Às vésperas de mais uma eleição, que promete ser uma das mais disputadas desde a redemocratização do País, a imagem dos políticos e dos governantes não poderia ser pior. Ligados a escândalos em série de corrupção, a mordomias, a promessas não cumpridas e a manobras feitas na calada da noite para manter privilégios, eles atingiram o nível mais baixo de todos os tempos nas pesquisas que avaliam o grau de confiança da população nas autoridades e nas instituições.
Diante desse sentimento de aversão à política e aos políticos, turbinado por uma insatisfação generalizada com a qualidade sofrível dos serviços públicos e com o apetite insaciável do Fisco, prolifera na sociedade a percepção de que nada de bom acontece na área governamental. Parece, para muita gente, que não há projeto ou iniciativa no setor público que se destaque da mediocridade geral.
Felizmente, a realidade não é tão sinistra quanto se imagina por aí. Os exemplos positivos “pipocam” Brasil afora, nas três esferas de governo – federal, estadual e municipal – e nas diferentes áreas da administração – finanças públicas, educação, saúde, segurança, mobilidade urbana, meio ambiente. Juntas, essas iniciativas mostram que uma transformação lenta e silenciosa, distante dos holofotes, está em curso na gestão pública do País.
Ao contrário do que muita gente pensa, as boas práticas acontecem em governos de diferentes partidos políticos. A boa gestão tem pouco ou nada a ver com ideologia e muito mais com a racionalidade administrativa e o comprometimento das autoridades com a busca de maior eficiência nas políticas públicas e a melhoria dos serviços oferecidos à população.
“Liderança é 95% do jogo”, diz o pesquisador americano David Osborne, que foi conselheiro do ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore e do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, coautor do livro Reinventando o Governo: Como o Espírito Empreendedor Está Transformando o Setor Público (Ed. Saraiva). “É preciso ter líderes corajosos e visionários para levar os órgãos públicos a se reinventar”.
Responsabilidade fiscal. Com o objetivo de apresentar as experiências inovadoras desenvolvidas na área governamental, quase sempre esquecidas em meio às adversidades cotidianas, o Estado lança, hoje, a série de reportagens especiais Além da crise. Nesta edição, o jornal discute as grandes questões relacionadas à gestão pública no Brasil e publica a primeira reportagem da série, que aborda os resultados positivos obtidos pelo Ceará no campo fiscal, além da entrevista de Osborne.
No momento em que a União e a maioria dos entes da Federação enfrentam problemas dramáticos com as finanças públicas, o caso do Ceará mostra que, com as ferramentas adequadas e vontade política, é possível conjugar a implementação de melhorias nos serviços prestados à população, com responsabilidade fiscal.
“Acredito que ajuste fiscal precisa acontecer em qualquer governo ou mesmo na vida das empresas e das pessoas. Se uma família tem uma receita de R$ 1.000, ela não pode gastar R$ 1.200 ou R$ 1.300, porque vai acabar se endividando e indo para a lista do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito)”, diz o governador do Ceará, Camilo Santana, do PT, partido tradicionalmente perdulário com o dinheiro dos pagadores de impostos, com consequências nefastas para o País, como mostrou a ex-presidente Dilma Rousseff. “É preciso acabar com esse preconceito que existe em relação ao ajuste fiscal.”
Provavelmente, os bons exemplos ainda são apenas honrosas exceções que confirmam a regra. Entre as autoridades, continua a prevalecer a visão de que é preciso “reinventar a roda” para deixar uma marca própria na administração, em vez de dar sequência aos projetos que estão dando certo. Mesmo assim, não deixa de ser um avanço considerável que as boas experiências estejam se espalhando, ainda que sem o senso de urgência necessário para o Brasil dar o salto que o levará, enfim, a deixar de ser o eterno país do futuro.
Em geral, os chamados “movimentos sociais” reivindicam a aplicação de mais recursos em áreas como educação, saúde e habitação, para viabilizar a construção de mais escolas, hospitais e casas populares, além da contratação de mais professores, médicos e enfermeiros. Mas as soluções, muitas vezes, não dependem nem de mais dinheiro nem de mais pessoal, mas da melhor aplicação dos recursos já disponíveis, com o aumento da eficiência e da produtividade nas diferentes atividades desenvolvidas pelo setor público (leia o quadro). “O governo gasta mais do que pode e, além disso, gasta mal”, diz um estudo do Banco Mundial sobre o País divulgado no fim do ano passado. “O Brasil poderia melhorar o volume e a qualidade dos serviços públicos com o uso mais eficiente dos recursos atuais.”
