BRASÍLIA – Um caderno universitário de 200 folhas, ao lado de relatórios, programas de governo e um gráfico sobre o declínio da produtividade no Brasil, dos anos 70 até 2019, desperta interesse no Bloco J da Esplanada dos Ministérios. O que mais chama a atenção na gabinete do 6.º andar, porém, não é propriamente o conteúdo daquelas páginas – presas na lateral por um feixe de mola –, mas, sim, a sua capa, decorada com a inscrição SFC.
Torcedor fanático do Santos Futebol Clube, o dono do caderno é o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), também ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Ex-governador de São Paulo, Alckmin afirma estar “superfeliz” na equipe de Luiz Inácio Lula da Silva e não dá pistas sobre planos políticos para 2026. Quer ser vice novamente, vai concorrer a presidente, ao Palácio dos Bandeirantes ou ao Senado?
“O futuro a Deus pertence”, disse ele ao Estadão, no domingo, 17, apressado para ir ao encontro do presidente do PSB, Carlos Siqueira, numa padaria de Brasília. Mas, antes de entrar no elevador, voltou para dar um diagnóstico. “Há dois ansiosos na vida: os políticos e as jor-na-lis-tas”, emendou, como se separasse as sílabas.
Sem querer tratar de 2026, Alckmin já começou a planejar como será 2024. Na capital paulista, promete subir no palanque de Tabata Amaral (PSB) à Prefeitura, mas, para fazer um aceno à esquerda, chama Guilherme Boulos (PSOL), o candidato do PSOL apoiado pelo PT, de “companheiro Boulos”.
Além disso, ele também providenciou outro caderno de 200 folhas, com o mesmo brasão do SFC, para acompanhá-lo no ano eleitoral. O surrado exemplar, usado desde janeiro, quase não tem espaço para as últimas anotações.
Há naquelas linhas muitos números e lembretes de todo tipo. O aumento de 243% no crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para exportação está registrado em um canto.
Programas que serão lançados em breve, como plano indústria e Mover, e a meta de reduzir de oito para dois anos, até 2026, o tempo de decisão sobre pedidos de marcas e patentes também ocupam lugar de destaque no caderno. Existe, ainda, uma penca de problemas a resolver, como o impacto da importação do leite na produção nacional.
Diante de tantas informações é preciso um método de trabalho. “Eu sempre faço uma recapitulação dos assuntos, daquilo que tenho de ver na semana, porque senão a coisa importante fica para trás”, contou o vice-presidente, que às vezes substitui o almoço por paçocas. “Depois de um mês, olho o que escrevi de novo, para não escapar nada.”
Nem mesmo a debacle futebolística prevista pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, foi suficiente para convencer Alckmin a comprar um caderno com outra capa. Na primeira vez que o visitou no ministério, no início deste ano, Teixeira não conteve a curiosidade. “Por que o senhor usa esse cadernão?”, disparou.
Ao ouvir que ele anotava ali tudo o que considerava relevante, para memorizar melhor, o ministro aproveitou a deixa. “O perigo é esse caderno cair...”, provocou Teixeira, corintiano roxo.
No último dia 6, pela primeira vez na história, o Santos foi rebaixado para a Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro. O vice se lembrou do trágico prognóstico feito pelo colega petista, mas disse ter esperança na revanche. “O Peixe vai nadar”, previu.
De ‘picolé de chuchu’ a ‘guerreiro do povo brasileiro’
Adversário do PT até formar a inusitada dobradinha com Lula, em 2022, Alckmin surpreendeu seus antigos parceiros ao virar a chave política. Saiu do PSDB após 33 anos de filiação e uma temporada de embates nas fileiras tucanas, aposentou o apelido de “picolé de chuchu” e se transformou em um showman nas redes sociais.
Agora, o homem que já assumiu 11 vezes a Presidência da República – sem nunca sentar na cadeira ocupada por Lula – apela até mesmo para o “latinório” em sua incursão pelo ciberespaço. “Fui coroinha no tempo do latim”, lembra. “E quem me elegeu foram os jovens. Com 24 anos, fui prefeito de Pindamonhangaba, pelo Manda Brasa, MDB. Só que o tempo passa, né?”
