BRASÍLIA – O Estadão apurou que em reunião do Alto-Comando do Exército ocorrida no começo de agosto, em Brasília, os generais se colocaram de acordo sobre o respeito ao resultado das urnas, minimizando o papel da auditoria sobre o sistema eleitoral da qual alguns militares participam. O colegiado mais influente das Forças Armadas, formando por 16 oficiais-generais e pelo comandante-geral do Exército, indicou que a caserna vai seguir o rito de reconhecer o anúncio do vencedor pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A mensagem começou a ser disseminada na tropa logo depois do encontro, realizado ao longo da primeira semana de agosto.
A última RACE (Reunião do Alto-Comando do Exército) terminou oficialmente com uma nota lacônica. Foram cinco encontros, realizados entre os dias 1 e 5 de agosto. Como de praxe, o comunicado informava apenas que foram discutidos assuntos “de interesse da Força”.
O Estadão apurou que, ao passo que a posição dos generais de respeitar o resultado das urnas se espalhava pelos quartéis do País, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica começaram a evitar exposição política e a dar sinais de distanciamento da inédita auditoria das eleições. O processo vai checar parcialmente a soma dos votos no domingo e monitorar testes de funcionamento das urnas eletrônicas. A fiscalização foi um pedido do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Na prática, a posição do Alto-Comando do Exército pode reduzir o impacto da auditoria das urnas de votação. Fontes militares com conhecimento do assunto disseram à reportagem que o documento com o resultado dessa auditoria não vai adentrar na seara de atestar ou reprovar a confiança das eleições. O texto deve se restringir a reportar o trabalho de fiscalização nas suas duas últimas fases: os testes de integridade das urnas e a checagem amostral do somatório por meio de boletins de votação. Um general enfatizou que o trabalho será “técnico”.
A auditoria será centralizada em uma sala do Ministério da Defesa. O roteiro traçado é emitir, na própria noite de domingo, um documento contendo os achados técnicos da fiscalização. Os militares vão monitorar os testes de integridade, que verificam o funcionamento correto dos equipamentos em 641 urnas, sendo 56 delas com uso de biometria de eleitores. Esse modelo é um “projeto-piloto” adotado pelo TSE por pressão dos militares. A apuração na Defesa, usando dados e cópias de boletins de urna colhidos nas seções, não deve passar de uma amostra de até 400 urnas, em vez da totalização completa.
A pasta pretende concluir o trabalho em quatro horas e enviar, por volta das 21 horas, a auditoria ao TSE. O ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, que assinará sozinho o relatório, informará Bolsonaro sobre o conteúdo. O propósito do documento, segundo militares, é relatar o que foi verificado. Uma ressalva que costuma ser feita pelos oficias envolvidos é que um sistema informatizado nunca está 100% blindado e precisa sempre de aprimoramento. Bolsonaro explora essa informação politicamente, dizendo que o risco de fraude é “quase zero, mas não é zero”.
Diante de um cenário de desgaste para o setor, a cúpula da Força, formada em sua maioria por oficiais da ativa promovidos ao topo da carreira nos últimos quatro anos, considera que a contestação do resultado das eleições e o questionamento da legitimidade das urnas eletrônicas devem ficar circunscritos ao presidente e aos militares da reserva, que participam da campanha ou do governo. Estão nessa lista antigos quatro estrelas, como Walter Souza Braga Netto (candidato a vice na chapa de Bolsonaro), Augusto Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência).
Diante dos indicativos de que Bolsonaro questionará o resultado da Corte, militares afirmam que o presidente terá de fazê-lo por meios legais e jurídicos de sua campanha. Segundo um general, mesmo na caserna a impressão é que a contestação de Bolsonaro se esgotaria e seria infrutífera, por causa do respaldo que o TSE tende a receber de órgãos externos. O Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, pressionou a Defesa a explicitar documentadamente o método e intenções da auditoria nas eleições, o que foi chamado nos bastidores do poder de “fiscalização da fiscalização”.
Artilharia
Após uma trégua às críticas ao TSE e às urnas, Jair Bolsonaro voltou a atacar, nesta semana, o tribunal e em especial o presidente da Corte, Alexandre de Moraes. Ele retomou a campanha pelo voto impresso, dizendo que “algo anormal” terá ocorrido se não vencer o pleito no primeiro turno, cenário jamais indicado por pesquisas de intenção de votos. Bolsonaro esquivou-se também do compromisso de entregar o cargo, caso seja derrotado. Em sabatina na Record TV, disse que vai “aguardar o resultado”, quando questionado se contestaria uma derrota. Em debate na TV Globo, não respondeu à pergunta direta da candidata Soraya Thronicke (União Brasil) sobre se daria um golpe de Estado.