O consultor Vicente Falconi, fundador da empresa que leva o seu sobrenome e um dos profissionais mais respeitados na área de gestão, com farta experiência em projetos no setor público, afirma que o tempo médio de permanência de um doente num hospital de emergência federal é de 12 dias, enquanto num hospital privado de primeira linha, como o Albert Einstein, de São Paulo, é de apenas três.
Insatisfação. Falconi diz que, se o tempo de permanência nos hospitais federais diminuísse para seis dias, que ainda seria o dobro do prazo do Einstein, já daria para multiplicar por dois o número de vagas, com a mesma estrutura. “Gestão é uma coisa que dá resultado com pouco investimento”, afirma. “Na hora que você desce no detalhe, descobre muita coisa que dá para melhorar.”
Segundo Cibele Franzese, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-secretária adjunta de Gestão Pública e de Planejamento do Estado de São Paulo, é possível aprimorar a qualidade dos serviços públicos com medidas simples, que muitas vezes não são identificadas pelos governos, porque eles não prestam muita atenção na experiência dos usuários. Cibele afirma que, no Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, boa parte da insatisfação dos pacientes poderia ser resolvida com a criação de espaços mais confortáveis para aguardar a chamada do médico e com o agendamento eletrônico das consultas. “Se você não entende o problema do usuário, acaba construindo outro hospital e contratando mais médicos, para resolver um problema que é muito simples.”
Hoje, com o desenvolvimento da tecnologia e o acesso crescente da população aos canais digitais, o Brasil tem uma janela de oportunidade para “queimar” etapas e melhorar os serviços públicos, ao mesmo tempo em que aumenta a eficiência dos gastos.
“Temos de transformar a forma de fazer políticas públicas”, diz a consultora Florencia Ferrer, do Fórum Permanente de Inovação no Setor Público, vinculado à FGV. “É possível obter uma economia significativa com o governo eletrônico e a adoção de soluções inovadoras de gestão.” Os casos a serem apresentados na nova série do Estado, que se propagam pelo País nas diferentes áreas da administração, deverão mostrar, cada um ao seu modo, que é possível oferecer serviços dignos aos cidadãos sem arrebentar as contas públicas.
Crise afeta apoio privado a projetos no setor público
Além da crise fiscal que se espalhou pelo País, dificultando as ações governamentais, o setor público sofreu os efeitos negativos do corte nas doações feitas por organizações sem fins lucrativos ligadas a alguns dos principais empresários brasileiros. Com a recessão, a fonte, outrora generosa, praticamente secou, segundo executivos das entidades e consultores envolvidos nos projetos, em geral destinados ao aumento da eficiência no setor público e à melhoria da qualidade dos serviços prestados à população.
Hoje, as organizações já não priorizam programas estaduais de grande porte, como a reforma da educação e o ajuste fiscal em Minas Gerais, nos governos de Aécio Neves e Antonio Anastasia, do PSDB, e a melhoria da segurança pública em Pernambuco, no governo de Eduardo Campos (1965-2014), do PSB, que consumiram milhões de reais. Agora, o dinheiro que restou é aplicado principalmente em programas de menor porte, desenvolvidos por dezenas de prefeituras, com apoio ocasional de consultores para a implantação dos projetos, e na criação de plataformas digitais voltadas ao compartilhamento de boas práticas de gestão.
“Hoje não é tão fácil conseguir patrocínio de empresários”, diz o consultor Vicente Falconi, um dos mais requisitados para tocar projetos no setor público. “Primeiro, porque a freguesia governamental aumentou muito. Segundo, porque a economia passou por um momento complicado e muita gente estava mal das pernas.”
Os empresários continuam, porém, a dedicar seu tempo à melhoria da administração pública, que afeta a competitividade do País, e a patrocinar seminários e estudos sobre o tema. Por meio do programa Juntos pelo Desenvolvimento Sustentável, ligado à Comunitas, organização envolvida em várias ações de apoio ao setor público, um grupo de grandes empresários presta consultoria gratuita a 15 prefeituras. Fazem parte da lista Rubens Ometto, sócio da Cosan, do setor de açúcar e álcool; José Roberto Marinho, do Grupo Globo; José Ermírio de Moraes Neto, do Grupo Votorantim; e Carlos Jereissati Filho, do Grupo Iguatemi.
O envolvimento empresarial mais profundo com a causa deslanchou no início dos anos 2000, por meio da Fundação Brava, criada por Carlos Alberto Sicupira, sócio de Jorge Paulo Lemann na 3G Capital, e do Movimento Brasil Competitivo (MBC), formado por Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do Conselho de Administração do Grupo Gerdau. Eles deram uma contribuição substancial para melhorar a gestão pública no País, ao apoiar diversos projetos, independentemente dos partidos políticos dos governantes.