'A esquerda, que era contra a Constituição de 1988, agora é a sua maior defensora'


Para o jurista Nelson Jobim, é preciso promover uma 'lipoaspiração' na Constiutição para destravar o País e para adequá-la às transformações ocorridas no Brasil e no mundo desde a sua promulgação, há 28 anos

Por José Fucs
O ex-ministro Nelson Jobim 

O jurista Nelson Jobim, de 70 anos, conhece como poucos o coração do poder. Ex-ministro da Defesa nos governos Lula e Dilma, ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF), ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique, ex-relator da fracassada reforma constitucional de 1993 e ex-Constituinte pelo PMDB, Jobim circula com desembaraço entre "gregos" e "troianos".

No final de julho, ele deu uma guinada em sua trajetória profissional e começou a trabalhar no sistema financeiro. Tornou-se sócio e membro do conselho de administração do BTG Pactual, fundado pelo banqueiro André Esteves, investigado na Operação Lava Jato, com a missão de cuidar das áreas de relações institucionais e de governança do banco. Nesta entrevista, realizada no começo de setembro em seu apartamento nos Jardins, em São Paulo, Jobim conta histórias dos bastidores da Constituinte, fala sobre as mudanças que devem ser feitas na Constituição de 1988 para destravar o País e comenta a reforma política que está em discussão no Congresso Nacional. A entrevista foi feita para a série "A reconstrução do Brasil", lançada pelo Estado para discutir os grandes desafios do País após o impeachment. "A esquerda, que era contra a Constituição de 1988, agora é a sua maior defensora", afirma Jobim.

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Estado - Hoje, quase 28 anos depois de sua promulgação, qual é a sua visão sobre a Constituição de 1988?

Nelson Jobim - A Constituição avançou enormemente no que diz respeito aos direitos e garantias individuais. Foi importante no que diz respeito à atribuição de mais competência aos estados e municípios. Os tributos ficaram bem divididos. O problema, em relação ao chamado "pacto federativo" - que eu não considero pacto federativo, porque não houve pacto nenhum -, foi que nós criamos as contribuições com uma natureza tributária. Os impostos eram distribuíveis, integravam o Fundo de Participação dos estados e municípios, mas as contribuições, não. O governo, então, a partir da gestão de Fernando Henrique, com o Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda) e o problema fiscal que se acentuou com a queda da inflação, congelou os impostos e começou a aumentar as contribuições. A arrecadação global aumentou, mas a participação dos estados e municípios no bolo diminuiu, porque ficou restrita aos impostos. Isso se tornou um problema, decorrente de decisões operacionais tomadas pelo Poder Executivo da época - e se mantém até hoje.

Muita gente diz que um dos principais problemas da Constituição de 1988 é que ela foi elaborada para o regime parlamentarista, mas no final o plenário da Constituinte aprovou o regime presidencialista, deixando a Constituição no meio do caminho, meio híbrida. O senhor concorda com essa avaliação?

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Hoje todo mundo repete isso como se fosse verdade, mas não é. A Comissão de Sistematização aprovou um texto parlamentarista. Quando ele foi para o plenário, houve uma emenda do senador Humberto Lucena, do PMDB, do Vivaldo Barbosa, do PDT, e de mais um grupo de presidencialistas. Eles ofereceram uma emenda completa, mudando todo o sistema. Então, essa história não tem nada a ver. Na Constituição, o capítulo das garantias e direitos individuais não tinha nada a ver com o parlamentarismo ou com o presidencialismo. O sistema tributário também não. O sistema econômico e a Previdência, idem. Nada disso foi alterado na Constituição. Com a aprovação da emenda do Humberto Lucena, a Constituição foi mudada integralmente neste capítulo. Essa emenda presidencialista incorporava inclusive a Medida Provisória, que é originária do parlamentarismo.

Se a Medida Provisória é um expediente típico do parlamentarismo, faz sentido adotá-la no sistema presidencialista?

Se isso fosse verdadeiro, o decreto-lei seria um dispositivo parlamentarista? Não. A diferença entre a Medida Provisória, que nós aprovamos em 1988, e o decreto-lei é que, se a Medida Provisória perdesse efeito, se não fosse votada, ela caía desde a data de sua edição. O decreto-lei, se votado ou não, transformava-se em lei. Em países presidencialistas há esse tipo de expediente. Depois, com o uso, houve distorções. Mas o fato é que a Medida Provisória se destina a casos de urgência e relevância, que ocorrem tanto no parlamentarismo como no presidencialismo. A única diferença é que, no presidencialismo, se não for aprovada uma Medida Provisória, o governo não cai. No sistema parlamentarista, se não for aprovado um ato de urgência, é o início da queda do governo. Recentemente, houve uma mudança para restringir o uso de Medida Provisória no Brasil. Foi proibida a reedição, porque antes era só prorrogar o seu prazo que ela continuava válida. Foi um remendo, mas tudo bem. Agora, uma coisa não tem nada a ver com a outra.

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“Na Constituinte, eu entendi o que o pessoal chamava de sociedade civil. Eram grupos organizados, que queriam defender ou congelar seus interesses na apreensão do Estado”

Hoje, que pontos o senhor mudaria na Constituição?

No governo Fernando Henrique, quando houve aquela revisão constitucional, em 1995, eu fui o relator. Naquele momento, nós fizemos todos os textos para reformar a Constituição. Daquilo, foi aprovado só alguma coisinha. Naquela época, nós fomos examinar o assunto e o que ocorreu com a Constituição de 1988 foi o seguinte: era muito mais fácil aprovar um texto para a Constituição do que uma lei. Para aprovação de um texto constitucional, eram necessárias duas sessões unicamerais e maioria absoluta. No caso de uma lei, além das restrições de origem, porque algumas são de competência exclusiva do presidente da República e dos outros Poderes, é preciso aprová-la na Câmara por maioria absoluta ou simples, se for lei complementar. Depois, ela tem de ser aprovada no Senado. Se for aprovada no Senado, vai para a sanção do presidente da República. Se ele vetar, é preciso maioria de 2/3 para rejeição do veto. Era muito mais fácil aprovar um texto constitucional do que uma lei. Então, a tendência naquele momento, em que havia uma desconfiança em relação ao regime militar, foi enfiar todo tipo de coisa dentro da Constituição. O (jurista) Miguel Reale Júnior dizia que "a Constituinte servia da tanga à toga", ou seja, era suscetível aos interesses de todo mundo. Naquela época, eu entendi o que o pessoal chamava de sociedade civil. Eram grupos organizados, que queriam defender seus interesses ou congelá-los na apreensão do Estado.

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Como essa inclusão de matérias que nada tinham a ver com a Constituição afetou o País?

O que aconteceu foi que você aumentou enormemente a constitucionalização de matérias. Com isso, aumentou substancialmente o poder do Supremo Tribunal Federal (STF). As ações diretas de inconstitucionalidade se multiplicaram. A partir de 1988, teve outro problema que contribuiu para isso. O Parlamento deixou de ter consistência, com posições claras, em decorrência da multiplicação de partidos políticos. A regra naquele momento era que uma lei, para ser aprovada, precisava de ambiguidade. Quanto mais ambíguo fosse o texto legal, mais fácil era sua chance de ser aprovado. Quanto mais claro, preciso, mais difícil era conseguir a maioria. Com isso, também se aumentou o poder do Judiciário de forma geral. Eu participei disso e também fiz regras ambíguas. A gente fazia uma regra perfeita e depois começava a introduzir adjetivos e advérbios de modo, para formar maioria. Se não, não conseguia aprovar nada.

“Eu sou favorável a fazer uma lipoaspiração na Constituição”

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Qual a sua posição em relação a uma ampla reforma na Constituição?

No governo Fernando Henrique, eu sustentei que tínhamos de fazer uma lipoaspiração da Constituição. Eu sou pela lipoaspiração. Se você falar em reforma constitucional, vai acabar aumentando a Constituição, em vez de diminuí-la. Sou favorável a que a reforma constitucional seja para reduzir e jogar o que for possível para a lei ordinária. Veja a questão tributária. Está tudo dentro da Constituição. Eu reduziria o desenho do capítulo tributário, reduziria o desenho dos direitos econômicos. Nos direitos e garantias individuais, há vários assuntos que não tem nada a ver com isso, como o direito de associação. Por que está tudo dentro da Constituição? Porque quando as seis comissões consolidaram os textos das subcomissões e enviaram para o Bernardo Cabral, que era o relator, ele juntou tudo. Deu um mundaréu de artigos. Como a crítica foi muito forte, o que ele fez? Transformou vários artigos em parágrafos ou incisos. Aí o artigo 5º da Constituição ficou com um mundaréu de incisos. Hoje, temos 78 incisos.

O senhor acha que há clima hoje para fazer essa "lipoaspiração" na Constituição?

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Uma coisa é a necessidade acadêmica ou lógica ou científica em relação à Constituição. Mas é evidente que é muito difícil conseguir uma maioria para fazer isso, porque as desconfianças são muito grandes. Se você for mexer no sistema tributário, os Estados enlouquecem. A tendência é achar que a União vai querer concentrar tudo em suas mãos. Uma das fórmulas para fazer isso, que eu sugeri na época, era suprimir esses artigos e transferí-los para as disposições transitórias, dizendo que eles serão substituídos em definitivo quando se votar a legislação correspondente e que eles ficarão em vigor até que se votem novas leis. Você assegura o status quo, mas possibilita que depois as mudanças aconteçam, por maioria absoluta ou simples, dependendo se for lei complementar ou não.

