O impeachment de Dilma Rousseff (PT) é uma história em que sobram vilões e faltam heróis. A afirmação do cientista político Fernando Limongi está logo na introdução de seu livro Operação Impeachment, Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato (editora Todavia, 304 págs., R$ 84,90). Investigar o papel dos principais atores da crise que tirou o PT do poder e pavimentou o caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro (PL) revela ao mesmo tempo os diversos projetos de políticos e de grupos sem os quais o processo que convulsionou o Brasil se tornaria ininteligível.
Professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV), Limongi tem um texto escorreito, que o faz se aproximar do jornalismo. Ele identifica quatro momentos em que diversas forças políticas – inclusive do PT – tentaram afastar Dilma da Presidência. Esquerda e direita queriam capturar a Lava Jato, que, por sua vez, tinha seu próprio projeto de poder. “Ninguém tem o monopólio do saber ou pode reivindicar o papel de empurrar a história. Não cabe a ninguém fazer isso. Se couber a alguém, cabe aos políticos eleitos. Esse é um princípio político fundamental, e a mensagem política desse livro: respeita o mandato do eleitoral; respeita quem é eleito.” Leia trechos da entrevista ao Estadão.
Por que as disputas em torno do combate à corrupção são importantes para entender a queda da Dilma?
Essas disputas ganharam relevância política enorme no Brasil e no mundo. A corrupção se torna o centro da agenda de pesquisas e debates. Há uma razão clara para isso: quem cria a Transparência Internacional é um ex-funcionário do Banco Mundial responsável por fazer as reformas liberalizantes na Europa do Leste. O projeto de reforma fez água e eles precisaram de uma explicação. E a explicação foi: os agentes não se comportavam como deveriam, como se previa nos modelos. Há ainda problemas de transferência de fundos internacionais com o 11 de Setembro (de 2001), e aí a corrupção entra na agenda de forma ampla e geral. No Brasil, vários elementos fazem a corrupção se tornar um tema candente. No final do governo de Fernando Henrique, uma série de denúncias coloca essa preocupação no centro do debate. Há brigas entre Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho, que estão relacionadas à sucessão de FHC. E isso fica efervescente. Além de uma associação entre corrupção e atraso, os modos tradicionais de se fazer a política. É quando o PT se apresenta como uma alternativa moderna, limpa, que não recorreria a essas mesmas práticas. Isso explica em parte a vitória de Lula em 2022. O evento seguinte central dessa história é a crise do mensalão, quando os pés de barro do PT aparecem. E ele vai perder o eleitorado de classe média que tinha conquistado. Ela volta para o PSDB, enquanto o PT aprofunda sua base de apoio no Nordeste. A resposta do PT à ameaça do mensalão é uma ênfase maior nas políticas sociais e o pragmatismo de quem precisa montar a base de governo. O partido não era um bom moço desencaminhado pelas companhias. Não. Por um momento o PT acreditara que poderia arrecadar fundos com os militantes. A ficha caiu e ele percebeu que o modelo era inviável. Começou a arrecadar fundos da forma como sempre se arrecadava em política. Aqui no Brasil e no mundo. Não foi depois que chegou à Presidência que o PT começou a fazer isso. O financiamento de campanhas está na pauta desde sempre. O impeachment de Collor está ligado a um modelo de financiamento que deu na CPI do PC Farias.
Mas como essas disputas em torno da pauta do combate à corrupção levaram à queda de Dilma?
