censura à imprensa (no Grupo Estado, os censores atuaram todos os dias de 1972 a 1975) até a edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. É quando, mais uma vez, dr. Julinho rompe com o poder autoritário ao escrever o histórico editorial Instituições em frangalhos, uma forte defesa da democracia e da liberdade de informação.
Menos de um ano depois, em 12 de julho de 1969, morre num sábado à tarde, em São Paulo, após complicações de uma cirurgia no estômago. Com ele, no apartamento do hospital Oswaldo Cruz, estavam a mulher, Marina Vieira de Carvalho Mesquita e o neto Júlio Cesar. Segundo a edição do Estado de 13 de julho de 1969, “no corredor fronteiro ao quarto 256 onde estava internado, cerca de 50 pessoas revezavam-se desde anteontem”.
Austero, mas apegado aos 7 netos
A figura austera e sempre séria registrada nas imagens oficiais não corresponde ao estilo de Julio de Mesquita Filho no trato pessoal com os amigos e com a família. O antropólogo Claude Lévy-Strauss, que ele trouxe da França na formação da USP, lembrava das recepções oferecidas pelo dr. Julinho em sua casa para reunir os professores.
O jornalista Gilles Lapouge, 96 anos, veterano correspondente do Estado na França, relata sua surpresa quando, no início dos anos 1950, desembarcou no Brasil para trabalhar na seção de Economia do Estado e encontrou o dr. Julinho esperando por ele na fila da bagagem. “Era o dono do jornal!”, afirma.
As quintas-feiras eram dedicadas ao jantar dos netos, marcado por comentários descontraídos e perguntas a respeito do desempenho na escola, conta o neto Júlio Cesar. Aos domingos, visitava os filhos em casa. “Vovô chegava e tirava os netos dos castigos aplicados pelos pais”, diz.
Usava a expressão “Homessa!” com frequência para exprimir espanto ou surpresa. “Essa característica levou o Haras Louveira, onde parentes criavam cavalos de corrida, a batizar uma égua com esse nome”, recorda Júlio Cesar. O animal teve boa carreira no turfe.
Tratava todas as pessoas de “senhor” e “senhora”, e tinha um relacionamento distante com dinheiro – só descobriu que ganhava menos que alguns editores do jornal quando foi alertado para o fato. Pagava pequenas despesas com notas altas e raramente guardava o troco.
Amigo próximo de Guilherme de Almeida, preocupava-se com a saúde frágil do poeta que também fora hospitalizado. Internado, não soube da morte de Almeida em 11 de julho de 1969.