No capítulo dos direitos sociais, há uma percepção de que a Constituição foi muito ampla, sem os recursos necessários para viabilizá-los, e que isso estaria na raiz da atual crise fiscal do País. Como o senhor vê essa questão?

Quando nós discutimos isso em 1988, a maioria expressiva da Constituinte não tinha experiência do Executivo - e havia uma imensa expectativa nesse capítulo. Foram criadas enormes distorções sem fazer conta. Eu me lembro claramente que o Alberto Goldman, que era secretário da Administração de São Paulo no governo de Orestes Quércia, foi para Brasília para mostrar que aquilo que estava se fazendo era um absurdo e iria criar um enorme problema para o setor público. Então, no que diz respeito à criação de direitos, houve certo exagero. Aprovaram-se muitos direitos econômicos e sociais sem os recursos correspondentes. No governo Sarney, quando o Mailson da Nóbrega assumiu o ministério da Fazenda, veio um discurso fortíssimo do governo contra as regras da Previdência, aquele negócio da paridade entre os inativos e os servidores da ativa, mas a Constituinte não atendeu o reclamo. Isso acabou repercutindo no Poder Judiciário.

De que forma se deu essa recuperação no Judiciário?

O Poder Judiciário não faz diferença entre os direitos econômicos e sociais, que dependem de dinheiro público, e os direitos civis e políticos, como o habeas corpus e o direito de ir e vir, que não dependem de recursos. Veja o conflito na área saúde, com os remédios. Há uma falta de gestão absoluta. Imagine um juiz que recebe um pedido de um cidadão, com atestado médico, dizendo que ele vai morrer se não tomar aquele remédio. Você acha que o juiz vai indeferir? Não vai. Precisa racionalizar isso. A sociedade não suporta esse tipo de coisa.

O pessoal fala muito que a Constituição só tem direitos e não obrigações.

É evidente que no capítulo dos direitos sociais e econômicos não há obrigações, só direitos. Quem tem obrigação é o Estado. Temos que compatibilizar o exercício desses direitos com a possibilidade de o Estado atendê-los.

“Você não pode pretender que uma geração, que foi a minha em 1988, resolva definir o que deverá ser o Brasil nos próximos 200 anos”

A inclusão do direito à educação na Constituição é interpretada, muitas vezes, como o direito de todos, em todos os graus de ensino, à educação gratuita, independentemente da renda familiar. Como o senhor analisa isso?

Se você examinar a discussão toda sobre reforma educacional no Brasil, vai observar o seguinte: ao fim e ao cabo, depois de passar o véu dos adjetivos e advérbios de modo, você vai cair no aumento de salário do professor. Qual é a coisa mais ineficiente hoje no Brasil? São as universidades públicas. As universidades privadas vão muito bem, e estão crescendo. As públicas estão quebrando, porque virou tudo um jogo de salário. Agora, isso não é matéria constitucional, mas de lei ordinária. O modelo "A" ou "B" ou "C" é bom quando funciona. Quando não funciona, a discussão é quase ideológica. Tem análises econômicas sobre a questão do direito gratuito à educação. Hoje, se você verificar, as universidades públicas são dominadas pela classe média. Muitas delas não têm curso noturno. Isso impede quem precisa trabalhar durante o dia de cursar a universidade. Hoje, quem pode ficar de manhã ou à tarde numa escola? Quem tem recursos, do pai e da mãe, da família. Agora, no curso médio, na escola pública, a maioria não tem recursos, enquanto nas escolas particulares a maioria vem de famílias com recursos. Na universidade, isso se inverte.

Fala-se que, com as cotas, isso está mudando.

As cotas vão ajudar. Agora, como a cota não é econômica, mas racial, preto, branco, tem uma questão aí que precisa ser melhor analisada. Há uma coincidência do preto com o problema econômico, mas muitos brancos também estão nessa situação e não se beneficiam das cotas.

Na época da Constituinte, o ex-presidente José Sarney disse num pronunciamento na TV que o Brasil se tornaria ingovernável.

O Sarney tinha razão. Eu reconheço. Nós estávamos numa euforia de direitos, porque a gente vinha de um regime fechado. Um processo Constituinte, democrático, é complicado, porque, para aprovar uma lei, precisa fazer maioria, no caso maioria absoluta.

Hoje, o PT, que nem votou a Constituição e só a assinou depois, e outros partidos e organizações de esquerda são contra qualquer mexida na Constituição. Dizem que a Constituição é "imexível", que querem tirar direitos dos trabalhadores. De que forma o senhor vê esse movimento contra as reformas na Constituição?

Eles estão repetindo o que aconteceu na revisão constitucional de 1993, que fora prevista na Constituição. Toda a esquerda era contrária. Eles eram contra a Constituição de 1988, mas em 1993 passaram a ser os grandes defensores da Constituição. Agora, está acontecendo a mesma coisa. A Constituição americana só define o Estado americano e acabou. O resto são emendas constitucionais que vieram depois e as decisões da Suprema Corte americana, que compõem o modelo constitucional americano. No Brasil, a gente encheu a Constituição de coisas que faziam sentido naquele momento. Hoje, não fazem mais sentido. Como a Constitutição é muito ampla, as reformas têm de ser feitas. Na Constituinte, quando fomos votar o capítulo da Ordem Econômica, com aquelas estatizações, aquela coisa toda, havia um problema sério. O PMDB não podia discutir nenhum ponto da Ordem Econômica, porque reunia comunista e liberal da direita. Então, o que a gente fez? A gente reproduziu o modelo getulista de 1950. Isso foi alterado em 1995, com as reformas econômicas, quando eu era ministro da Justiça, no governo Fernando Henrique. Agora, o processo Constituinte não terminou. Você não pode pretender que uma geração, que foi a minha em 1988, resolva definir o que deverá ser o Brasil nos próximos 200 anos. Não é possível. Muda tudo, muda o quadro. Tanto não tínhamos clareza e muita segurança do que estávamos votando em 1988 que nós previmos a revisão constitucional, que não deu certo, cinco anos depois. Quem gosta de Constituição eterna são os professores de Direito, porque eles escrevem um livro e depois não precisam revisá-lo, e as editoras, que não terão o que fazer com os livros publicados se a Constituição for alterada. Por que se revisa muito a Constituição? Porque tem muita coisa lá dentro. Se você tivesse uma Constituição como a dos Estados Unidos, que só define os poderes e a relação com os estados federados, que lá é diferente, isso não aconteceria.

“O País foi partilhado entre as corporações. Precisa ter uma força política grande para começar a se livrar das corporações”

Na Constituição, predominou o espírito da descentralização dos recursos públicos. Mas, hoje, a política do "pires na mão" em Brasília, que exisitia na época dos militares, voltou com toda a força. O pacto federativo virou novamente uma bandeira, como na época da Constituinte. Qual é a sua visão sobre a questão do pacto federativo?

Primeiro, temos de saber do que se trata. Eu ainda não vi ninguém dizendo qual é o pacto federativo que se quer. O pacto federativo que, ao fim, está posto é aumento de receita para os Estados e municípios. Quando houve transferência de atribuições para os municípios, houve a transferência de recursos. Só que os recursos foram congelados e as despesas foram aumentando. E, quando se aumentou a carga tributária, aumentou-se naquilo que os Estados não recebiam. Então, a fatia da União cresceu. Houve um desequilíbrio. Agora, quando fala de pacto federativo, não é discutir o modelo A, B ou C. Tem de fazer um pacto que funcione. O modelo atual deixou de funcionar num determinado momento, porque mudaram as circunstâncias. Precisa ter a lucidez de saber que aquilo não é uma coisa definitiva. Mas nós temos mania de achar que tem o bem e mal.

O que deve ser feito para recuperar o espírito da Constituinte na questão da descentralização?

Tem que aumentar a receita dos Estados. A competência dos Estados hoje está espremida entre as dos municípios e a da União. Os Estados não têm muita coisa para fazer. O que faz uma Assembleia Legislativa? O que vota? Nada. Aí, começa a haver uma distorção, A Assembleia Legislativa começa a votar obrigações para o Estado cumprir e elas decorrem da necessidade que o sujeito tem de se reeleger. O discurso de um candidato a deputado estadual parece o de um candidato a governador. Os governadores querem que a União determine tudo para se ver livre da pressão das assembléias. Ou não é assim? No governo do PT, houve problemas graves. Nos governos do Lula e da Dilma, os benefícios fiscais foram concedidos em cima dos impostos partilháveis, principalmente o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Quando você dá um benefício fiscal para a indústria automobilística, isso atende a quem? São Paulo, Minas. Mas reduz a receita do fundo de participação e atinge o Acre, que não tem nada a ver com o assunto. Em parte, a União fazia benefício fiscal com dinheiro alheio. Também começaram a criar pisos nacionais para diferentes categorias, seguindo o modelo do salário mínimo. Criaram o piso nacional para professor público. O professor público de São Paulo tem o mesmo piso profissional que o professor que mora em Santa Rosa do Purus, no Acre. Não faz sentido. Começaram a criar obrigações nacionais sem dar recursos aos entes da Federação para isso. Ao mesmo tempo, tiraram recursos dos Estados, porque todos os benefícios fiscais foram em cima de impostos partilhados. O que motivou os incentivos fiscais? A tentativa de assegurar o emprego na indústria automobilística, atender a uma reivindicação dos sindicatos. O governo se submetia às pressões dos sindicatos. A CUT hoje é formada principalmente por sindicatos de servidores públicos. O País foi partilhado entre as corporações. Precisa ter uma força política grande para começar a se livrar das corporações. O aparelhamento do Estado por parte do PT é algo que tem de ser melhor avaliado. Todo o pessoal do partido que entrou para o Estado contribuía para o partido, com o dízimo. Sair do governo não é só um problema individual. É um problema de receita para o partido.