No começo do governo Dilma, a questão da corrupção está posta. Explorar que você está combatendo a corrupção pode dar retorno eleitoral. Mas ela é também uma batata quente para o PT, que precisa lidar com a herança do mensalão. Dilma herda isso. O julgamento do mensalão vai desgastá-la. O marqueteiro João Santana percebe que essa é uma pauta importante, quando Dilma inicia a tal da faxina ministerial. Ela vai demitir ministros por uma série de pequenas crises. João Santana vê que isso está dando resultado eleitoral para ela, pois ela está aparecendo como combatente da corrupção. Mas a decisão crucial da Dilma é a de limpar a Petrobras. A tradição era que a empresa fosse fonte de recursos para o sistema político. Exemplo disso é que Delcídio Amaral e Nestor Cerveró são os pontos de união entre a Petrobras do tempo do Fernando Henrique e o de Dilma. Ela resolve tornar a empresa mais eficiente, ser a base da industrialização nacional, a partir do pré-sal. Pretendia-se repetir uma parte do modelo da Coreia do Sul, um projeto que tem inspiração na Cepal. Dilma demite Paulo Roberto Costa, Jorge Zelada e Renato Duque, as três principais diretorias da Petrobras, cada uma com um partido. Esses três caras serão as três forças que vão alimentar a Lava Jato, que se ocupa, no começo, do primeiro e do segundo governo Lula. A força-tarefa estava investigando o passado, mas sempre escrevia no presente, fazendo um truque retórico genial enquanto Dilma queria limpar a Petrobras para o governo dela ter uma marca, aquela viagem que todo mundo embarcou do pré-sal. A intervenção da Dilma vai gerar um conflito interno na coalizão governante muito forte. Quem perdeu os recursos na Petrobras reagirá.
O historiador Christopher Clark usa a imagem dos ‘sonâmbulos’ para descrever como a elite governante na Europa caminhou em direção ao abismo de agosto de 1914. Pode-se dizer que Dilma, Eduardo Cunha, Aécio Neves, Romero Jucá e outros se comportaram da mesma forma, todos rumaram para a catástrofe sem se darem conta disso?
A ideia é essa. Você teve gente que se comportou como aprendiz de feiticeiro. Todo mundo achando que vai sair ganhando nessa jogada e vai controlar o processo; que em algum momento vai encomendar a pizza e ela virá; e meus adversários dançarão e eu sobreviverei. Estava todo mundo tentando uma briga por posições e vantagens imediatas com um certo sonambulismo em relação ao mérito. Acabaram todos brincando de aprendiz de feiticeiro e perdendo o controle. Mas o feiticeiro era a Lava jato. Todo mundo achava que controlaria a Lava Jato. E saberia o momento de parar. Ou que ela se contentaria em pegar os seus inimigos. A Dilma tem esse cálculo. Ela estimula as investigações para se vingar dos seus adversários, daqueles que reagiram fortemente à limpeza da Petrobras e armaram contra ela o escândalo de Pasadena e o ‘Volta Lula’, que foi uma tentativa de enquadrá-la. Dilma entra na onda da vingança. Mas os adversários são bons de jogo. Ela estava enfrentando o Eduardo Cunha e a Construindo um Novo Brasil (CNB, corrente interna do PT). A Dilma estava sempre achando que a Lava jato não ia chegar a ela, pois ela se ocupava do passado e não do governo dela. O Aécio está pensando na eleição de 2018. Os movimentos de apoio de última hora à candidatura dele em 2014 e a militância que saiu à rua lhe dão a perspectiva de usar a radicalização e os manifestantes como armas para vencer o combate interno com Geraldo Alckmin. Essa é a trama que eu tento desvendar. Uma explicação de que as pessoas fazem coisas erradas não é convincente. Meu grande problema foi dar vida à perspectiva que cada ator tinha naquele momento para acreditar no que estava fazendo a fim de controlar os efeitos de um terremoto. Estavam provocando um terremoto, achando que iam controlar os efeitos. A casa que ia cair era a do seu inimigo, mas a dele seria preservada.
Fernando Limongi, cientista político e professor da USP e da FGV
O senhor diz que o impeachment devia servir mais para dissuadir do que para se usar. Os EUA nunca conseguiram aprovar um, e o Brasil fez dois em 25 anos. Por que isso acontece na Brasil e não em uma democracia como a americana?
Não tenho elementos comparativos para olhar outros impeachments. Acredito que, no caso de Fernando Collor, o que aconteceu com Dilma também pode se aplicar. Teria de se saber a variação das regras de impeachment de cada país. No caso do Brasil, a regra fundamental é que ele é aprovado pelo Congresso e levado a cabo pelo Congresso. Outra característica crucial é saber quem assume depois que o presidente é afastado. O caso do vice assumir, como no Brasil, define a natureza do processo, pois, em tese, o vice é membro do mesmo grupo político do presidente.