Médico anestesista, o Dr. Geraldo que aparece nas plataformas digitais gosta de encaixar um princípio da medicina nas conversas, principalmente quando fala sobre o desafio do Brasil para 2024.
“Sublata causa, tollitur effectus (Suprima a causa que o efeito cessa)”, receita o vice, para quem a reforma tributária vai reduzir o custo Brasil e ajudar a enfrentar as causas da baixa produtividade. No ministério comandado pelo ex-governador de São Paulo, a palavra de ordem para gerar emprego e renda é “neoindustrialização”.
Por falar em “neo”, a metamorfose de Alckmin começou antes mesmo da posse, com suas meias coloridas, salpicadas de flamingos, petit pois e listras. Prosseguiu em seus “diálogos” nos balões de história em quadrinhos com personagens como Harry Potter, Hulk e até Carmen Miranda. É naquele mundo virtual que ele tenta “traduzir” temas áridos da economia e fazer propaganda do governo para o público jovem.
“Dr. Geraldo, que ano!”, exclama Paul McCartney numa montagem postada pelo vice, no último dia 18. “Sir Paul, o melhor está por vir. A música não para!”, avisa Alckmin, como se fosse um DJ mexendo nos botões de uma mesa de som.
No Congresso, porém, até parlamentares de partidos aliados do governo dizem que o vice atua numa espécie de campo minado, sem se posicionar sobre determinados temas para não se indispor com Lula nem com o PT.
“Ele parece que está sempre pisando em ovos: não é arestoso nem espinhento”, definiu o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). “Mas o lado ‘picolé de chuchu’ dele ajuda e, com esse jeito afável, conquistou o pessoal da esquerda.”
A discrição de Alckmin guarda semelhança com a do autor da frase “Tudo pode acontecer, inclusive nada”, que marcou a transição da ditadura militar para a Nova República. “O estilo do Alckmin é o mesmo daquele de Marco Maciel”, resumiu o deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), numa referência ao vice de Fernando Henrique Cardoso nos dois mandatos.
Alckmin é a favor, por exemplo, da divisão do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Mas, desde que o tema virou uma queda de braço dentro do governo, na esteira da indicação do ministro Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal (STF), preferiu aguardar a decisão do presidente.
A todos com quem conversa, Alckmin é só elogios a Lula e diz que ele tem arbitrado com eficiência as diferenças de opinião na equipe. “É bom não ter pensamento único”, avalia. Seus amigos na Esplanada são o ministro do Empreendedorismo, Márcio França – que foi vice quando ele era governador –, e o titular da Fazenda, Fernando Haddad.
Na noite de 8 de dezembro, Alckmin foi o convidado de honra da Conferência Eleitoral do PT, em Brasília. Sentou-se numa poltrona branca, perto de Lula e da presidente do partido, Gleisi Hoffmann.
Os termômetros marcavam 32 graus quando terminou o ato político. Cercado por petistas, o vice passou meia hora tirando selfie – ou retrato, como costuma dizer – com os novos companheiros. Foi chamado ali de “guerreiro do povo brasileiro”.
O auditório onde ocorreu a Conferência do PT leva justamente o nome de Ulysses Guimarães, deputado do MDB que presidiu a Assembleia Constituinte e sempre é citado por Alckmin para explicar sua aproximação com Lula.
“Doutor Ulysses dizia: ‘Não se faz política com o fígado, guardando o ressentimento na geladeira. A Pátria não é capanga de idiossincrasias pessoais’”, afirmou o vice ao Estadão.
Não foi bem o que ele assistiu na quarta-feira, 20, quando acompanhou Lula ao Congresso para a cerimônia de promulgação da reforma tributária. O presidente foi recebido com vaias e aplausos. De um lado, petistas gritavam “Lula, guerreiro do povo brasileiro”. Do outro, bolsonaristas puxavam o coro de “Lula, cachaceiro, devolve o meu dinheiro”.