“Tem que tentar de novo a aprovação da cláusula de barreira. Tenho a impressão que o Supremo já percebeu a bobagem que fez quando votou contra”

Uma última questão: em relação à reforma política, qual é a sua posição?

A primeira pergunta que deve ser feita é a seguinte: a reforma política é necessária ou não? Todo mundo diz que sim. Então, se a reforma política é necessária, nós não podemos fazer a pergunta se ela é viável ou não. Se perguntar se é viável, a tendência é não fazer. Se ela é necessária, vamos fazer. No plano político, toma-se a decisão de fazer. No plano estratégico, define-se o que se vai fazer. Depois, no plano operacional, define-se como fazer. E, no plano tático, fazem-se os recuos que forem necessários para chegar lá. Acho difícil fazer uma reforma completa. Nós podemos começar pelo problema da coligação das eleições proporcionais. Tem que tentar novamente a aprovação cláusula de barreira, cuja derrubada pelo Supremo, no meu ponto de vista, foi um erro absurdo, sob o argumento de que os partidos pequenos seriam afetados. Era uma visão completamente romântica de uma realidade que não dizia respeito a isso. Na eleição de vereadores, eles criaram um troço inteligente, ao estabelecer que só será eleito vereador, mesmo pelo quociente partidário, quem fizer um mínimo de 10% do quociente eleitoral. Se o quociente eleitoral for de 100 mil, o vereador precisará de pelo menos 10 mil votos. Só então, ele poderá entrar na lista do partido. Se não, vai ser suplente. É uma forma de barreira. Se não, o sujeito acaba se elegendo com 230 votos, vinte votos, sei lá quantos. Precisa ter um mínimo. Esse modelo também pode ser estendido para deputados federais e estaduais, o que será uma maravilha, já criará uma restrição. Agora, eu voltaria a analisar a clásula de barreira na Câmara. Tenho a impressão de que o Supremo já percebeu a bobagem que fez naquela época, quando votou contra. Outra mudança importante, que é mais difícil, mas pode ser feita dentro do contexto de benefício para o País, seria a proibição das coligações proporcionais, que é uma forma de os partidos pequenos sobreviverem. Fazem a coligação, se elegem e depois abrem mão de tudo.

Na questão do financiamento de campanha, o senhor é favorável à volta das doações de empresas?

Quem proibiu a contribuição de empresas para a campanha eleitoral foram os militares lá atrás. Em 1986, não tinha contribuição de empresa. Aí, como estava um bagunça, o Congresso resolveu autorizar e estabelecer limites, formas de fiscalização, que foram fracos, mas foram estabelecidos. O modelo de restrição às doações empresariais, anunciado como uma grande novidade, não é nada disso. Esse modelo, apoiado pelo PT como uma grande conquista democrática, é do tempo dos militares. Por que os militares fizeram isso naquela época? Porque o apoio do empresariado ao regime estava se esgotando e os militares não queriam que eles dessem dinheiro para a oposição. Quem se beneficia com isso? Quem tem cash. E quem tem cash hoje no Brasil? As igrejas. Quem mais tem cash? As empresas de ônibus, de transporte coletivo. Isso vai empurrar esse pessoal para a ilegalidade. Para fiscalizar isso, tem de rastrear a ciculação do dinheiro. Toda vez que se fala em financiamento de campanha, a maior parte da conversa é do lado da receita, quando o problema é do lado da despesa. Você teve limite de gastos, mas não teve nenhuma alteração sobre o universo das despesas. Se for necessário, o sujeito acaba achando um jeito de burlar a legislação. Vamos admitir a seguinte hipótese: quinze ou vinte dias antes da eleição, um candidato a deputado recebe a informação do seu gerente do processo eleitoral de que o dinheiro acabou. Não tem dinheiro para gasolina do carro, para santinho, nada. Você acha que ele vai parar campanha? Ele vai dizer para tocar para a frente que depois ele dá um jeito. Não adianta proibir alguma coisa em lei. Se essa coisa se tornar necessária, o sujeito vai acabar encontrando um jeito de fazê-la.

Como evitar que esse tipo de coisa aconteça?

Eu sou favorável a a introduzir o sistema distrital, para reduzir o universo da campanha. No nosso modelo, você disputa com o candidato do próprio partido, porque é ele que pode tirá-lo da lista de eleitos, considerando o quociente eleitoral e o partidário. Se o partido elege dez candidatos pelo quociente partidário, quem são os dez? Os dez mais votados. Logo, eu tenho que brigar para estar entre esses dez. Quem pode me tirar dos dez? O candidato do meu próprio partido, não o candidato do outro partido. Você pode fazer a a campanha distrital e criar um mecanismo para que o voto distrital não seja necessariamente majoritário, estabelecer limites. Os partidos poderiam ter candidatos em todos os distritos de um estado. Metade das vagas seria preenchida pelos distritos. A outra metade, pelo sistema majoritário. Você poderia criar um número de distritos igual à metade das vagas. Por exemplo: São paulo tem 70 vagas na Câmara Federal. Então, 35 viriam dos distritos e 35 das listas dos partidos. Os candidatos dos partidos que não se elegerem pelos distritos poderão se eleger pela lista eleitoral. É um ajuste do modelo alemão. Há saídas para o problema. A questão é que o sistema eleitoral não é assunto para a academia. Os acadêmicos fazem discursos etc e tal, mas todos os sistemas votados pelo País não foram feitos por acadêmicos, mas por políticos.

O ex-ministro Nelson Jobim 

O jurista Nelson Jobim, de 70 anos, conhece como poucos o coração do poder. Ex-ministro da Defesa nos governos Lula e Dilma, ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF), ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique, ex-relator da fracassada reforma constitucional de 1993 e ex-Constituinte pelo PMDB, Jobim circula com desembaraço entre "gregos" e "troianos".

No final de julho, ele deu uma guinada em sua trajetória profissional e começou a trabalhar no sistema financeiro. Tornou-se sócio e membro do conselho de administração do BTG Pactual, fundado pelo banqueiro André Esteves, investigado na Operação Lava Jato, com a missão de cuidar das áreas de relações institucionais e de governança do banco. Nesta entrevista, realizada no começo de setembro em seu apartamento nos Jardins, em São Paulo, Jobim conta histórias dos bastidores da Constituinte, fala sobre as mudanças que devem ser feitas na Constituição de 1988 para destravar o País e comenta a reforma política que está em discussão no Congresso Nacional. A entrevista foi feita para a série "A reconstrução do Brasil", lançada pelo Estado para discutir os grandes desafios do País após o impeachment. "A esquerda, que era contra a Constituição de 1988, agora é a sua maior defensora", afirma Jobim.

Estado - Hoje, quase 28 anos depois de sua promulgação, qual é a sua visão sobre a Constituição de 1988?

Nelson Jobim - A Constituição avançou enormemente no que diz respeito aos direitos e garantias individuais. Foi importante no que diz respeito à atribuição de mais competência aos estados e municípios. Os tributos ficaram bem divididos. O problema, em relação ao chamado "pacto federativo" - que eu não considero pacto federativo, porque não houve pacto nenhum -, foi que nós criamos as contribuições com uma natureza tributária. Os impostos eram distribuíveis, integravam o Fundo de Participação dos estados e municípios, mas as contribuições, não. O governo, então, a partir da gestão de Fernando Henrique, com o Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda) e o problema fiscal que se acentuou com a queda da inflação, congelou os impostos e começou a aumentar as contribuições. A arrecadação global aumentou, mas a participação dos estados e municípios no bolo diminuiu, porque ficou restrita aos impostos. Isso se tornou um problema, decorrente de decisões operacionais tomadas pelo Poder Executivo da época - e se mantém até hoje.

Muita gente diz que um dos principais problemas da Constituição de 1988 é que ela foi elaborada para o regime parlamentarista, mas no final o plenário da Constituinte aprovou o regime presidencialista, deixando a Constituição no meio do caminho, meio híbrida. O senhor concorda com essa avaliação?