Obediência
O Estadão ouviu relatos de oficiais com acesso ao Alto Comando que narram um pacto com objetivo de distanciar os militares dos questionamentos de Bolsonaro e demonstrar respeito ao processo eleitoral. A opção pelo recolhimento, pelo silêncio e discrição dos generais após a reunião de agosto foi a senha. Não houve, porém, uma diretriz interna. Reservadamente, um general que passou pelo Palácio do Planalto disse que qualquer candidato vitorioso “terá o respeito e a obediência dos militares” e que o Alto Comando “não enveredará por nenhum caminho que não seja o institucional”.
O general Freire Gomes, comandante do Exército, o almirante Almir Garnier, da Marinha, e o brigadeiro Baptista Junior, da Aeronáutica, não pretendem se pronunciar após a declaração do resultado pelo TSE. Assim, os comandantes devem seguir a linha de circunscrever as ações de fiscalização das eleições ao Ministério da Defesa. No meio militar, isso é visto como uma forma de blindar as tropas da ativa de ações políticas do governo. O ministro da Defesa é o interlocutor político entre o presidente e os comandantes. E quer fugir dos holofotes para baixar a temperatura.
Pressão internacional
Os comandantes sofreram pressão interna e externa para que se afastassem de qualquer atitude de ruptura. Por canais diplomáticos, militares dos Estados Unidos têm mantido contatos diários com os brasileiros. Um representante de Washington confirmou ao Estadão que, em todas as ocasiões, é um mandamento dos americanos lembrar que as Forças Armadas devem resguardar seu papel numa democracia. O governo Joe Biden reiterou a confiança no processo eleitoral por meio de enviados ao Brasil e comunicados oficiais da Casa Branca. O próprio Biden se prepara para reconhecer o resultado tão logo seja conhecido, conforme aconselhado por diplomatas. A forma está sendo preparada.
O Senado norte-americano aprovou uma resolução pedindo imediato reconhecimento do vitorioso. A recomendação é que Biden reveja a relação com o País se houver atos antidemocráticos, sobretudo com envolvimento de militares. “O próximo presidente do Brasil deve ser escolhido pelos eleitores daquele país e mais ninguém. É um passo importante para a democracia que a liderança militar do Brasil tenha deixado claro ontem que respeitará os resultados da eleição de domingo”, escreveu o senador democrata Bernie Sanders.
Em linha similar, o Parlamento Europeu cobrou monitoramento da situação no Brasil e punição com sanções comerciais em caso de ruptura. Adidos militares europeus em Brasília ouviram dos fardados brasileiros que terão postura democrática e profissional. Os estrangeiros avaliam não ver vantagens pessoais financeiras ou para a própria carreira de militares brasileiros embarcar numa nova “aventura” de tomar o governo.
Eleições 2022
Reconhecido internacionalmente, o general de Exército da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo defenestrado pelos bolsonaristas em 2019, cobrou respeito ao resultado das eleições. “Isso é princípio básico da democracia. A população, as autoridades e as instituições não podem aceitar que o fanatismo tenha seu desfecho natural - a violência. É a imposição da lei. Eleições em paz e resultados respeitados”, escreveu Santos Cruz, de Nova York, onde se prepara para atuar na Ucrânia em nome das Nações Unidas.
Partido
Se o indicativo dos militares é de não respaldar qualquer contestação do presidente, na quarta-feira integrantes do PL, partido de Bolsonaro, deram um caminho. Eles divulgaram uma nota de duas páginas que resumiam questionamentos e ventilavam a possibilidade de manipulação das eleições. O texto elencou requisitos técnicos de segurança de informação supostamente não atendidos pela Corte. O documento foi formulado por uma consultoria privada, o Instituto Voto Legal, contratado pelo partido de Bolsonaro. O TSE reagiu determinando abertura de investigação e chamou as conclusões da legenda de “mentirosas”.
Na véspera, Valdemar Costa Neto, presidente do partido, havia se reunido com o ministro da Defesa e discutido exatamente o trabalho de auditoria que o partido fez. A assessoria do ministro, porém, nega que ele tenha tido conhecimento prévio do teor do documento. O partido nem sequer chegou a inspecionar os códigos de programação das urnas, como havia sido franqueado pela Corte, e agora diz não haver controles externos. Costa Neto também visitou Alexandre de Moraes em privado, ocasião em que não manifestou contestação do sistema. Ao contrário, o presidente do partido já havia dito que nem Bolsonaro tinha motivos para desconfiar. Em visita à seção de totalização, que o presidente classifica como sala “secreta” ou “escura”, Valdemar afirmou que ela, ao contrário, é “aberta”.