O que fazia abrir duas possibilidades para a oposição no caso da Dilma: o impeachment ou impugnação da chapa no TSE?
No caso do PSDB, ele estava jogando com essas duas alternativas. E a preferida era impugnar a chapa; tirar (Michel) Temer e Dilma e ir ao poder diretamente. Em geral se interpreta o impeachment como uma arma da oposição. Não é da oposição. Não é só dela, que não é necessariamente favorável ao impeachment. Por quê? Porque ela não vai chegar ao poder diretamente. Quem vai chegar é o vice. A posição política do vice é fundamental. No caso do Collor, favoreceu o fato de o vice já estar rompido com o presidente. Era o Itamar (Franco). E o ‘Itamar’ não concordava com o ‘Franco’. Naquele caso, havia um constrangimento menor. Mas, mesmo assim, a oposição teve de confiar que o vice-presidente ia ser de alguma forma melhor para ela do que o presidente. No caso do PSDB, o Aloysio Nunes Ferreira falava diversas vezes, a melhor opção era esperar 2018 ou impugnar a chapa.
O que faltou a Dilma? Fortuna e virtù?
Eu acho que sim. O impeachment era da presidente Dilma, mas personificar desse jeito é um equívoco, pois ele é um processo político que não só visa a presidente. Como o PT percebeu, no final das contas, quem foi impedido não foi a Dilma, mas o PT. PT e Dilma exploraram demais suas divisões e foram muito a fundo em suas divergências a ponto de minimizarem os efeitos disso para o partido. Quem estava na Presidência era o partido. O impeachment tem essa dualidade. Ele tem de ser na pessoa, mas ele é um processo político. Ele visa a pessoa, mas visa também o partido, a base do governo.
Dilma não caiu em função da força das ruas?
Em hipótese alguma. As ruas tentaram. O PSDB se aliou às ruas e insuflou esse movimento, mas não foi a rua, mas as forças de oposição que fizeram o acordo com esses movimentos sociais que se organizaram na eleição e estavam apoiando o Aécio. Era umbilical essa relação entre Rogério Chequer, do Vem Pra Rua, e o pessoal do MBL. Eram movimentos de rua aliados ao PSDB. O MBL organizou uma marcha sobre Brasília, com o objetivo de chegar à capital com uma multidão. O Aécio se comprometeu a recebê-los quando chegassem. Mas ele fugiu. Quando se deu conta de que amarrou o burro em um exército de Brancaleone, ele foi para Nova York.
Aí entra um personagem fundamental, que é a Lava Jato, quando ela chega ao governo Dilma.
Em dezembro de 2015, o Rodrigo Janot monta a prisão do (senador) Delcídio (Amaral), que é o catalisador que desestrutura o sistema político pela primeira vez. A segunda vez será em fevereiro, quando a Lava Jato faz a Operação Acarajé e desestrutura o que seria o acordão entre os políticos.
Fernando Limongi, cientista político e professor da USP e da FGV
Essa sequência mostra que a Lava Jato não seria domesticada por nenhum partido? Mas, na história, nenhum ator é autônomo. Ele faz sua história, mas dentro de determinadas condições. A Lava jato não trazia dentro de si a antipolítica, uma corrente que se reclama como antissistema? A Lava Jato se entrelaçou com a antipolítica à esquerda e à direita?