Hoje todo mundo repete isso como se fosse verdade, mas não é. A Comissão de Sistematização aprovou um texto parlamentarista. Quando ele foi para o plenário, houve uma emenda do senador Humberto Lucena, do PMDB, do Vivaldo Barbosa, do PDT, e de mais um grupo de presidencialistas. Eles ofereceram uma emenda completa, mudando todo o sistema. Então, essa história não tem nada a ver. Na Constituição, o capítulo das garantias e direitos individuais não tinha nada a ver com o parlamentarismo ou com o presidencialismo. O sistema tributário também não. O sistema econômico e a Previdência, idem. Nada disso foi alterado na Constituição. Com a aprovação da emenda do Humberto Lucena, a Constituição foi mudada integralmente neste capítulo. Essa emenda presidencialista incorporava inclusive a Medida Provisória, que é originária do parlamentarismo.

Se a Medida Provisória é um expediente típico do parlamentarismo, faz sentido adotá-la no sistema presidencialista?

Se isso fosse verdadeiro, o decreto-lei seria um dispositivo parlamentarista? Não. A diferença entre a Medida Provisória, que nós aprovamos em 1988, e o decreto-lei é que, se a Medida Provisória perdesse efeito, se não fosse votada, ela caía desde a data de sua edição. O decreto-lei, se votado ou não, transformava-se em lei. Em países presidencialistas há esse tipo de expediente. Depois, com o uso, houve distorções. Mas o fato é que a Medida Provisória se destina a casos de urgência e relevância, que ocorrem tanto no parlamentarismo como no presidencialismo. A única diferença é que, no presidencialismo, se não for aprovada uma Medida Provisória, o governo não cai. No sistema parlamentarista, se não for aprovado um ato de urgência, é o início da queda do governo. Recentemente, houve uma mudança para restringir o uso de Medida Provisória no Brasil. Foi proibida a reedição, porque antes era só prorrogar o seu prazo que ela continuava válida. Foi um remendo, mas tudo bem. Agora, uma coisa não tem nada a ver com a outra.

“Na Constituinte, eu entendi o que o pessoal chamava de sociedade civil. Eram grupos organizados, que queriam defender ou congelar seus interesses na apreensão do Estado”

Hoje, que pontos o senhor mudaria na Constituição?

No governo Fernando Henrique, quando houve aquela revisão constitucional, em 1995, eu fui o relator. Naquele momento, nós fizemos todos os textos para reformar a Constituição. Daquilo, foi aprovado só alguma coisinha. Naquela época, nós fomos examinar o assunto e o que ocorreu com a Constituição de 1988 foi o seguinte: era muito mais fácil aprovar um texto para a Constituição do que uma lei. Para aprovação de um texto constitucional, eram necessárias duas sessões unicamerais e maioria absoluta. No caso de uma lei, além das restrições de origem, porque algumas são de competência exclusiva do presidente da República e dos outros Poderes, é preciso aprová-la na Câmara por maioria absoluta ou simples, se for lei complementar. Depois, ela tem de ser aprovada no Senado. Se for aprovada no Senado, vai para a sanção do presidente da República. Se ele vetar, é preciso maioria de 2/3 para rejeição do veto. Era muito mais fácil aprovar um texto constitucional do que uma lei. Então, a tendência naquele momento, em que havia uma desconfiança em relação ao regime militar, foi enfiar todo tipo de coisa dentro da Constituição. O (jurista) Miguel Reale Júnior dizia que "a Constituinte servia da tanga à toga", ou seja, era suscetível aos interesses de todo mundo. Naquela época, eu entendi o que o pessoal chamava de sociedade civil. Eram grupos organizados, que queriam defender seus interesses ou congelá-los na apreensão do Estado.

Como essa inclusão de matérias que nada tinham a ver com a Constituição afetou o País?

O que aconteceu foi que você aumentou enormemente a constitucionalização de matérias. Com isso, aumentou substancialmente o poder do Supremo Tribunal Federal (STF). As ações diretas de inconstitucionalidade se multiplicaram. A partir de 1988, teve outro problema que contribuiu para isso. O Parlamento deixou de ter consistência, com posições claras, em decorrência da multiplicação de partidos políticos. A regra naquele momento era que uma lei, para ser aprovada, precisava de ambiguidade. Quanto mais ambíguo fosse o texto legal, mais fácil era sua chance de ser aprovado. Quanto mais claro, preciso, mais difícil era conseguir a maioria. Com isso, também se aumentou o poder do Judiciário de forma geral. Eu participei disso e também fiz regras ambíguas. A gente fazia uma regra perfeita e depois começava a introduzir adjetivos e advérbios de modo, para formar maioria. Se não, não conseguia aprovar nada.

“Eu sou favorável a fazer uma lipoaspiração na Constituição”

Qual a sua posição em relação a uma ampla reforma na Constituição?

No governo Fernando Henrique, eu sustentei que tínhamos de fazer uma lipoaspiração da Constituição. Eu sou pela lipoaspiração. Se você falar em reforma constitucional, vai acabar aumentando a Constituição, em vez de diminuí-la. Sou favorável a que a reforma constitucional seja para reduzir e jogar o que for possível para a lei ordinária. Veja a questão tributária. Está tudo dentro da Constituição. Eu reduziria o desenho do capítulo tributário, reduziria o desenho dos direitos econômicos. Nos direitos e garantias individuais, há vários assuntos que não tem nada a ver com isso, como o direito de associação. Por que está tudo dentro da Constituição? Porque quando as seis comissões consolidaram os textos das subcomissões e enviaram para o Bernardo Cabral, que era o relator, ele juntou tudo. Deu um mundaréu de artigos. Como a crítica foi muito forte, o que ele fez? Transformou vários artigos em parágrafos ou incisos. Aí o artigo 5º da Constituição ficou com um mundaréu de incisos. Hoje, temos 78 incisos.

O senhor acha que há clima hoje para fazer essa "lipoaspiração" na Constituição?

Uma coisa é a necessidade acadêmica ou lógica ou científica em relação à Constituição. Mas é evidente que é muito difícil conseguir uma maioria para fazer isso, porque as desconfianças são muito grandes. Se você for mexer no sistema tributário, os Estados enlouquecem. A tendência é achar que a União vai querer concentrar tudo em suas mãos. Uma das fórmulas para fazer isso, que eu sugeri na época, era suprimir esses artigos e transferí-los para as disposições transitórias, dizendo que eles serão substituídos em definitivo quando se votar a legislação correspondente e que eles ficarão em vigor até que se votem novas leis. Você assegura o status quo, mas possibilita que depois as mudanças aconteçam, por maioria absoluta ou simples, dependendo se for lei complementar ou não.

No capítulo dos direitos sociais, há uma percepção de que a Constituição foi muito ampla, sem os recursos necessários para viabilizá-los, e que isso estaria na raiz da atual crise fiscal do País. Como o senhor vê essa questão?

Quando nós discutimos isso em 1988, a maioria expressiva da Constituinte não tinha experiência do Executivo - e havia uma imensa expectativa nesse capítulo. Foram criadas enormes distorções sem fazer conta. Eu me lembro claramente que o Alberto Goldman, que era secretário da Administração de São Paulo no governo de Orestes Quércia, foi para Brasília para mostrar que aquilo que estava se fazendo era um absurdo e iria criar um enorme problema para o setor público. Então, no que diz respeito à criação de direitos, houve certo exagero. Aprovaram-se muitos direitos econômicos e sociais sem os recursos correspondentes. No governo Sarney, quando o Mailson da Nóbrega assumiu o ministério da Fazenda, veio um discurso fortíssimo do governo contra as regras da Previdência, aquele negócio da paridade entre os inativos e os servidores da ativa, mas a Constituinte não atendeu o reclamo. Isso acabou repercutindo no Poder Judiciário.

De que forma se deu essa recuperação no Judiciário?

O Poder Judiciário não faz diferença entre os direitos econômicos e sociais, que dependem de dinheiro público, e os direitos civis e políticos, como o habeas corpus e o direito de ir e vir, que não dependem de recursos. Veja o conflito na área saúde, com os remédios. Há uma falta de gestão absoluta. Imagine um juiz que recebe um pedido de um cidadão, com atestado médico, dizendo que ele vai morrer se não tomar aquele remédio. Você acha que o juiz vai indeferir? Não vai. Precisa racionalizar isso. A sociedade não suporta esse tipo de coisa.

O pessoal fala muito que a Constituição só tem direitos e não obrigações.

É evidente que no capítulo dos direitos sociais e econômicos não há obrigações, só direitos. Quem tem obrigação é o Estado. Temos que compatibilizar o exercício desses direitos com a possibilidade de o Estado atendê-los.

“Você não pode pretender que uma geração, que foi a minha em 1988, resolva definir o que deverá ser o Brasil nos próximos 200 anos”

A inclusão do direito à educação na Constituição é interpretada, muitas vezes, como o direito de todos, em todos os graus de ensino, à educação gratuita, independentemente da renda familiar. Como o senhor analisa isso?

