BRASÍLIA - Um grupo de advogados criminalistas lança na tarde desta quinta-feira (18) a Academia Brasileira de Letras do Cárcere, entidade criada sob argumento de incentivar a prática da escrita e da leitura entre os presos. A cadeira nº 1, que homenageia o escritor, jornalista e político Graciliano Ramos (1892-1953), será ocupada pelo traficante Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, considerado um dos principais líderes da organização criminosa Comando Vermelho (CV). Preso desde 1996, Márcio é autor de três livros – e está trabalhando num quarto volume.
A iniciativa é impulsionada pelo desembargador aposentado Siro Darlan, que foi punido em março de 2023 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na época, ele foi acusado de mandar soltar um cliente de seu filho, o advogado Renato Darlan. Ele concedeu habeas corpus para colocar em prisão domiciliar o ex-vereador e PM reformado Jonas Gonçalves da Silva, o “Jonas É Nóis”, acusado de chefiar uma milícia. No processo contra Siro no CNJ, o Ministério Público opinou pela pena de censura, mas a relatora e todos os demais conselheiros votaram pela aposentadoria. À época, Siro disse ter sido vítima de “perseguição implacável” no CNJ. Hoje, ele se descreve como advogado e “desembargador aposentado voluntariamente”.
A princípio sem uma sede física, a Academia de Letras do Cárcere tem vinte cadeiras, todas homenageando escritores que já foram presos em algum momento, como o irlandês Oscar Wilde (1854-1900); e Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740-1814). Por enquanto, segundo Siro Darlan, serão empossados cinco acadêmicos. Outros eventos serão feitos, até que as vinte cadeiras sejam ocupadas. Marcinho VP será o titular da cadeira nº 1, que homenageia o jornalista e escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953). O autor de Vidas Secas ficou preso de março de 1936 a janeiro de 1937, falsamente acusado de participação na Intentona Comunista de 1935.
A entidade será presidida por Silvana Santos da Silva, advogada e irmã de Marcinho VP – Siro Darlan aparece como vice-presidente no site da entidade. A advogada criminalista Flávia Fróes, conhecida por defender diversos réus ligados ao Comando Vermelho, será a primeira-secretária. Já a advogada criminalista e ex-deputada estadual do PSOL Janira Rocha será a presidente do Conselho de Indicação e seleção dos acadêmicos.
Como mostrou o Estadão em novembro, Janira Rocha foi a responsável por levar a mulher de um líder do Comando Vermelho do Amazonas para duas reuniões com dirigentes do Ministério da Justiça. A Polícia Civil amazonense apreendeu comprovantes de pagamentos da facção a ela.
Segundo Siro, a ideia “surgiu de um grupo de advogados criminalistas e da Associação Nacional de Familiares de Presos (Anfap), para estimular a ressocialização por meio da leitura. Nós e os especialistas entendemos que só através da educação a pessoa é capaz de dar a volta nessa vida errada do crime. E isso tem sido demonstrado ao longo da história por diversos escritores, que escreveram livros (enquanto estavam) presos”, diz Siro Darlan.
”São vinte cadeiras, todas com nomes de escritores presos. Criamos uma comissão de advogados que faz a seleção. Lê os livros que são apresentados pelos presos. Temos acadêmicos do Acre, de Brasília, de São Paulo, do Recife, e alguns do Rio de Janeiro. Vamos dar posse a cinco, agora nessa primeira etapa. E, como a academia é itinerante, não tem sede, vamos fazer outras sessões nas universidades. A gente quer colocar este debate, da ressocialização, nas universidades”, diz ele.
O desembargador aposentado disse que são “preconceituosas” as críticas a Marcinho VP. “Essa decisão (de homenageá-lo) não depende de mim, e sim de uma comissão de advogados e juristas que fizeram essa análise. Depois, essa sua pergunta é altamente preconceituosa. O fato de uma pessoa estar no crime, se ela preenche os requisitos, isso não a impede de ocupar qualquer cadeira. Não é porque a pessoa recebeu esse carimbo do Estado e da imprensa, que ele vai ficar excluído do processo de ressocialização. Ou você prefere que ele seja bandido o resto da vida?”, diz o advogado.
“É como se você não aceitasse que uma pessoa tivesse a capacidade de se recuperar de um crime ou de uma opção de vida errada que fez. (...) A realidade é que as pessoas, através da literatura, têm se recuperado. E tudo que a gente quer é a paz social. A paz social tem que ser buscada através da educação, da literatura, da escrita. Tanto que o legislador autorizou a remissão de pena para aqueles que leem. Agora, a gente está reconhecendo o valor daqueles que escrevem”, disse ele ao Estadão.
Nascido na favela do Vigário Geral, na zona Norte do Rio de Janeiro, Márcio dos Santos Nepomuceno cresceu em São João de Meriti (RJ). Perdeu o pai cedo e foi criado, junto com os irmãos, por uma tia. Segundo ele próprio, começou os assaltos aos 13 anos, e em seguida passou ao tráfico de drogas, eventualmente tornando-se o chefe do tráfico no complexo do Alemão. Segundo a polícia, ele é o principal suspeito pela morte de Márcio Amaro de Oliveira (1970-2003). Hoje, Marcinho VP tem 54 anos de idade, tendo passado os últimos 28 deles na cadeia. Desde janeiro deste ano, cumpre pena no Presídio Federal de Campo Grande (MS).
Segundo a polícia, Marcinho VP continua comandando o tráfico de dentro da cadeia – o que a defesa dele nega. Em outubro passado, por exemplo, ele teria dado ordens para a troca do comando do CV no Rio de Janeiro, segundo a polícia. Segundo o então secretário de administração penitenciária do Rio, Raphael Montenegro, Marcinho VP seria “mais importante que o secretário de Segurança Pública”, conforme ele próprio disse ao traficante em um diálogo interceptado pela polícia. A conversa ocorreu em maio de 2021 – e Montenegro acabou preso em agosto daquele ano.
‘Estado cerceou minha liberdade, mas jamais conseguirá me impedir de pensar’
A biografia de Marcinho no site da Academia Brasileira de Letras do Cárcere menciona três livros já publicados. O primeiro foi “Marcinho VP – Verdades e Posições / O Direito Penal do Inimigo”, de outubro de 2017, e em novembro de 2022, lançou “Preso de Guerra”, ambas em parceria com o jornalista Renato Homem. Em outubro passado, publicou “Execução Penal Banal Comentada”, em coautoria com dois advogados, Paloma Gurgel e Luciano Tourinho.
“O Estado cerceou minha liberdade, mas jamais conseguirá me impedir de pensar. Fui preso em agosto de 1996, aos 20 anos de idade. Jogado numa cela úmida do presídio de segurança máxima de Bangu I juntamente com os fundadores do Comando Vermelho. Tenho contas a prestar à Justiça, é verdade, mas me impuseram uma fatura infinitamente mais cara (...). Reúno aqui um pouco daquilo que penso a respeito de temas que interferem direta ou indiretamente na vida das pessoas, com uma abordagem pessoal das experiências mais significativas da minha vida”, diz Marcinho num trecho de Verdades e Posições.
Marcinho VP voltou à lista de assuntos mai discutidos do X (antigo Twitter) depois que seu filho, o rapper Oruam, se apresentou no festival Lollapalooza com uma camiseta em homenagem ao pai. A vestimenta trazia uma foto de Marcinho e a palavra “liberdade”. Aos 22 anos, Oruam é destaque do “trap”, um subgênero do rap.