Não tenho informações suficientes sobre a política no interior do Ministério Público Federal. Há um projeto institucional do MPF de aumento de seu próprio poder e de prerrogativas para controlar os políticos com base na ideia de que eles precisam combater a corrupção e o desvio de verbas. Para eles, esse é um problema do sistema político. As empreiteiras são vítimas de um sistema político viciado, como se fossem achacadas. A história não é essa. Há uma relação umbilical, simbiótica, de muitos desses agentes econômicos com o sistema político, que é estrutural. Não acontece só no regime político brasileiro, nem só pós-1988. O MPF e o Poder Judiciário têm uma concepção própria do mundo político, que vê muito negativamente o processo eleitoral. Temos duas autoridades competindo pelo poder. Uma chega ao seu cargo por meio de concurso, que são promotores e juízes, e outra que chega por meio (do processo) eleitoral, que são os legisladores e os chefes de Executivo. O artigo original do Sérgio Moro, em que ele afirma a concepção do que seria a Lava Jato a partir da Operação Mãos Limpas, é uma visão que coloca o Ministério Público e a Justiça Federal como grandes censores do sistema político, como uma agência da moralidade e do respeito à coisa pública.
Censores dentro de uma tradição romana?
Uma tradição bem antiga disso, que tem a ver com o renascimento do republicanismo clássico no debate político contemporâneo: essa ideia de que a moralidade é que é o central. E que a moralidade dos agentes públicos tem de ser vigiada e controlada por alguém que tem o poder para puni-los. Esse alguém não é o eleitor, porque ele é incapaz. Essa visão tem um menosprezo, uma deslegitimação de todo o sistema político-eleitoral. Ela é a visão dos funcionários públicos, dos caras que chegam a exercer cargos de poder por meio de concurso. Há uma competição entre o Judiciário e o Ministério Público e os eleitos. O grande projeto do MPF é assumir a posição de grande censor. E está escrito, consubstanciado nas dez medidas contra a corrupção. Esse é o grande projeto do MPF e de parte do Judiciário. E tem apoio dentro do STF. Esse é o projeto que vai dar o apoio à Lava Jato.
Mas são pessoas que estão dentro do Estado.
Mas se veem como apolíticos ou acima da luta político-partidária. Mas eles não estão.
Existiria um partido da Lava Jato?
Não. Tem um projeto, havia uma visão de como devia ser moldado o sistema político. Tem um caldo de cultura que pode enveredar por várias correntes. O que eu acho é que tem um grupo mais à esquerda no MPF, que está na PGR com Rodrigo Janot, e um grupo mais à direita que está em Curitiba. Esse grupo tem uma relação mais forte com evangélicos e com a Polícia Federal. Sérgio Moro e Deltan Dallagnol não eram desde sempre bolsonaristas. Há um ponto de reunião, é certo. Jair Bolsonaro é a chance de se poder fazer o projeto deles, por isso Moro aceita ser ministro. Mas pensar que isso é só oportunismo é minimizar. Há uma filosofia, um princípio, que é a visão tecnocrática de que político é tudo lixo e, sobretudo, uma ideia do que é a boa Justiça. Boa Justiça é punição rápida, imediata e eficaz. Todos os anteparos que o liberalismo criou para evitar injustiças caem por terra. É um projeto profundamente antiliberal o de Moro e o de Dallagnol. O que me chama a atenção é como a gente pôde simpatizar com ele, o quanto eles conseguiram construir um projeto totalmente antiliberal e arbitrário e revesti-lo como algo positivo. Tem um problema grave que a gente está lidando, que é a desvalorização dos princípios do governo representativo, da ideia de que representantes eleitos são legítimos, que eles devem ter o poder. O poder e a soberania têm de estar nas mãos dos políticos eleitos. A classe política não é a escória da sociedade. A ideia original é de que eles seriam uma elite desinteressada, acima dos interesses. Eles não são isso. Mas também não precisa dizer que eles são a escória da sociedade brasileira. O que há de pior também está no Judiciário, no Ministério Público, em todo lugar. Ninguém tem o monopólio do saber ou pode reivindicar o papel de empurrar a história. Não cabe a ninguém fazer isso. Se couber a alguém, cabe aos políticos eleitos. Esse é um princípio fundamental e a mensagem política desse livro: respeita o mandato do eleitoral; respeita quem é eleito. Quem é eleito não é a escória. Você pode não gostar, mas o mandato dele é melhor do que qualquer outro, pois ele é renovável. Você pode demiti-lo. Mas você o demite a cada quatro anos. Perdeu, ponha a viola no saco e aguenta. É o que temos para hoje e o que funciona melhor.