Se você examinar a discussão toda sobre reforma educacional no Brasil, vai observar o seguinte: ao fim e ao cabo, depois de passar o véu dos adjetivos e advérbios de modo, você vai cair no aumento de salário do professor. Qual é a coisa mais ineficiente hoje no Brasil? São as universidades públicas. As universidades privadas vão muito bem, e estão crescendo. As públicas estão quebrando, porque virou tudo um jogo de salário. Agora, isso não é matéria constitucional, mas de lei ordinária. O modelo "A" ou "B" ou "C" é bom quando funciona. Quando não funciona, a discussão é quase ideológica. Tem análises econômicas sobre a questão do direito gratuito à educação. Hoje, se você verificar, as universidades públicas são dominadas pela classe média. Muitas delas não têm curso noturno. Isso impede quem precisa trabalhar durante o dia de cursar a universidade. Hoje, quem pode ficar de manhã ou à tarde numa escola? Quem tem recursos, do pai e da mãe, da família. Agora, no curso médio, na escola pública, a maioria não tem recursos, enquanto nas escolas particulares a maioria vem de famílias com recursos. Na universidade, isso se inverte.

Fala-se que, com as cotas, isso está mudando.

As cotas vão ajudar. Agora, como a cota não é econômica, mas racial, preto, branco, tem uma questão aí que precisa ser melhor analisada. Há uma coincidência do preto com o problema econômico, mas muitos brancos também estão nessa situação e não se beneficiam das cotas.

Na época da Constituinte, o ex-presidente José Sarney disse num pronunciamento na TV que o Brasil se tornaria ingovernável.

O Sarney tinha razão. Eu reconheço. Nós estávamos numa euforia de direitos, porque a gente vinha de um regime fechado. Um processo Constituinte, democrático, é complicado, porque, para aprovar uma lei, precisa fazer maioria, no caso maioria absoluta.

Hoje, o PT, que nem votou a Constituição e só a assinou depois, e outros partidos e organizações de esquerda são contra qualquer mexida na Constituição. Dizem que a Constituição é "imexível", que querem tirar direitos dos trabalhadores. De que forma o senhor vê esse movimento contra as reformas na Constituição?

Eles estão repetindo o que aconteceu na revisão constitucional de 1993, que fora prevista na Constituição. Toda a esquerda era contrária. Eles eram contra a Constituição de 1988, mas em 1993 passaram a ser os grandes defensores da Constituição. Agora, está acontecendo a mesma coisa. A Constituição americana só define o Estado americano e acabou. O resto são emendas constitucionais que vieram depois e as decisões da Suprema Corte americana, que compõem o modelo constitucional americano. No Brasil, a gente encheu a Constituição de coisas que faziam sentido naquele momento. Hoje, não fazem mais sentido. Como a Constitutição é muito ampla, as reformas têm de ser feitas. Na Constituinte, quando fomos votar o capítulo da Ordem Econômica, com aquelas estatizações, aquela coisa toda, havia um problema sério. O PMDB não podia discutir nenhum ponto da Ordem Econômica, porque reunia comunista e liberal da direita. Então, o que a gente fez? A gente reproduziu o modelo getulista de 1950. Isso foi alterado em 1995, com as reformas econômicas, quando eu era ministro da Justiça, no governo Fernando Henrique. Agora, o processo Constituinte não terminou. Você não pode pretender que uma geração, que foi a minha em 1988, resolva definir o que deverá ser o Brasil nos próximos 200 anos. Não é possível. Muda tudo, muda o quadro. Tanto não tínhamos clareza e muita segurança do que estávamos votando em 1988 que nós previmos a revisão constitucional, que não deu certo, cinco anos depois. Quem gosta de Constituição eterna são os professores de Direito, porque eles escrevem um livro e depois não precisam revisá-lo, e as editoras, que não terão o que fazer com os livros publicados se a Constituição for alterada. Por que se revisa muito a Constituição? Porque tem muita coisa lá dentro. Se você tivesse uma Constituição como a dos Estados Unidos, que só define os poderes e a relação com os estados federados, que lá é diferente, isso não aconteceria.

“O País foi partilhado entre as corporações. Precisa ter uma força política grande para começar a se livrar das corporações”

Na Constituição, predominou o espírito da descentralização dos recursos públicos. Mas, hoje, a política do "pires na mão" em Brasília, que exisitia na época dos militares, voltou com toda a força. O pacto federativo virou novamente uma bandeira, como na época da Constituinte. Qual é a sua visão sobre a questão do pacto federativo?

Primeiro, temos de saber do que se trata. Eu ainda não vi ninguém dizendo qual é o pacto federativo que se quer. O pacto federativo que, ao fim, está posto é aumento de receita para os Estados e municípios. Quando houve transferência de atribuições para os municípios, houve a transferência de recursos. Só que os recursos foram congelados e as despesas foram aumentando. E, quando se aumentou a carga tributária, aumentou-se naquilo que os Estados não recebiam. Então, a fatia da União cresceu. Houve um desequilíbrio. Agora, quando fala de pacto federativo, não é discutir o modelo A, B ou C. Tem de fazer um pacto que funcione. O modelo atual deixou de funcionar num determinado momento, porque mudaram as circunstâncias. Precisa ter a lucidez de saber que aquilo não é uma coisa definitiva. Mas nós temos mania de achar que tem o bem e mal.

O que deve ser feito para recuperar o espírito da Constituinte na questão da descentralização?

Tem que aumentar a receita dos Estados. A competência dos Estados hoje está espremida entre as dos municípios e a da União. Os Estados não têm muita coisa para fazer. O que faz uma Assembleia Legislativa? O que vota? Nada. Aí, começa a haver uma distorção, A Assembleia Legislativa começa a votar obrigações para o Estado cumprir e elas decorrem da necessidade que o sujeito tem de se reeleger. O discurso de um candidato a deputado estadual parece o de um candidato a governador. Os governadores querem que a União determine tudo para se ver livre da pressão das assembléias. Ou não é assim? No governo do PT, houve problemas graves. Nos governos do Lula e da Dilma, os benefícios fiscais foram concedidos em cima dos impostos partilháveis, principalmente o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Quando você dá um benefício fiscal para a indústria automobilística, isso atende a quem? São Paulo, Minas. Mas reduz a receita do fundo de participação e atinge o Acre, que não tem nada a ver com o assunto. Em parte, a União fazia benefício fiscal com dinheiro alheio. Também começaram a criar pisos nacionais para diferentes categorias, seguindo o modelo do salário mínimo. Criaram o piso nacional para professor público. O professor público de São Paulo tem o mesmo piso profissional que o professor que mora em Santa Rosa do Purus, no Acre. Não faz sentido. Começaram a criar obrigações nacionais sem dar recursos aos entes da Federação para isso. Ao mesmo tempo, tiraram recursos dos Estados, porque todos os benefícios fiscais foram em cima de impostos partilhados. O que motivou os incentivos fiscais? A tentativa de assegurar o emprego na indústria automobilística, atender a uma reivindicação dos sindicatos. O governo se submetia às pressões dos sindicatos. A CUT hoje é formada principalmente por sindicatos de servidores públicos. O País foi partilhado entre as corporações. Precisa ter uma força política grande para começar a se livrar das corporações. O aparelhamento do Estado por parte do PT é algo que tem de ser melhor avaliado. Todo o pessoal do partido que entrou para o Estado contribuía para o partido, com o dízimo. Sair do governo não é só um problema individual. É um problema de receita para o partido.

“Tem que tentar de novo a aprovação da cláusula de barreira. Tenho a impressão que o Supremo já percebeu a bobagem que fez quando votou contra”

Uma última questão: em relação à reforma política, qual é a sua posição?

A primeira pergunta que deve ser feita é a seguinte: a reforma política é necessária ou não? Todo mundo diz que sim. Então, se a reforma política é necessária, nós não podemos fazer a pergunta se ela é viável ou não. Se perguntar se é viável, a tendência é não fazer. Se ela é necessária, vamos fazer. No plano político, toma-se a decisão de fazer. No plano estratégico, define-se o que se vai fazer. Depois, no plano operacional, define-se como fazer. E, no plano tático, fazem-se os recuos que forem necessários para chegar lá. Acho difícil fazer uma reforma completa. Nós podemos começar pelo problema da coligação das eleições proporcionais. Tem que tentar novamente a aprovação cláusula de barreira, cuja derrubada pelo Supremo, no meu ponto de vista, foi um erro absurdo, sob o argumento de que os partidos pequenos seriam afetados. Era uma visão completamente romântica de uma realidade que não dizia respeito a isso. Na eleição de vereadores, eles criaram um troço inteligente, ao estabelecer que só será eleito vereador, mesmo pelo quociente partidário, quem fizer um mínimo de 10% do quociente eleitoral. Se o quociente eleitoral for de 100 mil, o vereador precisará de pelo menos 10 mil votos. Só então, ele poderá entrar na lista do partido. Se não, vai ser suplente. É uma forma de barreira. Se não, o sujeito acaba se elegendo com 230 votos, vinte votos, sei lá quantos. Precisa ter um mínimo. Esse modelo também pode ser estendido para deputados federais e estaduais, o que será uma maravilha, já criará uma restrição. Agora, eu voltaria a analisar a clásula de barreira na Câmara. Tenho a impressão de que o Supremo já percebeu a bobagem que fez naquela época, quando votou contra. Outra mudança importante, que é mais difícil, mas pode ser feita dentro do contexto de benefício para o País, seria a proibição das coligações proporcionais, que é uma forma de os partidos pequenos sobreviverem. Fazem a coligação, se elegem e depois abrem mão de tudo.

Na questão do financiamento de campanha, o senhor é favorável à volta das doações de empresas?