Geraldo Alckmin, vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio
Sem esconder a ironia, Alckmin sempre se refere a Jair Bolsonaro como “éx-presidente”, pronunciando o “e” como se tivesse acento agudo. “O ‘éx’-presidente chegou ao cúmulo de baixar B-13 para B-10″, criticou ele, ao mencionar decisão de 2021 do governo Bolsonaro para reduzir o porcentual de mistura obrigatória do biodiesel no óleo diesel.
Hoje em dia, um dos assuntos favoritos de Alckmin é o hidrogênio verde. “Você sabia que nós respiramos 16 vezes por minuto?”, indagou o ministro da Indústria e Comércio, puxando e soltando o ar, pausadamente. “Então, todo ser humano, 16 vezes por minuto, está consumindo oxigênio e pondo gás carbônico no ar”. E concluiu: “Opa, precisamos descarbonizar!”
A explicação foi dada por ele, um ex-professor de Química Orgânica, ao lançar a pedra fundamental dos projetos de usinas de amônia e hidrogênio verde em Parnaíba (PI), no último dia 15.
Nos bastidores do Planalto há quem diga que Alckmin pode substituir o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, na reforma da equipe planejada por Lula. Questionado, Múcio abriu um sorriso. “É um homem experiente, respeitado. As Forças Armadas estariam com um excelente ministro. Melhor, impossível”, elogiou.
Se depender do “cotado”, no entanto, ele fica onde está, contando os seus “causos” e fazendo pegadinhas.
“Qual é o lugar mais bonito do Equador?”, perguntou o vice a repórteres, em 21 de novembro, após prestigiar o lançamento do livro Uma Cidade na Luta pela Vida, de autoria do prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT). Em seguida, ele mesmo deu uma dica. “Ilha de Ga, ilha de Ga, ilha de Ga...”, insistiu. Como ninguém respondeu, teve de completar sozinho: “Ilha de Galápagos”.
Galápagos entrou naquela conversa porque Alckmin falava do Equador, confirmando que iria participar dois dias depois, em 23 de novembro, da posse do presidente Daniel Noboa, a pedido de Lula.
A pergunta que sempre incomodou o candidato
Antes, ao citar suas duas derrotas em campanhas presidenciais – a mais dolorida foi em 2018, quando amargou o quarto lugar e o pior desempenho da história do PSDB –, revelou aos jornalistas que tinha o sonho de ser repórter. O motivo? “Eu queria fazer uma pergunta ao candidato: por que não decola?”, brincou.
Lu Alckmin diz que o marido sempre foi assim. “Sou casada com ele há mais de 43 anos e vivo pedindo: ‘Conta aquela piada do papagaio. Agora, conta aquela outra...’. Adoro. Se eu for contar, ninguém dá risada. Mas ele sabe contar”.
Foi da segunda-dama da República a ideia de vestir Alckmin com meias divertidas. “A Lu é modernosa”, descreveu o vice. “Ele é todo sério. Então, pelo menos a meia é diferente...”, justificou ela.
Uma dessas peças foi parar nos pés da primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja. É que, em junho, Alckmin havia dado de presente para Lula dois pares de meia: um com o boi-bumbá Garantido e outro com o Caprichoso.
Como a dupla participa de uma ferrenha disputa no Festival Folclórico de Parintins (AM), Lula não quis tomar partido. Janja, porém, seguiu o conselho de Alckmin e usou um pé do Garantido e outro, do Caprichoso.
No governo, Alckmin também se equilibra com um pé aqui e outro lá: entre o ministério e a vice-presidência; entre o PT e seus antigos eleitores tucanos, mais conservadores; entre o hidrogênio verde e o agronegócio. Despacha até sábado e domingo de manhã, com pausa para café, muitas vezes na rodoviária de Brasília.
“É bom e barato”, recomenda. Foi lá que ele levou o economista Jânio Quadros Neto para tomar um cafezinho no dia 7 de novembro, quando completou 71 anos. Mas a lista de preferências de Alckmin não se resume à rodoviária e, vez ou outra, inclui confeitarias com sotaque francês, como na véspera deste Natal, quando se encontrou novamente com Carlos Siqueira. “Só que aí quem convida é que paga, né?”, explica.