Insatisfação
Embora se reconheçam, majoritariamente, identificados com o ideário da direita defendido por Bolsonaro e avessos à ideia de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva mereça retornar ao poder, coronéis, generais, almirantes e brigadeiros se dizem profissionais e chegam a se ofender com a cogitação de apoio a um golpe de Estado. Um general de Exército da reserva, com assento no governo, e que chama Lula de “ladrão” em privado, afirma que os militares podem ficar insatisfeitos, em sua maioria, mas são disciplinados e já viveram sob um governo do PT. Ele diz não acreditar em “atitude de rebeldia”. Um coronel de Forças Especiais, influente no Forte Apache, lembra que as consequências jurídicas seriam pesadas e que, diferentemente do que ocorreu em 1964, hoje não há nenhum inimigo que ameace a segurança nacional.
Perguntados sobre eventuais defecções, como renúncias ou pedidos de passagem à reserva, os oficiais afirmam que não existiria um movimento orquestrado amplo, mas reconhecem a possibilidade de casos pontuais de algum insatisfeito. Também admitem que existem, na caserna, segmentos com opiniões radicalizadas, mas rechaçam a possibilidade de quebra da disciplina. Dois ministros identificados por eles como disseminadores de conteúdo com alta circulação pró-Bolsonaro, como os generais Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, e Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria Geral da Presidência. A maioria minimiza, por exemplo, os artigos questionadores das urnas difundidos pelo Clube Militar.
Pelo cenário de vitória de Lula, oficiais do Exército afirmam que há alguns caminhos para começar a estruturar sua posição corporativa e abrir canais de interação com o petista, oficialmente bloqueados. Seriam pontos fundamentais, segundo um coronel, proteger os vencimentos e o sistema de previdência, turbinados no governo Bolsonaro; preservar e ampliar investimentos orçamentários nos programas estratégicos para até 2% do PIB. Ainda, vão trabalhar para blindar as escolas militares de influências políticas na formação dos oficiais, algo que gera receio por causa de manifestações passadas de petistas.
Em caso de transição de governo, eles dizem que o natural seria o grupo mais antigo de cada Força estabelecer pontes com o governo eleito. E veem como positiva a indicação de um civil no Ministério da Defesa. No Exército, nomes que potencialmente participariam das tratativas seriam os generais Tomás Paiva, Valério Stumpf, Estevam Teophilo e Julio Cesar de Arruda. Especialmente o primeiro é tido como um dos nomes mais moderados da caserna e com boa aceitação na campanha petista.
Após a publicação da reportagem, o Comando do Exército divulgou nota em que afirma ser “fake news” a informação de que a cúpula da Força Terrestre, formada por 16 generais e o comandante-geral, havia selado a posição de respaldar o resultado das eleições do próximo domingo, dia 2. A nota, publicada no site oficial do Exército, manifesta “total repúdio ao conteúdo” de uma reportagem pelo Estadão.
“Na reunião do Alto-Comando do Exército (ACE), ocorrida entre 1º e 5 de agosto, não foram tratados assuntos de natureza político-partidária, tampouco houve qualquer manifestação de oficial do ACE nesse sentido”, disse o Exército. “Os dados apresentados na matéria são inverídicos e tendenciosos.”
Na mesma nota, o Exército diz ser “uma instituição nacional, cônscio de suas missões constitucionais e democráticas, tendo na hierarquia e na disciplina seus pilares inabaláveis”. A Força Terrestre informa que avalia medidas na Justiça: “É lamentável que um veículo de expressão nacional promova desinformação que só contribui para a instabilidade do País. Dessa forma, as medidas judiciais cabíveis estão sendo estudadas”.
Em transmissão ao vivo nas redes sociais na noite desta sexta-feira, 30, o presidente Jair Bolsonaro alegou que a imprensa tenta “afastá-lo” dos militares. “A matéria diz ‘Alto-Comando diz que quem ganhar leva a presidência e se afasta de auditoria de votos’, mentira”, disse Bolsonaro. “Eles inventam nomes, fazem a matéria, tentam me afastar das Forças Armadas, mas existe uma coisa que a imprensa não sabe, chama-se lealdade, confiança, respeito, consideração. A imprensa não sabe o que é isso, isso existe entre eu e os comandantes militares.”
Na live, Bolsonaro contou que, após ter conhecimento da reportagem, cobrou do general Braga Netto, o vice na sua chapa, explicação sobre o assunto e se ele tinha dado entrevista ao jornal. Segundo o presidente, Braga Netto disse que não. O Estadão não publicou que o oficial foi entrevistado. Braga Netto é ex-ministro da Defesa e indicou o atual chefe da Pasta, general Paulo Sérgio Nogueira.