Quem proibiu a contribuição de empresas para a campanha eleitoral foram os militares lá atrás. Em 1986, não tinha contribuição de empresa. Aí, como estava um bagunça, o Congresso resolveu autorizar e estabelecer limites, formas de fiscalização, que foram fracos, mas foram estabelecidos. O modelo de restrição às doações empresariais, anunciado como uma grande novidade, não é nada disso. Esse modelo, apoiado pelo PT como uma grande conquista democrática, é do tempo dos militares. Por que os militares fizeram isso naquela época? Porque o apoio do empresariado ao regime estava se esgotando e os militares não queriam que eles dessem dinheiro para a oposição. Quem se beneficia com isso? Quem tem cash. E quem tem cash hoje no Brasil? As igrejas. Quem mais tem cash? As empresas de ônibus, de transporte coletivo. Isso vai empurrar esse pessoal para a ilegalidade. Para fiscalizar isso, tem de rastrear a ciculação do dinheiro. Toda vez que se fala em financiamento de campanha, a maior parte da conversa é do lado da receita, quando o problema é do lado da despesa. Você teve limite de gastos, mas não teve nenhuma alteração sobre o universo das despesas. Se for necessário, o sujeito acaba achando um jeito de burlar a legislação. Vamos admitir a seguinte hipótese: quinze ou vinte dias antes da eleição, um candidato a deputado recebe a informação do seu gerente do processo eleitoral de que o dinheiro acabou. Não tem dinheiro para gasolina do carro, para santinho, nada. Você acha que ele vai parar campanha? Ele vai dizer para tocar para a frente que depois ele dá um jeito. Não adianta proibir alguma coisa em lei. Se essa coisa se tornar necessária, o sujeito vai acabar encontrando um jeito de fazê-la.

Como evitar que esse tipo de coisa aconteça?

Eu sou favorável a a introduzir o sistema distrital, para reduzir o universo da campanha. No nosso modelo, você disputa com o candidato do próprio partido, porque é ele que pode tirá-lo da lista de eleitos, considerando o quociente eleitoral e o partidário. Se o partido elege dez candidatos pelo quociente partidário, quem são os dez? Os dez mais votados. Logo, eu tenho que brigar para estar entre esses dez. Quem pode me tirar dos dez? O candidato do meu próprio partido, não o candidato do outro partido. Você pode fazer a a campanha distrital e criar um mecanismo para que o voto distrital não seja necessariamente majoritário, estabelecer limites. Os partidos poderiam ter candidatos em todos os distritos de um estado. Metade das vagas seria preenchida pelos distritos. A outra metade, pelo sistema majoritário. Você poderia criar um número de distritos igual à metade das vagas. Por exemplo: São paulo tem 70 vagas na Câmara Federal. Então, 35 viriam dos distritos e 35 das listas dos partidos. Os candidatos dos partidos que não se elegerem pelos distritos poderão se eleger pela lista eleitoral. É um ajuste do modelo alemão. Há saídas para o problema. A questão é que o sistema eleitoral não é assunto para a academia. Os acadêmicos fazem discursos etc e tal, mas todos os sistemas votados pelo País não foram feitos por acadêmicos, mas por políticos.

O ex-ministro Nelson Jobim 

O jurista Nelson Jobim, de 70 anos, conhece como poucos o coração do poder. Ex-ministro da Defesa nos governos Lula e Dilma, ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF), ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique, ex-relator da fracassada reforma constitucional de 1993 e ex-Constituinte pelo PMDB, Jobim circula com desembaraço entre "gregos" e "troianos".

No final de julho, ele deu uma guinada em sua trajetória profissional e começou a trabalhar no sistema financeiro. Tornou-se sócio e membro do conselho de administração do BTG Pactual, fundado pelo banqueiro André Esteves, investigado na Operação Lava Jato, com a missão de cuidar das áreas de relações institucionais e de governança do banco. Nesta entrevista, realizada no começo de setembro em seu apartamento nos Jardins, em São Paulo, Jobim conta histórias dos bastidores da Constituinte, fala sobre as mudanças que devem ser feitas na Constituição de 1988 para destravar o País e comenta a reforma política que está em discussão no Congresso Nacional. A entrevista foi feita para a série "A reconstrução do Brasil", lançada pelo Estado para discutir os grandes desafios do País após o impeachment. "A esquerda, que era contra a Constituição de 1988, agora é a sua maior defensora", afirma Jobim.

Estado - Hoje, quase 28 anos depois de sua promulgação, qual é a sua visão sobre a Constituição de 1988?

Nelson Jobim - A Constituição avançou enormemente no que diz respeito aos direitos e garantias individuais. Foi importante no que diz respeito à atribuição de mais competência aos estados e municípios. Os tributos ficaram bem divididos. O problema, em relação ao chamado "pacto federativo" - que eu não considero pacto federativo, porque não houve pacto nenhum -, foi que nós criamos as contribuições com uma natureza tributária. Os impostos eram distribuíveis, integravam o Fundo de Participação dos estados e municípios, mas as contribuições, não. O governo, então, a partir da gestão de Fernando Henrique, com o Pedro Malan (ex-ministro da Fazenda) e o problema fiscal que se acentuou com a queda da inflação, congelou os impostos e começou a aumentar as contribuições. A arrecadação global aumentou, mas a participação dos estados e municípios no bolo diminuiu, porque ficou restrita aos impostos. Isso se tornou um problema, decorrente de decisões operacionais tomadas pelo Poder Executivo da época - e se mantém até hoje.

Muita gente diz que um dos principais problemas da Constituição de 1988 é que ela foi elaborada para o regime parlamentarista, mas no final o plenário da Constituinte aprovou o regime presidencialista, deixando a Constituição no meio do caminho, meio híbrida. O senhor concorda com essa avaliação?

Hoje todo mundo repete isso como se fosse verdade, mas não é. A Comissão de Sistematização aprovou um texto parlamentarista. Quando ele foi para o plenário, houve uma emenda do senador Humberto Lucena, do PMDB, do Vivaldo Barbosa, do PDT, e de mais um grupo de presidencialistas. Eles ofereceram uma emenda completa, mudando todo o sistema. Então, essa história não tem nada a ver. Na Constituição, o capítulo das garantias e direitos individuais não tinha nada a ver com o parlamentarismo ou com o presidencialismo. O sistema tributário também não. O sistema econômico e a Previdência, idem. Nada disso foi alterado na Constituição. Com a aprovação da emenda do Humberto Lucena, a Constituição foi mudada integralmente neste capítulo. Essa emenda presidencialista incorporava inclusive a Medida Provisória, que é originária do parlamentarismo.

Se a Medida Provisória é um expediente típico do parlamentarismo, faz sentido adotá-la no sistema presidencialista?

Se isso fosse verdadeiro, o decreto-lei seria um dispositivo parlamentarista? Não. A diferença entre a Medida Provisória, que nós aprovamos em 1988, e o decreto-lei é que, se a Medida Provisória perdesse efeito, se não fosse votada, ela caía desde a data de sua edição. O decreto-lei, se votado ou não, transformava-se em lei. Em países presidencialistas há esse tipo de expediente. Depois, com o uso, houve distorções. Mas o fato é que a Medida Provisória se destina a casos de urgência e relevância, que ocorrem tanto no parlamentarismo como no presidencialismo. A única diferença é que, no presidencialismo, se não for aprovada uma Medida Provisória, o governo não cai. No sistema parlamentarista, se não for aprovado um ato de urgência, é o início da queda do governo. Recentemente, houve uma mudança para restringir o uso de Medida Provisória no Brasil. Foi proibida a reedição, porque antes era só prorrogar o seu prazo que ela continuava válida. Foi um remendo, mas tudo bem. Agora, uma coisa não tem nada a ver com a outra.

“Na Constituinte, eu entendi o que o pessoal chamava de sociedade civil. Eram grupos organizados, que queriam defender ou congelar seus interesses na apreensão do Estado”

Hoje, que pontos o senhor mudaria na Constituição?

No governo Fernando Henrique, quando houve aquela revisão constitucional, em 1995, eu fui o relator. Naquele momento, nós fizemos todos os textos para reformar a Constituição. Daquilo, foi aprovado só alguma coisinha. Naquela época, nós fomos examinar o assunto e o que ocorreu com a Constituição de 1988 foi o seguinte: era muito mais fácil aprovar um texto para a Constituição do que uma lei. Para aprovação de um texto constitucional, eram necessárias duas sessões unicamerais e maioria absoluta. No caso de uma lei, além das restrições de origem, porque algumas são de competência exclusiva do presidente da República e dos outros Poderes, é preciso aprová-la na Câmara por maioria absoluta ou simples, se for lei complementar. Depois, ela tem de ser aprovada no Senado. Se for aprovada no Senado, vai para a sanção do presidente da República. Se ele vetar, é preciso maioria de 2/3 para rejeição do veto. Era muito mais fácil aprovar um texto constitucional do que uma lei. Então, a tendência naquele momento, em que havia uma desconfiança em relação ao regime militar, foi enfiar todo tipo de coisa dentro da Constituição. O (jurista) Miguel Reale Júnior dizia que "a Constituinte servia da tanga à toga", ou seja, era suscetível aos interesses de todo mundo. Naquela época, eu entendi o que o pessoal chamava de sociedade civil. Eram grupos organizados, que queriam defender seus interesses ou congelá-los na apreensão do Estado.

Como essa inclusão de matérias que nada tinham a ver com a Constituição afetou o País?

O que aconteceu foi que você aumentou enormemente a constitucionalização de matérias. Com isso, aumentou substancialmente o poder do Supremo Tribunal Federal (STF). As ações diretas de inconstitucionalidade se multiplicaram. A partir de 1988, teve outro problema que contribuiu para isso. O Parlamento deixou de ter consistência, com posições claras, em decorrência da multiplicação de partidos políticos. A regra naquele momento era que uma lei, para ser aprovada, precisava de ambiguidade. Quanto mais ambíguo fosse o texto legal, mais fácil era sua chance de ser aprovado. Quanto mais claro, preciso, mais difícil era conseguir a maioria. Com isso, também se aumentou o poder do Judiciário de forma geral. Eu participei disso e também fiz regras ambíguas. A gente fazia uma regra perfeita e depois começava a introduzir adjetivos e advérbios de modo, para formar maioria. Se não, não conseguia aprovar nada.

“Eu sou favorável a fazer uma lipoaspiração na Constituição”

Qual a sua posição em relação a uma ampla reforma na Constituição?

No governo Fernando Henrique, eu sustentei que tínhamos de fazer uma lipoaspiração da Constituição. Eu sou pela lipoaspiração. Se você falar em reforma constitucional, vai acabar aumentando a Constituição, em vez de diminuí-la. Sou favorável a que a reforma constitucional seja para reduzir e jogar o que for possível para a lei ordinária. Veja a questão tributária. Está tudo dentro da Constituição. Eu reduziria o desenho do capítulo tributário, reduziria o desenho dos direitos econômicos. Nos direitos e garantias individuais, há vários assuntos que não tem nada a ver com isso, como o direito de associação. Por que está tudo dentro da Constituição? Porque quando as seis comissões consolidaram os textos das subcomissões e enviaram para o Bernardo Cabral, que era o relator, ele juntou tudo. Deu um mundaréu de artigos. Como a crítica foi muito forte, o que ele fez? Transformou vários artigos em parágrafos ou incisos. Aí o artigo 5º da Constituição ficou com um mundaréu de incisos. Hoje, temos 78 incisos.

O senhor acha que há clima hoje para fazer essa "lipoaspiração" na Constituição?

Uma coisa é a necessidade acadêmica ou lógica ou científica em relação à Constituição. Mas é evidente que é muito difícil conseguir uma maioria para fazer isso, porque as desconfianças são muito grandes. Se você for mexer no sistema tributário, os Estados enlouquecem. A tendência é achar que a União vai querer concentrar tudo em suas mãos. Uma das fórmulas para fazer isso, que eu sugeri na época, era suprimir esses artigos e transferí-los para as disposições transitórias, dizendo que eles serão substituídos em definitivo quando se votar a legislação correspondente e que eles ficarão em vigor até que se votem novas leis. Você assegura o status quo, mas possibilita que depois as mudanças aconteçam, por maioria absoluta ou simples, dependendo se for lei complementar ou não.

No capítulo dos direitos sociais, há uma percepção de que a Constituição foi muito ampla, sem os recursos necessários para viabilizá-los, e que isso estaria na raiz da atual crise fiscal do País. Como o senhor vê essa questão?

Quando nós discutimos isso em 1988, a maioria expressiva da Constituinte não tinha experiência do Executivo - e havia uma imensa expectativa nesse capítulo. Foram criadas enormes distorções sem fazer conta. Eu me lembro claramente que o Alberto Goldman, que era secretário da Administração de São Paulo no governo de Orestes Quércia, foi para Brasília para mostrar que aquilo que estava se fazendo era um absurdo e iria criar um enorme problema para o setor público. Então, no que diz respeito à criação de direitos, houve certo exagero. Aprovaram-se muitos direitos econômicos e sociais sem os recursos correspondentes. No governo Sarney, quando o Mailson da Nóbrega assumiu o ministério da Fazenda, veio um discurso fortíssimo do governo contra as regras da Previdência, aquele negócio da paridade entre os inativos e os servidores da ativa, mas a Constituinte não atendeu o reclamo. Isso acabou repercutindo no Poder Judiciário.

De que forma se deu essa recuperação no Judiciário?

O Poder Judiciário não faz diferença entre os direitos econômicos e sociais, que dependem de dinheiro público, e os direitos civis e políticos, como o habeas corpus e o direito de ir e vir, que não dependem de recursos. Veja o conflito na área saúde, com os remédios. Há uma falta de gestão absoluta. Imagine um juiz que recebe um pedido de um cidadão, com atestado médico, dizendo que ele vai morrer se não tomar aquele remédio. Você acha que o juiz vai indeferir? Não vai. Precisa racionalizar isso. A sociedade não suporta esse tipo de coisa.

O pessoal fala muito que a Constituição só tem direitos e não obrigações.

É evidente que no capítulo dos direitos sociais e econômicos não há obrigações, só direitos. Quem tem obrigação é o Estado. Temos que compatibilizar o exercício desses direitos com a possibilidade de o Estado atendê-los.

“Você não pode pretender que uma geração, que foi a minha em 1988, resolva definir o que deverá ser o Brasil nos próximos 200 anos”

A inclusão do direito à educação na Constituição é interpretada, muitas vezes, como o direito de todos, em todos os graus de ensino, à educação gratuita, independentemente da renda familiar. Como o senhor analisa isso?

Se você examinar a discussão toda sobre reforma educacional no Brasil, vai observar o seguinte: ao fim e ao cabo, depois de passar o véu dos adjetivos e advérbios de modo, você vai cair no aumento de salário do professor. Qual é a coisa mais ineficiente hoje no Brasil? São as universidades públicas. As universidades privadas vão muito bem, e estão crescendo. As públicas estão quebrando, porque virou tudo um jogo de salário. Agora, isso não é matéria constitucional, mas de lei ordinária. O modelo "A" ou "B" ou "C" é bom quando funciona. Quando não funciona, a discussão é quase ideológica. Tem análises econômicas sobre a questão do direito gratuito à educação. Hoje, se você verificar, as universidades públicas são dominadas pela classe média. Muitas delas não têm curso noturno. Isso impede quem precisa trabalhar durante o dia de cursar a universidade. Hoje, quem pode ficar de manhã ou à tarde numa escola? Quem tem recursos, do pai e da mãe, da família. Agora, no curso médio, na escola pública, a maioria não tem recursos, enquanto nas escolas particulares a maioria vem de famílias com recursos. Na universidade, isso se inverte.

Fala-se que, com as cotas, isso está mudando.

As cotas vão ajudar. Agora, como a cota não é econômica, mas racial, preto, branco, tem uma questão aí que precisa ser melhor analisada. Há uma coincidência do preto com o problema econômico, mas muitos brancos também estão nessa situação e não se beneficiam das cotas.

Na época da Constituinte, o ex-presidente José Sarney disse num pronunciamento na TV que o Brasil se tornaria ingovernável.

O Sarney tinha razão. Eu reconheço. Nós estávamos numa euforia de direitos, porque a gente vinha de um regime fechado. Um processo Constituinte, democrático, é complicado, porque, para aprovar uma lei, precisa fazer maioria, no caso maioria absoluta.

Hoje, o PT, que nem votou a Constituição e só a assinou depois, e outros partidos e organizações de esquerda são contra qualquer mexida na Constituição. Dizem que a Constituição é "imexível", que querem tirar direitos dos trabalhadores. De que forma o senhor vê esse movimento contra as reformas na Constituição?

Eles estão repetindo o que aconteceu na revisão constitucional de 1993, que fora prevista na Constituição. Toda a esquerda era contrária. Eles eram contra a Constituição de 1988, mas em 1993 passaram a ser os grandes defensores da Constituição. Agora, está acontecendo a mesma coisa. A Constituição americana só define o Estado americano e acabou. O resto são emendas constitucionais que vieram depois e as decisões da Suprema Corte americana, que compõem o modelo constitucional americano. No Brasil, a gente encheu a Constituição de coisas que faziam sentido naquele momento. Hoje, não fazem mais sentido. Como a Constitutição é muito ampla, as reformas têm de ser feitas. Na Constituinte, quando fomos votar o capítulo da Ordem Econômica, com aquelas estatizações, aquela coisa toda, havia um problema sério. O PMDB não podia discutir nenhum ponto da Ordem Econômica, porque reunia comunista e liberal da direita. Então, o que a gente fez? A gente reproduziu o modelo getulista de 1950. Isso foi alterado em 1995, com as reformas econômicas, quando eu era ministro da Justiça, no governo Fernando Henrique. Agora, o processo Constituinte não terminou. Você não pode pretender que uma geração, que foi a minha em 1988, resolva definir o que deverá ser o Brasil nos próximos 200 anos. Não é possível. Muda tudo, muda o quadro. Tanto não tínhamos clareza e muita segurança do que estávamos votando em 1988 que nós previmos a revisão constitucional, que não deu certo, cinco anos depois. Quem gosta de Constituição eterna são os professores de Direito, porque eles escrevem um livro e depois não precisam revisá-lo, e as editoras, que não terão o que fazer com os livros publicados se a Constituição for alterada. Por que se revisa muito a Constituição? Porque tem muita coisa lá dentro. Se você tivesse uma Constituição como a dos Estados Unidos, que só define os poderes e a relação com os estados federados, que lá é diferente, isso não aconteceria.

“O País foi partilhado entre as corporações. Precisa ter uma força política grande para começar a se livrar das corporações”

Na Constituição, predominou o espírito da descentralização dos recursos públicos. Mas, hoje, a política do "pires na mão" em Brasília, que exisitia na época dos militares, voltou com toda a força. O pacto federativo virou novamente uma bandeira, como na época da Constituinte. Qual é a sua visão sobre a questão do pacto federativo?

Primeiro, temos de saber do que se trata. Eu ainda não vi ninguém dizendo qual é o pacto federativo que se quer. O pacto federativo que, ao fim, está posto é aumento de receita para os Estados e municípios. Quando houve transferência de atribuições para os municípios, houve a transferência de recursos. Só que os recursos foram congelados e as despesas foram aumentando. E, quando se aumentou a carga tributária, aumentou-se naquilo que os Estados não recebiam. Então, a fatia da União cresceu. Houve um desequilíbrio. Agora, quando fala de pacto federativo, não é discutir o modelo A, B ou C. Tem de fazer um pacto que funcione. O modelo atual deixou de funcionar num determinado momento, porque mudaram as circunstâncias. Precisa ter a lucidez de saber que aquilo não é uma coisa definitiva. Mas nós temos mania de achar que tem o bem e mal.

O que deve ser feito para recuperar o espírito da Constituinte na questão da descentralização?

Tem que aumentar a receita dos Estados. A competência dos Estados hoje está espremida entre as dos municípios e a da União. Os Estados não têm muita coisa para fazer. O que faz uma Assembleia Legislativa? O que vota? Nada. Aí, começa a haver uma distorção, A Assembleia Legislativa começa a votar obrigações para o Estado cumprir e elas decorrem da necessidade que o sujeito tem de se reeleger. O discurso de um candidato a deputado estadual parece o de um candidato a governador. Os governadores querem que a União determine tudo para se ver livre da pressão das assembléias. Ou não é assim? No governo do PT, houve problemas graves. Nos governos do Lula e da Dilma, os benefícios fiscais foram concedidos em cima dos impostos partilháveis, principalmente o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). Quando você dá um benefício fiscal para a indústria automobilística, isso atende a quem? São Paulo, Minas. Mas reduz a receita do fundo de participação e atinge o Acre, que não tem nada a ver com o assunto. Em parte, a União fazia benefício fiscal com dinheiro alheio. Também começaram a criar pisos nacionais para diferentes categorias, seguindo o modelo do salário mínimo. Criaram o piso nacional para professor público. O professor público de São Paulo tem o mesmo piso profissional que o professor que mora em Santa Rosa do Purus, no Acre. Não faz sentido. Começaram a criar obrigações nacionais sem dar recursos aos entes da Federação para isso. Ao mesmo tempo, tiraram recursos dos Estados, porque todos os benefícios fiscais foram em cima de impostos partilhados. O que motivou os incentivos fiscais? A tentativa de assegurar o emprego na indústria automobilística, atender a uma reivindicação dos sindicatos. O governo se submetia às pressões dos sindicatos. A CUT hoje é formada principalmente por sindicatos de servidores públicos. O País foi partilhado entre as corporações. Precisa ter uma força política grande para começar a se livrar das corporações. O aparelhamento do Estado por parte do PT é algo que tem de ser melhor avaliado. Todo o pessoal do partido que entrou para o Estado contribuía para o partido, com o dízimo. Sair do governo não é só um problema individual. É um problema de receita para o partido.

“Tem que tentar de novo a aprovação da cláusula de barreira. Tenho a impressão que o Supremo já percebeu a bobagem que fez quando votou contra”

Uma última questão: em relação à reforma política, qual é a sua posição?

A primeira pergunta que deve ser feita é a seguinte: a reforma política é necessária ou não? Todo mundo diz que sim. Então, se a reforma política é necessária, nós não podemos fazer a pergunta se ela é viável ou não. Se perguntar se é viável, a tendência é não fazer. Se ela é necessária, vamos fazer. No plano político, toma-se a decisão de fazer. No plano estratégico, define-se o que se vai fazer. Depois, no plano operacional, define-se como fazer. E, no plano tático, fazem-se os recuos que forem necessários para chegar lá. Acho difícil fazer uma reforma completa. Nós podemos começar pelo problema da coligação das eleições proporcionais. Tem que tentar novamente a aprovação cláusula de barreira, cuja derrubada pelo Supremo, no meu ponto de vista, foi um erro absurdo, sob o argumento de que os partidos pequenos seriam afetados. Era uma visão completamente romântica de uma realidade que não dizia respeito a isso. Na eleição de vereadores, eles criaram um troço inteligente, ao estabelecer que só será eleito vereador, mesmo pelo quociente partidário, quem fizer um mínimo de 10% do quociente eleitoral. Se o quociente eleitoral for de 100 mil, o vereador precisará de pelo menos 10 mil votos. Só então, ele poderá entrar na lista do partido. Se não, vai ser suplente. É uma forma de barreira. Se não, o sujeito acaba se elegendo com 230 votos, vinte votos, sei lá quantos. Precisa ter um mínimo. Esse modelo também pode ser estendido para deputados federais e estaduais, o que será uma maravilha, já criará uma restrição. Agora, eu voltaria a analisar a clásula de barreira na Câmara. Tenho a impressão de que o Supremo já percebeu a bobagem que fez naquela época, quando votou contra. Outra mudança importante, que é mais difícil, mas pode ser feita dentro do contexto de benefício para o País, seria a proibição das coligações proporcionais, que é uma forma de os partidos pequenos sobreviverem. Fazem a coligação, se elegem e depois abrem mão de tudo.

Na questão do financiamento de campanha, o senhor é favorável à volta das doações de empresas?

Quem proibiu a contribuição de empresas para a campanha eleitoral foram os militares lá atrás. Em 1986, não tinha contribuição de empresa. Aí, como estava um bagunça, o Congresso resolveu autorizar e estabelecer limites, formas de fiscalização, que foram fracos, mas foram estabelecidos. O modelo de restrição às doações empresariais, anunciado como uma grande novidade, não é nada disso. Esse modelo, apoiado pelo PT como uma grande conquista democrática, é do tempo dos militares. Por que os militares fizeram isso naquela época? Porque o apoio do empresariado ao regime estava se esgotando e os militares não queriam que eles dessem dinheiro para a oposição. Quem se beneficia com isso? Quem tem cash. E quem tem cash hoje no Brasil? As igrejas. Quem mais tem cash? As empresas de ônibus, de transporte coletivo. Isso vai empurrar esse pessoal para a ilegalidade. Para fiscalizar isso, tem de rastrear a ciculação do dinheiro. Toda vez que se fala em financiamento de campanha, a maior parte da conversa é do lado da receita, quando o problema é do lado da despesa. Você teve limite de gastos, mas não teve nenhuma alteração sobre o universo das despesas. Se for necessário, o sujeito acaba achando um jeito de burlar a legislação. Vamos admitir a seguinte hipótese: quinze ou vinte dias antes da eleição, um candidato a deputado recebe a informação do seu gerente do processo eleitoral de que o dinheiro acabou. Não tem dinheiro para gasolina do carro, para santinho, nada. Você acha que ele vai parar campanha? Ele vai dizer para tocar para a frente que depois ele dá um jeito. Não adianta proibir alguma coisa em lei. Se essa coisa se tornar necessária, o sujeito vai acabar encontrando um jeito de fazê-la.

Como evitar que esse tipo de coisa aconteça?

Eu sou favorável a a introduzir o sistema distrital, para reduzir o universo da campanha. No nosso modelo, você disputa com o candidato do próprio partido, porque é ele que pode tirá-lo da lista de eleitos, considerando o quociente eleitoral e o partidário. Se o partido elege dez candidatos pelo quociente partidário, quem são os dez? Os dez mais votados. Logo, eu tenho que brigar para estar entre esses dez. Quem pode me tirar dos dez? O candidato do meu próprio partido, não o candidato do outro partido. Você pode fazer a a campanha distrital e criar um mecanismo para que o voto distrital não seja necessariamente majoritário, estabelecer limites. Os partidos poderiam ter candidatos em todos os distritos de um estado. Metade das vagas seria preenchida pelos distritos. A outra metade, pelo sistema majoritário. Você poderia criar um número de distritos igual à metade das vagas. Por exemplo: São paulo tem 70 vagas na Câmara Federal. Então, 35 viriam dos distritos e 35 das listas dos partidos. Os candidatos dos partidos que não se elegerem pelos distritos poderão se eleger pela lista eleitoral. É um ajuste do modelo alemão. Há saídas para o problema. A questão é que o sistema eleitoral não é assunto para a academia. Os acadêmicos fazem discursos etc e tal, mas todos os sistemas votados pelo País não foram feitos por acadêmicos, mas por políticos.

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